quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Jack e nós


[Postagem atualizada em 03/03/2019]


Conheci O senhor das moscas, excepcional romance de William Golding publicado pela primeira vez em 1954, quando já era adulto, há uns 15 anos (escrevi sobre ele anteriormente aqui).

Por isso confesso ter ficado um pouco surpreso ao saber, tempos atrás, que o livro costuma ser muito utilizado no ensino básico da Grã-Bretanha e dos EUA, sobretudo no high school, em aulas de Literatura. Basta dar uma olhada no Youtube para encontrar encenações teatrais escolares feitas por estudantes, baseadas no texto de Golding (só por curiosidade, há uma paródia muito engraçada do livro dentro de um episódio dos Simpsons, na nona temporada).

Suponho que, por se tratar de uma narrativa alegórica, O senhor da moscas permite uma boa exploração didática. E o fato da história desenvolver-se em torno de um grupo de crianças também pode explicar a "popularidade" do livro no ambiente escolar, pelo menos em países anglófonos (mal comparando, é parecido com o que acontece aqui no Brasil com Capitães da areia, de Jorge Amado). Ainda assim, fico me perguntando se o leitor infantil e juvenil será capaz de chegar ao fundo das especulações que se pode engendrar a partir da leitura do romance. Algumas dessas especulações, inescapavelmente, tangenciam a questão da natureza humana.

Como alguém identificado com o pensamento existencialista, vejo-me compelido a rechaçar o conceito: natureza humana é, desse ponto de vista, apenas uma expressão retórica. Cada pessoa a surgir no mundo não está predeterminada a ser isto ou aquilo (por mais que o determinismo genético diga o contrário). Os humanos, ao longo do processo de existir, vão se constituindo aos poucos como humanos, por meio da cultura e do contato com os outros, sendo capazes de se descolar (com limitações, claro) do programa estabelecido pela natureza. Não estamos completamente à mercê de nossos instintos (assim, aliás, consideramos, pelo menos desde a antropologia filosófica inaugurada por Rousseau).

Mas... A despeito de tudo isso, não transcendemos por inteiro nossa animalidade (algo impossível, em última instância). Os impulsos naturais continuam fazendo parte do que somos. Como a agressividade, por exemplo.

Combinemos assim, então, eventual leitor(a). Embora o conceito de natureza humana seja, filosoficamente, (muito) questionável (para dizer o mínimo), a expressão não deixará de ser empregada nesta postagem. Caberá ao(à) eventual leitor(a) julgar se a sua utilização é pertinente ou não.

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Sempre que se fala em natureza costuma-se não perder de vista sua "contraparte", a cultura, cuja sinonímia abrange a palavra civilização.

O senhor das moscas dramatiza, entre outras coisas, o choque natureza X civilização. 

Se pensarmos nas três figuras centrais do livro - Ralph, Porquinho (Piggy, na língua original) e Jack - podemos dispô-los da seguinte forma: Porquinho localiza-se no lado da civilização; Ralph ocupa uma posição intermediária; Jack, por sua vez, aninha-se no polo da natureza (diria até, no polo da selvageria). Na discussão proposta hoje, esse personagem nos interessa muito.

É bastante significativo que, no começo da narrativa, Jack Merridew apareça inteiramente uniformizado (tal como seus "subordinados" do coro). A vestimenta era só outra forma de traduzir sua vontade de mostrar-se superior aos outros e não um apreço especial por qualquer requinte civilizado.

Segundo o narrador ¹, Jack tinha "a voz de alguém que sabia o que queria". Seu desejo de mando é expresso logo no primeiro capítulo: "Eu devo ser o chefe - disse Jack, com ingênua arrogância -, pois sou o chefe do coro e solista. Posso cantar em dó sustenido". Desde o início, qualquer leitor de O senhor das moscas suspeita que a posição ulterior de Ralph como líder eleito se fragilizará até o final da história, dadas as características de Jack.

No primeiro capítulo também ficamos sabendo que Jack tem uma faca, assim como Ralph. Importante notar, porém, que nas páginas seguintes não há relatos de uso do instrumento por parte de Ralph (pode-se supor que o objeto foi empregado durante a montagem das cabanas ou para se alimentar, mas o narrador não faz qualquer menção). Por outro lado, há várias passagens nas quais Jack faz uso de sua faca, inclusive algumas em que o objeto é cravado num tronco de árvore como forma de intimidação. Jack simboliza a força, claro, mas é também um representante da violência - não necessariamente da crueldade, é bom esclarecer; esse papel está reservado a outro personagem, Roger, que será um dos mais diligentes sequazes de Jack.

Ainda que, como dissemos acima, a noção de natureza humana seja problemática, do ponto de vista filosófico, não foram poucos os pensadores (lembro, por exemplo, de Hobbes e de Freud) aterrados pelas "propensões naturais" dos seres humanos para as condutas hostis e violentas. Nesse sentido, penso não ser equivocado ver em O senhor das moscas um exercício estético-imaginativo cuja intenção (entre outras) é responder a seguinte pergunta: até onde somos capazes de ir, para o bem ou (sobretudo) para o mal, sem os limites que a vida civilizada impõe à natureza humana?

Atentemos para a passagem abaixo, extraída do 4º capítulo. Roger, um dos "meninos grandes" (acima dos 11 anos de idade) vê Henry, um dos "meninos pequenos" (abaixo dos 7 anos) construindo castelos de areia na praia. O grande decide "brincar" disfarçadamente com o pequeno:

"Roger agachou-se, pegou uma pedra, mirou e a jogou em Henry - mas não para acertar. A pedra, uma relíquia de outros tempos, passou a uns cinco metros à direita de Henry e caiu na água. Roger pegou um punhado de pedras e começou a atirá-las. Mas havia um espaço ao redor de Henry, talvez com uns seis metros de diâmetro, em que ele não ousava acertar. Aí, invisível mas poderoso, surgia o tabu da vida antiga. Em volta do menino ajoelhado, havia a proteção dos pais, da escola, da polícia e da lei. O braço de Roger era condicionado por uma civilização que nada sabia dele e estava em ruínas".



Caso o(a) eventual leitor(a) não tenha lido O senhor das moscas, convém fazer uma breve sinopse. Um grupo de garotos vai parar em uma ilha tropical deserta após a queda do avião em que estavam (a aeronave tentava sair de uma zona de guerra, daí o narrador falar em "civilização em ruínas" no trecho acima). Não há nenhum adulto com eles. (Ah, e quando o narrador mencionou "vida antiga", quis dizer aquela anterior à da ilha).

A "nova vida" permitirá o afloramento de muita coisa. Um sujeito como Roger logo, logo se sentirá livre do condicionamento civilizatório e será terrível...

Chegamos ao ponto principal de minha análise hoje.

Todas as vezes que releio essa obra-prima de William Golding não consigo deixar de pensar que, embora a narrativa seja construída de modo tal que o leitor dificilmente desenvolverá um sentimento positivo pelos personagens situados no polo da natureza - e, apenas para os objetivos desta postagem, isso quer dizer no polo da força e da violência - seres como Jack sempre existirão nos agrupamentos humanos, por mais civilizados que estes sejam. E  - direi isto com certo temor e muito embaraço - talvez precisemos deles ocasionalmente, embora seja custoso admiti-lo.

Falemos com honestidade. Creio ser bastante difícil encontrar um membro da espécie humana sem qualquer pendor para a violência. Sempre me lembro de um trecho no capítulo 5, quando os garotos estão preocupados (alguns, como os pequenos, muito assustados) com a possibilidade de haver na ilha uma criatura misteriosa e ameaçadora. É quando um deles, Simon (meu personagem favorito), conjectura:

"- Talvez - disse hesitante -, talvez haja um bicho.
[...]
 - O que quero dizer é... talvez sejamos nós.
 - Está louco!
  Esta última exclamação foi de Porquinho, que chegou a perder o controle. Simon continuou.
 - Poderíamos ser uma espécie de...
Simon não conseguiu falar, no seu esforço de exprimir o mal essencial da humanidade [...]"

Boa parte das pessoas - como você, eventual leitor(a) e eu - pode até não perpetrar atos violentos em seu cotidiano, mas isso não significa que não tenha capacidade ou disposição para fazê-lo.

Além disso (e é difícil negá-lo), há ocasiões em que não há outro meio a ser empregado senão a força bruta - por exemplo, para caçar animais visando a sobrevivência, como fazem Jack e sua tribo no romance do qual estamos falando, ou afugentar agressores vindos de outro lugar, como sempre aconteceu na história humana.

Muitas pessoas ficam aliviadas que sejam outros (e não elas próprias) a executarem a ação violenta da qual não se consegue prescindir (este blogueiro é uma dessas pessoas). A questão de fundo, porém, não desaparece: o emprego da violência executado por indivíduos dispostos a exercê-la (como Jack) poderia deixar de acontecer, como nos casos exemplificados no parágrafo anterior?

Paro por aqui, ciente de que meu texto ficou manco. Procurarei ler um pouco mais sobre alguns dos temas ventilados aqui e, quem sabe, retornarei a essa discussão. O que é certo, posso dizer desde já, é que O senhor das moscas voltará a ser assunto aqui no Besta Quadrada, como é praxe com os livros pelos quais tenho especial consideração.
__________
¹ GOLDING, William. O senhor das moscas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006 [Tradução de Geraldo Galvão Ferraz]

BG de Hoje

Nunca entendi por que Trent Reznor é considerado por muitos uma espécie de gênio do rock pesado. Nunca gostei do som do NINE INCH NAILS. Bem, isso foi só até eu ouvir Every Day Is Exactly The Same, que faz parte do álbum With Teeth, lançado em 2005 (eu tenho esse CD). Já foi BG anteriormente, mas não me importo de repeti-la. Gosto de tudo nessa faixa, desde o discreto toque de piano na abertura, a letra (a começar pelos versos iniciais - "I believe I can see the future/Cause I repeat the same routine" - que ajudam a estabelecer o tom melancólico da canção), a linha de baixo, bateria, a guitarra típica do chamado rock/metal industrial... Cara, que trabalho magnífico!

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Parando para pensar


CENA 1:

"Ponciá Vicêncio gostava de ficar sentada perto da janela olhando o nada. Às vezes, se distraía tanto que até se esquecia da janta e, quando via, o seu homem estava chegando do trabalho. Ela gastava todo o tempo com o pensar, com o recordar. Relembrava a vida passada, pensava no presente, mas não sonhava e nem inventava nada para o futuro. O amanhã de Ponciá era feito de esquecimento. Em tempos outros, havia sonhado tanto!". A personagem também desejava um outro nome pois "sentia-se ninguém". O homem com quem ela vivia e dividia o seu barraco acabara de chegar e "viu a mulher distraída na janela. Olhou para ela com ódio. A mulher parecia lerda. Gastava horas e horas ali quieta olhando e vendo o nada. [...] Uma noite ela passou todo o tempo diante do espelho chamando por ela mesma. Chamava, chamava e não respondia. Ele teve medo, muito medo. De manhã, ela parecia mais acabrunhada ainda. Pediu ao homem que não a chamasse mais de Ponciá Vicêncio. Ele, espantado, perguntou-lhe como a chamaria então. Olhando fundo e desesperadamente nos olhos dele, ela respondeu que poderia chamá-la de nada".

CENA 2:

"Ponciá Vicêncio deitou-se na cama imunda ao lado do homem e de barriga para cima ficou com o olhar encontrando o nada. Veio-lhe a imagem de porcos no chiqueiro que comem e dormem para serem sacrificados um dia. Seria isto vida, meu Deus? Os dias passavam, estava cansada, fraca para viver, mas coragem para morrer, também não tinha ainda. O homem gostava de dizer que ela era pancada da ideia. Seria? Seria! Às vezes, se sentia, mesmo, como se a sua cabeça fosse um grande vazio, repleto de nada e de nada.

Quando Ponciá Vicêncio resolveu sair do povoado onde nascera, a decisão chegou forte e repentina. Estava cansada de tudo ali. De trabalhar o barro com a mãe, de ir e vir às terras dos brancos e voltar de mãos vazias. De ver a terra dos negros coberta de plantações, cuidadas pelas mulheres e crianças, pois os homens gastavam a vida trabalhando nas terras dos senhores, e depois a maior parte das colheitas ser entregue aos coronéis. Cansada da luta insana, sem glória, a que todos se entregavam para amanhecer cada dia mais pobres, enquanto alguns conseguiam enriquecer-se a todo o dia".


As duas passagens acima fazem parte do romance Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo ¹. O fluxo da narrativa vai e volta no tempo por meio, sobretudo, das lembranças da protagonista - "Ponciá gastava a vida em recordar a vida. Era também uma forma de viver", registra a voz narradora à certa altura. No primeiro excerto destacado nesta postagem, pode-se perceber o peso conferido ao ato de lembrar na composição psicológica da personagem central.

A propensão para o ensimesmamento é um dos principais traços de Ponciá Vicêncio, pela necessidade dela de retornar ao passado através das recordações. Há também, por outro lado, um certo alheamento, ocasiões frequentes em que ela é "tomada pela ausência", contemplando "sempre um outro lugar de outras vivências". Esse sair de si não significa enlevo: por vezes identifica-se com o adoecimento mental (isso acabará sendo evidenciado no romance, sem contar as reiteradas menções à "herança" do avô da personagem). Observe-se a passagem a seguir:

"Nas primeiras vezes que Ponciá Vicêncio sentiu o vazio na cabeça, quando voltou a si, ficou atordoada. O que havia acontecido? Quanto tempo tinha ficado naquele estado? Tentou relembrar os fatos e não sabia como tudo se dera. Sabia apenas que, de uma hora para outra, era como se um buraco abrisse em si própria, formando uma grande fenda, dentro e fora dela, um vácuo com o qual ela se confundia. Mas continuava, entretanto, consciente de tudo ao redor. Via a vida e os outros se fazendo, assistia aos movimentos alheios se dando, mas se perdia, não conseguia saber de si. No princípio, quando o vazio ameaçava encher a sua pessoa, ela ficava possuída pelo medo. Agora gostava da ausência na qual ela se abrigava, desconhecendo-se, tornando-se alheia de seu próprio eu".
Esse "olhar para o vazio", esse "ver o nada", pode, a princípio, ser interpretado como a total passividade. Entretanto, seria um erro, pois, a meu ver, a postura de Ponciá revela ainda um outro sentido, relacionado ao profundo gesto de parar para pensar, de refletir sobre a existência e suas condições.

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Em outro texto escrito por Conceição Evaristo, O cooper de Cida ², testemunhamos um despertar de consciência.

Nesse conto, a personagem carregava, desde criança, "um sentimento de urgência". Acreditava que era preciso ser rápida, não perder tempo na competição representada pela própria vida em sociedade: "corria sobre a corda bamba, invisível e opressora do tempo. Era preciso avançar sempre e sempre". Em visita ao Rio de Janeiro pela primeira vez aos 11 anos, vinda de uma cidadezinha interiorana onde as pessoas "andavam, falavam e viviam de-va-gar-zi-nho", Cida encantou-se com a metrópole:

"Descobriu no turbilhão da cidade um jogo de caleidoscópio formado por peças, gente-máquinas se cruzando, entrecortando braços, rodas, cabeças, buzinas, motos, pernas, pés e corpos aromatizados pela essência da gasolina. Cida descobriu outras pessoas também portadoras da urgência de vida que ela trazia em si".

Aos 29 anos, já estabelecida na capital fluminense, "a vida seguia no ritmo acelerado de seu desejo. Trabalho, trabalho, trabalho. O dia entupido de obrigações". Afinal, "é preciso correr, para chegar antes, conseguir a vaga, o lugar ao sol, pegar a fila pequena no banco, encontrar a lavanderia aberta, testemunhar a metade da missa".

E, literalmente, Cida tinha o hábito de correr. "Todas as manhãs, os pés de Cida pisavam rápido o calçadão da praia. Iam e vinham em toques rápidos e furtivos, como se estivessem envergonhados dos carinhos que o solo pudesse lhes insinuar no decorrer da marcha".

Naquele dia, porém, algo diferente se deu: "um sentimento pachorrento", somado a "um desejo de querer parar, de não querer ir" apoderou-se dela. E "sem perceber, permitiu uma lentidão aos seus passos, e pela primeira vez viu o mar". É quando a personagem para pra pensar (nesse ponto, o conto assemelha-se a algumas narrativas de Clarice Lispector, como por exemplo, Amor, do livro Laços de família). A sensação inicial é de tédio - o oceano comporta-se sempre do mesmo modo há milhões de anos. Até perceber que a repetição vista no mar também pode ser constatada nos "principais atos dela: levantar, correr, sair, voltar".

Atenção para esta passagem:

"Contemplou os rostos que passavam, conhecia todos de relance. Todas as manhãs topava com aquelas faces suadas diante de si. Assustou-se. Percebeu que não estava correndo. Estava andando em câmera lenta, quase. Sentiu a planta dos pés, mesmo guardada nos tênis, tocando o solo. Ela estava andando, parando, andando, parando, parando. Todos os seus membros estavam lassos, só o coração batia estonteado. Cida levou a mão ao peito. Sentiu o coração e os seios. Lembrou-se então de que era uma mulher e não uma máquina desenfreada, louca, programada para correr-correr. Envergonhou-se dos orgasmos premeditados, cronometrados que vinha cultivando até ali. Ela não se entregava nunca e repudiava qualquer gesto de abandono que alguém pudesse ter diante dela. A corda bamba do tempo, varal no qual estava estendida a vida, era frágil, podendo se romper a qualquer hora. Era preciso, pois, um constante estado de alerta"

Pensar sobre a existência e suas condições é o que faz Cida, dirigindo o olhar para o mar e desacelerando. A transformação da personagem ocorre após um irrefreável e intenso exercício reflexivo.

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O que estou querendo dizer com a expressão parar para pensar?

Milhões e milhões de seres humanos, em todo o planeta, veem-se obrigados a realizar, quase diariamente, tarefas das quais não extraem qualquer satisfação ou alegria - e pior -, nem experimentam sentimentos de realização pessoal (sem mencionar que muitas dessas tarefas resultam em muito cansaço físico e/ou esgotamento mental). Desses milhões (poderia dizer bilhões), uma parcela imensa não conheceu outra vida que não aquela pautada pela precariedade. Entretanto, não são poucos os indivíduos submetidos a essas condições que, se perguntados sobre o porquê disso tudo, se a vida não reservaria outras possibilidades, prostram-se numa mudez resignada ou, quando se pronunciam, recorrem aos bordões que lhes foram inculcados ao longo do tempo: "As coisas são assim desde que o mundo é mundo" ou "É a vontade de Deus".

Há ainda aqueles que, menos ameaçados pela escassez material (ainda que igualmente imersos em atividades laborais alienadoras), aceitam sem questionar a ideia de que a vida não passa de uma disputa (a maioria não vence) e não se pode perder tempo - afinal, tempo é dinheiro.

Em todos esses casos, as pessoas são sujeitadas pela opressão socioeconômica. Trabalha-se até o limite da resistência física e mental para se alcançar a mera subsistência; trabalha-se em ritmo incessante - na "correria", como se costuma dizer -, pois esse é o éthos que se julga adequado para "não ficar para trás" (e ganhar, muitas vezes, resulta num processo de desumanização).

Pois bem, parar para pensar é subtrair-se, através do pensamento, dos condicionamentos e interdições impingidos a nós pelo ambiente sociocultural opressor e, nesse exercício, questionar a si e ao mundo. Parar para pensar pode ser subversivo, libertador, revolucionário.

Infelizmente, é de se supor, contudo, serem poucos, muito poucos, aqueles que - a despeito do cansaço físico e mental, da necessidade de obter o "pão de cada dia", da crença de que viver em sociedade significa apenas competir uns contra os outros - conseguem realizar a pausa necessária e erguer a cabeça para fora desse quadro de opressão, ainda que momentaneamente.

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Voltemos aos textos de Conceição Evaristo.

Num dos capítulos de Ponciá Vicêncio, a personagem se pergunta como o homem com quem vivia podia dormir tão tranquilamente, "como se estivesse com a vida resolvida".

"Deus meu, será que o homem não desejava mais nada? Para ele bastava o barraco, a comida posta na lata de goiabada vazia? O pó, a poeira das construções civis, o gole de pinga nos finais de semana? O papo rápido com os amigos? Será que só isso bastava?"

Apesar de tudo, porém, Ponciá percebe nele "um vislumbre de tristeza". Gostaria de conversar, desabafar, mas desiste em razão da brutalidade e mutismo do outro. Uma das lições extraídas após a leitura do romance é que a inclinação para o pensar, para o refletir, pode implicar muita solidão (e tanto pior para quem é como Ponciá Vicêncio, cheia de um "desesperado desejo de encontro").

Em O cooper de Cida, embora o leitor não saiba que rumo a vida da personagem seguirá após a sua tomada de consciência quando parou para pensar diante do oceano Atlântico, pode-se especular que ela pelo menos tentará não sucumbir por completo diante da opressão.

Posso dizer também que há uma valiosa lição nesse conto. Cida observa um nadador brincando na água. Ela

"Aguardou cá fora desejando ansiosa que ele saísse. Ela queria saber do tempo dele, barganhar momentos, pedir um tempo emprestado talvez. Como uma pessoa, em plena terça-feira, às seis e cinquenta e cinco da manhã podia estar tão tranquilamente brincando no mar? Deveria ser extremamente rico. Viver de juros. Lembrou-se dos mendigos que constantemente cruzavam o seu caminho. Eram extremamente pobres. Ou o tempo não se media com moeda, ou as horas, os dias, os anos não seriam medidas justas do tempo".

Entre os muitos sinais de uma vida carregada de privilégios está a maneira como se pode dispor do tempo.

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Antes de encerrar, acho oportuno reproduzir aqui um trecho da entrevista de Conceição Evaristo feita pela Carta Capital em maio de 2017. Quando perguntada sobre a publicação propriamente dita de seus textos, Evaristo respondeu que

"as feministas brancas usam uma máxima quando elas falam que escrever é um ato político. Para nós mulheres negras, escrever e publicar é um ato político. Por causa da minha primeira publicação, Ponciá Vicêncio, fiquei um ano no vermelho para pagar a editora Mazza, em 2003. Eu paguei a primeira e segunda edição e, anos depois, esse livro foi para o vestibular da Universidade Federal de Minas Gerais. A partir daí a editora assumiu sozinha. Becos da Memória, outro livro meu, a editora assumiu sozinha. Com outros livros, eu dividi os custos [Hoje os livros da autora fazem parte do catálogo da editora Pallas]. Então esse processo de publicação infelizmente ainda hoje é necessário. Eu tenho dito para as mulheres negras que a gente precisa encontrar formas coletivas de publicar. Publicar é um ato político para nós e precisamos jogar isso na cara de quem está aí para confrontar".

É preciso não ter ilusões: ainda é muito difícil para a obra de autores afro-brasileiros (sobretudo a das mulheres afro-brasileiras) ganhar visibilidade. Os entraves são consideráveis (inclui-se, como visto no relato acima, arcar com custos de publicação/impressão). O racismo estrutural manifesta-se também no campo literário. Como observa Conceição Evaristo na mesma entrevista, "a literatura ainda é um espaço de interdição. A literatura como sistema, porque o texto é uma coisa, mas o sistema literário é formado por editoras, por críticos, pela mídia, pelas bibliotecas, livrarias, prêmios" e esse sistema "está na mão das pessoas brancas".

Caso o(a) eventual leitor(a) tenha interesse, escrevi sobre outro romance de Conceição Evaristo, Becos da Memória, em novembro de 2009 (para acessar, clique aqui).

Na próxima postagem, destacarei um dos meus livros prediletos: O senhor das moscas, de William Golding.

__________
¹ EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2003

² EVARISTO, Conceição. O cooper de Cida. In: ___________. Olhos d'água. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2016. p. 65-70

BG de Hoje

Acho que todo mundo tem uma lista de canções que, mesmo sendo muito tocadas (no rádio, por exemplo), nunca cansamos de escutar. Fallin', da talentosíssima ALICIA KEYS, faz parte da lista deste blogueiro.