quinta-feira, 29 de agosto de 2013

"Estranhas criaturas de corpos banhados de luar"


O título desta postagem foi extraído de um dos meus livros prediletos, O senhor das moscas*, de William Golding, publicado pela primeira vez em 1954. Está no final do capítulo 9 (Visão de uma morte), quando os acontecimentos mais cruciais e violentos do romance começam a se precipitar. Num habilidoso jogo expressivo, repete-se três vezes o mesmo termo - criaturas - com pequenos acréscimos, num intervalo de apenas dois parágrafos: "estranhas criaturas de corpos banhados de luar, com olhos ardentes"; "estranhas e expectantes criaturas, com seus olhos ardentes"; e "inquisitivas criaturas brilhantes". Mas, afinal, o que - ou melhor, quem - são essas criaturas?

Crianças.

Isoladas numa ilha deserta após a queda do avião em que estavam, fugindo de um conflito bélico provavelmente devastador, uma vez que armamento atômico fora usado (uma Terceira Guerra Mundial, talvez). O modo como viverão umas com as outras, sem "a proteção dos pais, da escola, da polícia e da lei" será a principal matéria desse livro sombrio e extraordinário.

O narrador, n' O senhor das moscas, não nos dá muitas indicações do que se passa pela mente daquelas crianças (exceção a Ralph, o protagonista). William Golding nos apresenta um retrato cruento e pessimista da humanidade preferindo concentrar-se no relato do comportamento, das ações e das falas de seus personagens.

O medo atávico, primordial, possivelmente oriundo dos primeiros hominídeos dotados de consciência; a luta primitiva pela posse do fogo; a organização tribal; o surgimento da prática religiosa: tudo isso é encenado n' O senhor das moscas, numa mostra de que a Literatura arrisca-se, com alguma frequência até, no campo da imaginação antropológica.

Todas aquelas crianças na ilha - Ralph, Jack, Porquinho, Roger, Maurice, Sam, Eric, Simon (meu personagem predileto) e outros não tão destacados - dizem muito de nossa natureza animalesca, infelizmente no que esta tem de mais agressivo (pois, hoje em dia, falar em natureza humana não pega bem, após essa noção ter sido solapada, nas últimas décadas principalmente, pelo pensamento filosófico-científico).

Reli O senhor das moscas dias atrás, com um imenso prazer de estar na posse de um engenhoso produto artístico. Porém, não me livrei do desassossego que senti quando da primeira leitura, anos atrás.

Teria muito mais a dizer sobre essa obra. Contudo, justamente por ser muito, pouparei o(a) eventual leitor(a). Mas, futuramente, retornarei ao livro (que, como disse, é dos meus preferidos).

Na semana que vem, escrevo sobre O olho mais azul, de Toni Morrison.
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* GOLDING, WILLIAM. O senhor das moscas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006 [Tradução de Geraldo Galvão Ferraz]

BG de Hoje

Considero uma letra muito bem sacada e construída. Estou falando de Todas elas juntas num só ser, de Carlos Rennó. O parceiro na canção é LENINE. Qualquer dia desses, falo de forma mais detida sobre ela.