Com (bastante) atraso, arremato esta série de postagens.
Por que, dias atrás, afirmei que as discussões têm resultado frustrante, no geral? A resposta que arrisco é a seguinte: isso acontece, talvez, porque essas discussões nem de longe são diálogos. Nos botecos da vida, nas chamadas redes sociais da web ou mesmo em situações mais formais, as interações de linguagem entre as pessoas são bem pouco dialogais (quero dizer com isso que há pouca troca entre os interlocutores envolvidos).
Deixemos, entretanto, esse ponto em suspensão e voltemos ao texto platônico.
Quando Sócrates, no diálogo Górgias*, entende-se com o especialista em retórica sobre as condições em que se dará a discussão entre eles (Sócrates pede a Górgias que evite os longos discursos e valha-se da alternância de perguntas e respostas), pode-se dizer que a intenção é fazer da conversa - como está lá no texto - "um processo de mútuo aprendizado e ensinamento", que leve "a bom termo o debate". Nessa mesma passagem revela-se também o rigor buscado por Sócrates numa discussão; ao dizer que tipo de pessoa ele é, declara: "uma daquelas que gostaria de ser refutada se dissesse algo falso, e que gostaria de refutar outra pessoa que pudesse declarar algo falso". A atividade filosófica, para Platão, deve ter como objetivo a busca pela verdade (mesmo que esta seja inacessível, em última instância)..
Contudo, estou bem distante de exigir todo esse rigor para os colóquios habituais de que participo...
Ainda que as discussões-nossas-de-cada-dia não sejam exercícios rigorosos de reflexão filosófica (e, talvez, nem seria desejável que fossem), me desanimo com elas simplesmente porque não favorecem a alternância de opiniões, a troca de pontos de vista. O que percebo, a maior parte do tempo, são interlocutores entrincheirados em suas convicções, bem pouco dispostos a rever ou ao menos colocar em dúvida suas certezas consoladoras. Se o diálogo/discussão prevê a alternância de falas e uma troca (de opiniões, pontos de vista) estas não parecem estar acontecendo satisfatoriamente nas conversas por aí.
E quanto à Filosofia? Para muitos - admiradores ou não de Platão - é inerente à disposição filosófica o ato de dialogar/discutir, mesmo solitariamente. E nessa altura é oportuno lembrar aquela bela passagem de outro diálogo platônico - o Teeteto** - quando Sócrates diz que o pensar "é o diálogo que a alma tem consigo mesma acerca de qualquer objeto por ela considerado", acrescentando em seguida "que a alma, ao pensar, simplesmente empreende um diálogo no qual dirige a si mesma perguntas e as responde ela mesma, afirmando e negando"***. Depreende-se, assim, que o exercício filosófico depende da discussão.
Diante da indagação colocada no título desta série de postagens (Para que discutir?), diria: para que possamos escapar das respostas reconfortantes por um lado, mas enganadoras por outro, que costumamos dar às questões que nos cercam, de forma automática, sem parar para pensar. Filosofando ou não, é recomendável estar disposto a discutir.
Antes de encerrar, quero voltar à invectiva do personagem Cálicles, no diálogo Górgias, mencionada na postagem anterior****.
Como havia escrito, Cálicles aconselha Sócrates a abandonar a Filosofia por não considerá-la uma ocupação própria de homens. É apenas uma etapa da educação, válida na adolescência, mas completamente inútil, nociva até, na vida adulta.
A postura depreciativa de Cálicles em relação à Filosofia pode ser notada, até hoje, em várias pessoas que enxergam nessa atividade a inutilidade das inutilidades. Por que essa prevenção, esse menosprezo?
Qualquer dia desses volto a esse ponto. Na próxima postagem o assunto será outro: escreverei sobre um conto famoso de Jorge Luis Borges.
Contudo, estou bem distante de exigir todo esse rigor para os colóquios habituais de que participo...
Ainda que as discussões-nossas-de-cada-dia não sejam exercícios rigorosos de reflexão filosófica (e, talvez, nem seria desejável que fossem), me desanimo com elas simplesmente porque não favorecem a alternância de opiniões, a troca de pontos de vista. O que percebo, a maior parte do tempo, são interlocutores entrincheirados em suas convicções, bem pouco dispostos a rever ou ao menos colocar em dúvida suas certezas consoladoras. Se o diálogo/discussão prevê a alternância de falas e uma troca (de opiniões, pontos de vista) estas não parecem estar acontecendo satisfatoriamente nas conversas por aí.
E quanto à Filosofia? Para muitos - admiradores ou não de Platão - é inerente à disposição filosófica o ato de dialogar/discutir, mesmo solitariamente. E nessa altura é oportuno lembrar aquela bela passagem de outro diálogo platônico - o Teeteto** - quando Sócrates diz que o pensar "é o diálogo que a alma tem consigo mesma acerca de qualquer objeto por ela considerado", acrescentando em seguida "que a alma, ao pensar, simplesmente empreende um diálogo no qual dirige a si mesma perguntas e as responde ela mesma, afirmando e negando"***. Depreende-se, assim, que o exercício filosófico depende da discussão.
Diante da indagação colocada no título desta série de postagens (Para que discutir?), diria: para que possamos escapar das respostas reconfortantes por um lado, mas enganadoras por outro, que costumamos dar às questões que nos cercam, de forma automática, sem parar para pensar. Filosofando ou não, é recomendável estar disposto a discutir.
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Antes de encerrar, quero voltar à invectiva do personagem Cálicles, no diálogo Górgias, mencionada na postagem anterior****.
Como havia escrito, Cálicles aconselha Sócrates a abandonar a Filosofia por não considerá-la uma ocupação própria de homens. É apenas uma etapa da educação, válida na adolescência, mas completamente inútil, nociva até, na vida adulta.
A postura depreciativa de Cálicles em relação à Filosofia pode ser notada, até hoje, em várias pessoas que enxergam nessa atividade a inutilidade das inutilidades. Por que essa prevenção, esse menosprezo?
Qualquer dia desses volto a esse ponto. Na próxima postagem o assunto será outro: escreverei sobre um conto famoso de Jorge Luis Borges.
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* PLATÃO. Górgias. In: ________. Diálogos II. Bauru: EDIPRO, 2007. p. 41-168 [Tradução, textos complementares e notas de Edson Bini]
** PLATÃO. Teeteto. In: ________. Diálogos I. Bauru: EDIPRO, 2007. p. 41 - 156 [Tradução, textos complementares e notas de Edson Bini]
*** Obviamente, nem todo pensar é um filosofar. Mas filosofar implica um emprego peculiar da capacidade de pensar.
**** A fala de Cálicles reproduzida naquela ocasião foi a seguinte:"Quando vejo a filosofia sendo cultivada por um rapazinho, eu o aprovo. Acho adequado e considero esse indivíduo como uma pessoa de condição livre e educada ao passo que considero o indivíduo que não a cultiva mal educado e do qual nunca se pode esperar uma ação nobre e generosa. Entretanto, quando vejo uma pessoa mais velha ainda insistindo na filosofia, sem deixá-la de lado, esse é o homem, Sócrates, que penso estar necessitando do açoitamento. Com efeito, como disse há pouco, essa pessoa, não importa quão bem dotada seja, está condenada a se tornar destituída de virilidade ao evitar os centros da cidade e os centros comerciais, nos quais, de acordo com o poeta, homens obtêm reputação e glória; deverá ocultar-se e passar o resto de sua existência murmurando num canto com três ou quatro rapazotes, sem jamais pronunciar algo bem educado, grandioso e vibrante".
BG de Hoje
CHICO SCIENCE & NAÇÃO ZUMBI deram ao rock nacional um novo fôlego, curiosamente incluindo elementos dos mais tradicionais da música brasileira. Um dos melhores exemplos disso é a faixa instrumental Quilombo groove, do ótimo disco Afrociberdelia (1996).