terça-feira, 6 de agosto de 2013

Para que discutir? (I)



Há uma passagem, no diálogo Górgias*, na qual Sócrates diz o seguinte:

"Górgias, suponho que tu, como eu, temos muita prática em discussões e que já observaste o seguinte a respeito delas: não é fácil para as pessoas que delas participam definirem entre si os assuntos que se prestam a discutir e, tendo efetivado um processo de mútuo aprendizado e ensinamento, levarem a bom termo o debate; pelo contrário, se polemizam entre si algum ponto e um e outro afirma que o interlocutor está se expressando incorreta ou obscuramente, aborrecem-se e consideram que a observação nasceu da malevolência, e de um gosto por querelas, em lugar de ter nascido em prol da investigação do tema proposto para discussão".

Como era de se esperar, no diálogo, Sócrates controla as falas dos outros personagens e, claro, é aquele que mais fala. Mas me parece que nesse texto Platão concede ao sofista Górgias um tratamento mais deferente do que aquele que costuma reservar aos demais interlocutores de Sócrates (basta ver o modo como Pólo e Cálicles são retratados nesse mesmo diálogo). Por que Platão adota, especificamente aqui, essa postura respeitosa (se é que a adota)? Justamente ele, que formulou seu pensamento posicionando-se contra a sofística? Deixo, entretanto, a questão para outra oportunidade e volto à passagem.

Sócrates mostra-se preocupado com o resultado das discussões em geral: com frequência terminam mal pois, já de início, é difícil até mesmo estabelecer o tema que as motivou. Não só isso. É duvidoso ver nelas "um processo de mútuo aprendizado e ensinamento": basta uma pequena discordância e os sujeitos envolvidos irritam-se uns com os outros. Avancemos um pouco mais.

Percebendo incoerência no que dizia Górgias a respeito da retórica (o tema que discutiam), Sócrates acrescenta:

"A consequência [do que disse a respeito das discussões em geral] é eu temer refutar-te com receio de imaginares que, por espírito de disputa, estou tratando de nosso assunto negligentemente e pondo em risco sua elucidação, motivado pelo propósito de atacar-te".

Neste trecho, Platão faz referência a uma prática disseminada na sociedade grega da época, sobretudo em Atenas, e assumida, a seu modo, por alguns seguidores dos sofistas - a erística. Baseada na discussão pela discussão, sem objetivar esclarecer os pontos em debate, tal prática não interessa a Sócrates, segundo Platão. Pondo-se em acordo com Górgias (para evitar que a conversa entre eles tome o rumo da esterilidade erística**), decidem prosseguir o diálogo.

Mas por que - raios me partam - estou falando disso? É porque tenho percebido que, hoje em dia, as discussões, no geral, continuam a ter o resultado frustrante temido por Sócrates, seja nas interações diretas, face a face, seja nas cada vez mais numerosas interações por meio das tecnologias digitais de comunicação.

Prosseguirei neste assunto nas próximas postagens.
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* PLATÃO. Górgias (ou da retórica). In: __________. Diálogos II. Bauru: EDIPRO, 2007. p. 41-168 [Tradução, textos complementares e notas de Edson Bini]

** Platão destaca esse tema noutro de seus diálogos, o Eutidemo.

BG de Hoje

É muita irreverência. Ou muita cara de pau. Seja o que for, o resultado (pelo menos nesta canção) foi ótimo. Estou me referindo à Música de brinquedo, do PATO FU, disco lançado em 2010 e que foi registrado também em DVD. A canção é Todos estão surdos (no vídeo abaixo com a participação dos bonecos do Giramundo).