Num trecho da entrevista concedida a Ben Naparstek* em 2008, a escritora norte-americana Toni Morrison parece não se considerar "tributária" das obras de outras autoras negras na década de 1960 (época em que ela dá os primeiros passos na ficção literária): "A maioria era sobre quanto as pessoas eram real e verdadeiramente nobres no mundo negro. Eu escrevia sobre como era realmente a dor".
Lançado em 1970 - mas elaborado a partir de 1965 - o primeiro livro de Toni Morrison, O olho mais azul** é, fora de dúvida, uma narrativa dolorosa. Ora, mas quem determinou que o sofrimento não faz parte da Literatura?
Na mesma entrevista, a escritora conta que escreveu esse trabalho porque "nunca li sobre ' mim ' em nenhum dos livros que amei - e por ' mim ' quero dizer uma das mais vulneráveis pessoas da sociedade: uma criança, uma mulher e uma criança mulher negra"***.
No caso específico de O olho mais azul, essa criança mulher negra é identificada: Pecola Breedlove - queria ter olhos azuis, iguais aos da estrela cinematográfica infantil Shirley Temple, para que os outros gostassem mais dela e ela própria se sentisse mais bonita. Esse desejo bizarro revela a que ponto se pode internalizar o racismo, junto com o sentimento de inferioridade a ele associado.
O preconceito e o racismo muitas vezes tornam invisíveis (portanto, desprezíveis), aos olhos de quem os carrega, aqueles que não pertencem a seu grupo racial. Numa das passagens do romance - que se passa no início dos anos 1940 - essa situação é narrada de forma ímpar. Pecola, munida de três centavos para comprar doces, vai a uma loja cujo proprietário é "um comerciante branco, imigrante, de 52 anos, com gosto de batatas e cerveja na boca, a mente adestrada na Virgem Maria de olhos meigos, a sensibilidade embotada por uma permanente consciência de perda". Como um indivíduo assim - pergunta a narradora - "pode ver uma menina negra?"
Separados pelo balcão, Pecola
"ergue os olhos para ele e enxerga o vácuo onde deveria haver curiosidade. E algo mais. A total ausência de reconhecimento humano - a vitrificada separação. [...] Ainda assim, esse vácuo não é novidade para ela. Tem gume, em algum ponto na pálpebra inferior está a aversão. Ela a tem visto à espreita nos olhos de todos os brancos. Deve ser por ela a aversão, pela sua negritude. Tudo nela é fluidez e expectativa. Mas sua negritude é estática e medonha. E é a negritude que explica, que cria o vácuo afiado pela aversão em olhos de brancos".
Convivendo numa família pobre e embrutecida, Pecola, em sua fragilidade, não consegue defender-se das terríveis agressões e violências às quais é submetida (entre elas, o estupro).
No final do romance, a narradora nos relata que a menina negra desejosa por olhos azuis estava agora "entre todo o lixo e toda a beleza do mundo - que é o que ela própria era. Todo o nosso lixo, que jogamos em cima dela e que ela absorveu. E toda a nossa beleza, que foi primeiro dela e que ela deu a nós. Todos nós - todos os que a conheceram - nos sentimos tão higiênicos depois de nos limparmos nela".
Não há um traço sequer de triunfalismo nessa narrativa. Ninguém é poupado (nem o leitor):
" [...] não éramos fortes, apenas agressivos; não éramos livres, meramente autorizados; não éramos compassivos, éramos polidos; não bons, mas bem-comportados. Cortejávamos a morte a fim de nos chamarmos de corajosos, e escondíamo-nos da vida como ladrões. Substituíamos intelecto por boa gramática; mudávamos os hábitos para simular maturidade; rearranjávamos mentiras e as chamávamos de verdade, vendo no padrão novo de uma ideia antiga a Revelação e a Palavra".
Falávamos, no início da postagem, sobre dor. Não se sai das duzentas e poucas páginas de O olho mais azul com a alma aliviada. Melhor assim.
* NAPARSTEK, Ben. Encontros com 40 grandes autores. São Paulo: Leya, 2010. [Tradução de Elisa Nazarian]
** MORRISON, Toni. O olho mais azul. São Paulo: Companhia das Letras, 2003 [Tradução de Manoel Paulo Ferreira]
*** Essa declaração é semelhante à que se encontra no posfácio (escrito pela autora) da edição acima referenciada de O olho mais azul : "Concentrei-me, então, em como algo tão grotesco quanto a demonização de uma raça inteira podia criar raízes dentro do membro mais delicado da sociedade: uma criança; do membro mais vulnerável: uma mulher".
BG de Hoje
Sou um mineiro falsificado. Qualquer dia falo a respeito. Deve ser por esse motivo que não sou nada fã de MILTON NASCIMENTO. Gosto de uma ou outra canção, nada além disso. Itamarandiba é uma dessas.