segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Velhice


"A velha era nada. E olhava para o ar como se olha para Deus. Ela era feita de Deus. Isto é: tudo ou nada".

Do conto A partida do trem - Clarice Lispector


Quando completei 41 anos não pude deixar de recordar aqueles famosos versos de Carlos Drummond de Andrade*:

"Há muito suspeitei o velho em mim
Ainda criança, já me atormentava.
Hoje estou só. Nenhum menino salta
de minha vida, para restaurá-la".

Para ser franco, desde que passei dos trinta, não mais me incomodo com esse velho dentro de mim; passei a aceitá-lo resignadamente. A "mão pesada" do tempo - lembrando agora outros versos daquele maravilhoso poema -, trazendo com ela as "rugas, [a ausência de] dentes, calva", não chegou a me surpreender quando o corpo, além da alma precocemente idosa, também começou a envelhecer. Caducidade, cá estou.

Mas não é sobre meu envelhecimento que desejo escrever hoje. Dias atrás estava lendo Onde estivestes de noite**, de Clarice Lispector, e chamou-me a atenção como se fala da velhice nalgumas das narrativas ali presentes. Irei me concentrar na primeira delas apenas.

Em A procura de uma dignidade, a personagem central (a Sra. Jorge B. Xavier) tem quase 70 anos e percebe que já "era tarde demais para ter um destino". Tem fantasias eróticas com Roberto Carlos (na época, um jovem ídolo televisivo). Pensando nelas,

"Examinou-se ao espelho para ver se o rosto se tornaria bestial sob a influência de seus sentimentos. Mas era um rosto quieto que já deixara há muito de representar o que sentia. Aliás, seu rosto nunca expressara senão boa educação. E agora era apenas a máscara de uma mulher de 70 anos. Então sua cara levemente maquilada pareceu-lhe a de um palhaço. A senhora forçou sem vontade um sorriso para ver se melhorava. Não melhorou".

Achando-se, externamente, "seca como um figo seco", não se considerava, contudo, "esturricada" por dentro: "pelo contrário" - e a comparação da narradora é amarga, mas extraordinária do ponto de vista literário - "parecia por dentro uma gengiva úmida, mole assim como gengiva desdentada".

Aos 70 anos, não perdera o desejo sexual. Mas como dar vazão a ele?

"Por que as outras velhas nunca lhe tinham avisado que até o fim isso podia acontecer? Nos homens velhos bem vira olhares lúbricos. Mas nas velhas não. Fora de estação. E ela viva como se ainda fosse alguém, ela que não era ninguém"

Em determinado momento, a Sra. Jorge B. Xavier se pergunta: "por acaso era nojento beijar boca de velha?". Ela "não estava habituada a ter quase 70 anos, faltava-lhe prática e não tinha a menor experiência". Mas, afinal de contas, quem está preparado para ser um velho? Essa parece ser uma das questões que emergem desse conto.

A velhice, tal como a pobreza, é caracterizada por renúncias; por pessoas, ações e coisas  das quais temos que desistir. Tanto a velhice quanto a pobreza são tristes. E muitos, como eu, estão condenados a ambas. Irremediavelmente, nos dois casos.
__________
* Estão no poema Versos à boca da noite

** LISPECTOR, Clarice. Onde estivestes de noite. 8 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1997

BG de Hoje

Canção pra viajar (nos diversos sentidos desse verbo): SONIC YOUTH: Stones