O termo ateísmo não é de definição simples e inequívoca, como pode parecer à primeira vista*. Geralmente, entende-se por ateu aquele indivíduo que não acredita na existência de deus(es). Desde aqui surge uma complicação: quase todos aqueles que têm uma religião ou creem numa divindade também não costumam crer na(s) divindade(s) pertencente(s)s a outras religiões que não a deles. Isso me lembra aquele inteligente cartaz usado pela ATEA (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos) há algum tempo (imagem abaixo):
Mesmo que o conceito comporte variações, o ateísmo é uma negação. De quê? Do teísmo (daí, a -teísmo). Mas de que teísmo se está falando? Para melhor compreender o posicionamento dos ateus seria adequado, então, compreender também o que eles recusam, ou seja, qual a doutrina subjacente à negação assumida. Este blogueiro, na condição de ateu, não crê em divindades, entidades místicas, "seres superiores" ou outras forças sobrenaturais, mas para que a discussão fique mais clara de agora em diante, terei em mente apenas o monoteísmo judaico-cristão, atualmente predominante na civilização ocidental e familiar a todos nós, sobretudo em suas ramificações católica e protestante/evangélica.
O pesquisador Gavin Hyman (senior lecture da Universidade de Lancaster, Reino Unido), no ótimo ensaio O ateísmo na história moderna**, procura expor qual é a concepção de Deus que é rejeitada pelo ateísmo nos tempos modernos.
Considerando que a modernidade, mais do que um período histórico, é antes um " 'modo de pensar' ou [uma] 'sensibilidade' ", o pesquisador britânico aponta o "desejo de um domínio omniabarcante da realidade por meios racionais e/ou científicos" como uma característica essencial do pensamento e da cultura "dominante a partir do século XVI e que permanece forte até cerca de meados do século XX, quando começam a insinuar-se sinais de uma crise na autoconfiança da modernidade".
Pois bem, qual é o teísmo moderno rejeitado pelos ateus? Hyman observa que a concepção moderna de Deus afasta - às vezes mais, às vezes menos - a característica que Tomás de Aquino julgava a mais essencial da divindade: a transcendência. Para aquele teólogo (e filósofo) pré-moderno, a racionalidade humana é limitada e nunca conseguiria aproximar-se da verdade divina (vale lembrar que, para o tomismo, Deus e verdade estão imbricados). Mas "à medida que a dignificação da linguagem precisa, unívoca e mecânica infiltrou tanto o pensamento filosófico como o teológico", Deus passou por uma "mudança qualitativa". A esse respeito, o ensaísta lembra a concepção de Henry More (teólogo inglês do século XVIII) segundo a qual existem no mundo corpos espirituais e corpos sólidos;
"[...] Deus é o espírito mais elevado, de modo que todos os outros espíritos dependem dele. Enquanto espírito, Deus tem extensão, mas a sua extensão é infinita; é o próprio espaço. O que há de significativo nisto é que Deus está aqui a ser concebido como algo que tem um lugar e função identificáveis no seio do mundo natural".
Esse Deus "parte da natureza" tornou-se mais fácil de ser descartado ao ser submetido ao crivo da racionalidade humana.
Observemos, contudo, outro ponto do ensaio para compreendermos isso um pouco melhor. Gavin Hyman manifesta um ponto de vista argumentativo (para mim, surpreendente) no qual afirma ter havido uma pequena "revolução" nos meios teológicos e que esta acabou por favorecer o ateísmo moderno, mais do que as críticas, diríamos, secularistas. Essa pequena "revolução" começaria no século XIV com o eminente teólogo escocês John Duns Scotus (ou João Duns Escoto, como é chamado em alguns textos em língua portuguesa). Ele foi o primeiro a rejeitar "explicitamente a diferença entre o ser divino e o ser humano". Scotus defendia que o finito (humano) e o infinito (Deus) partilhavam do mesmo ser, ou seja, não diferiam ontologicamente. Escreve Hyman:
"Dado que existe apenas um só nível de ontologia, Deus não pode ser visto como algo que transcende a ontologia deste mundo, tendo de algum modo de ser integrado - é preciso dar-lhe uma função e uma localização - na ontologia deste mundo. Como tal, Deus torna-se uma 'coisa' (apesar de ser uma 'coisa' suprema) entre as outras coisas deste mundo. Mas esse Deus corre o risco não apenas de parecer incrível ou inacreditável (uma 'coisa grande' que depressa se torna demasiado obviamente uma projeção das 'coisas comuns'), mas também, à medida que o mundo se torna mais capaz de se explicar a si mesmo e mais autossuficiente, cada vez mais supérfluo. Num tal mundo, o ateísmo torna-se quase irresistível".
Se a sensibilidade moderna é marcada pelo desejo de explicar racionalmente e/ou cientificamente a realidade em que vivemos, o ateísmo "casa-se" bastante bem com a modernidade. O teísmo moderno não pôde deixar de ser influenciado pelo racionalismo e pelo empirismo nas suas "versões" do século XVII. Ao propor a mudança qualitativa de Deus (em relação ao tomismo, pré-moderno), esse tipo de teísmo incorporou Deus à natureza, ao mundo físico/sensível, e o fez objeto da linguagem. É essa concepção de Deus negada pelo ateísmo moderno. Isso, claro, tem outros desdobramentos. Mas deixo-os para outra oportunidade.
Na próxima semana, falarei de um tema controverso: há relação entre aprimoramento intelectual/inteligência e ateísmo?
Considerando que a modernidade, mais do que um período histórico, é antes um " 'modo de pensar' ou [uma] 'sensibilidade' ", o pesquisador britânico aponta o "desejo de um domínio omniabarcante da realidade por meios racionais e/ou científicos" como uma característica essencial do pensamento e da cultura "dominante a partir do século XVI e que permanece forte até cerca de meados do século XX, quando começam a insinuar-se sinais de uma crise na autoconfiança da modernidade".
Pois bem, qual é o teísmo moderno rejeitado pelos ateus? Hyman observa que a concepção moderna de Deus afasta - às vezes mais, às vezes menos - a característica que Tomás de Aquino julgava a mais essencial da divindade: a transcendência. Para aquele teólogo (e filósofo) pré-moderno, a racionalidade humana é limitada e nunca conseguiria aproximar-se da verdade divina (vale lembrar que, para o tomismo, Deus e verdade estão imbricados). Mas "à medida que a dignificação da linguagem precisa, unívoca e mecânica infiltrou tanto o pensamento filosófico como o teológico", Deus passou por uma "mudança qualitativa". A esse respeito, o ensaísta lembra a concepção de Henry More (teólogo inglês do século XVIII) segundo a qual existem no mundo corpos espirituais e corpos sólidos;
"[...] Deus é o espírito mais elevado, de modo que todos os outros espíritos dependem dele. Enquanto espírito, Deus tem extensão, mas a sua extensão é infinita; é o próprio espaço. O que há de significativo nisto é que Deus está aqui a ser concebido como algo que tem um lugar e função identificáveis no seio do mundo natural".
Esse Deus "parte da natureza" tornou-se mais fácil de ser descartado ao ser submetido ao crivo da racionalidade humana.
Observemos, contudo, outro ponto do ensaio para compreendermos isso um pouco melhor. Gavin Hyman manifesta um ponto de vista argumentativo (para mim, surpreendente) no qual afirma ter havido uma pequena "revolução" nos meios teológicos e que esta acabou por favorecer o ateísmo moderno, mais do que as críticas, diríamos, secularistas. Essa pequena "revolução" começaria no século XIV com o eminente teólogo escocês John Duns Scotus (ou João Duns Escoto, como é chamado em alguns textos em língua portuguesa). Ele foi o primeiro a rejeitar "explicitamente a diferença entre o ser divino e o ser humano". Scotus defendia que o finito (humano) e o infinito (Deus) partilhavam do mesmo ser, ou seja, não diferiam ontologicamente. Escreve Hyman:
"Dado que existe apenas um só nível de ontologia, Deus não pode ser visto como algo que transcende a ontologia deste mundo, tendo de algum modo de ser integrado - é preciso dar-lhe uma função e uma localização - na ontologia deste mundo. Como tal, Deus torna-se uma 'coisa' (apesar de ser uma 'coisa' suprema) entre as outras coisas deste mundo. Mas esse Deus corre o risco não apenas de parecer incrível ou inacreditável (uma 'coisa grande' que depressa se torna demasiado obviamente uma projeção das 'coisas comuns'), mas também, à medida que o mundo se torna mais capaz de se explicar a si mesmo e mais autossuficiente, cada vez mais supérfluo. Num tal mundo, o ateísmo torna-se quase irresistível".
Se a sensibilidade moderna é marcada pelo desejo de explicar racionalmente e/ou cientificamente a realidade em que vivemos, o ateísmo "casa-se" bastante bem com a modernidade. O teísmo moderno não pôde deixar de ser influenciado pelo racionalismo e pelo empirismo nas suas "versões" do século XVII. Ao propor a mudança qualitativa de Deus (em relação ao tomismo, pré-moderno), esse tipo de teísmo incorporou Deus à natureza, ao mundo físico/sensível, e o fez objeto da linguagem. É essa concepção de Deus negada pelo ateísmo moderno. Isso, claro, tem outros desdobramentos. Mas deixo-os para outra oportunidade.
Na próxima semana, falarei de um tema controverso: há relação entre aprimoramento intelectual/inteligência e ateísmo?
* Para os diversos conceitos de ateísmo sugiro a leitura da introdução geral de MARTIN, Michael (Org.). Um mundo sem Deus: ensaios sobre o ateísmo. Lisboa: Edições 70, 2010.
** HYMAN, Gavin. O ateísmo na história moderna. In: MARTIN, Michael (Org.). Um mundo sem Deus: ensaios sobre o ateísmo. Lisboa: Edições 70, 2010. p. 39-63
BG de Hoje
Canção de abertura de um dos mais importantes discos de rock da história - Exile on main street - que, na minha opinião, junto com o álbum gravado antes (Sticky fingers), inaugura a maturidade artística dos ROLLING STONES. Nome da faixa? Rocks off.