Em Deus, um delírio*, Richard Dawkins faz uma observação com a qual tenho forte concordância. Escreve o biólogo britânico:
"Como cientista, sou hostil à religião fundamentalista porque ela debocha ativamente do empreendimento científico. Ela nos ensina a não mudar de ideia, e a não querer saber de coisas emocionantes que estão aí para ser aprendidas. Ela subverte a ciência e mina o intelecto".
Obviamente, não sou cientista. Mas também penso que a religião (e, nalgumas vezes, não só a mais fundamentalista) "mina o intelecto". É claro que a condição humana reúne, em sua complexidade, uma quantidade de projetos de vida (entre estes, o religioso) cujos pontos de chegada não vão culminar no aumento do estoque de conhecimento científico nem o incremento da erudição em geral (artística ou filosófica). Não há problema nisso. Entretanto, não é difícil encontrar crentes** para os quais o desejo de aprimoramento intelectual - um projeto de vida legítimo como outros existentes por aí, portanto - é motivo de deboche e censura (esquecendo-se eles de que quando são a religião e/ou a fé os alvos do deboche e da censura, apressam-se a gritar e exigir respeito...). Convivi (e convivo) com muitas pessoas que desprezam outros livros (fontes de conhecimento), tendo em linha de conta somente aquele por elas considerado sagrado*** (no caso, a bíblia judaico-cristã).
Assumi minha condição de ateu por volta dos 13 ou 14 anos e, como se pode imaginar, a descrença religiosa consolidou-se progressivamente à medida que me fiz um leitor e estudioso mais exigente. Essa experiência pessoal nada tem de singular: é provável que a maioria dos ateus vivenciou algo semelhante. O que nos conduz à pergunta: existe relação entre aprimoramento intelectual e ateísmo?
O professor de psicologia israelense Benjamin Beit-Hallahmi, no ensaio Ateus: um retrato psicológico****, faz um apanhado de diversas pesquisas, publicadas principalmente nos EUA, sobre características e traços comportamentais das pessoas que se declaram ou são consideradas ateias. O levantamento vai de estudos realizados desde as primeiras décadas do século XX até os anos 1980-90. Sugiro sua leitura na íntegra, mas, para os objetivos desta postagem, vou me concentrar na análise feita sobre a relação entre intelectualidade e descrença religiosa. E é possível concluir que, a partir da análise, a relação é inversamente proporcional: ou seja, quanto mais instruídas e intelectualizadas são as pessoas, menos crentes são elas, tendencialmente.
O pesquisador israelense, em seu ensaio, considera que
"Além da inteligência, os acadêmicos e cientistas mais importantes exibem intelectualidade e intelectualismo, um comprometimento com a investigação. Num estudo de 2.842 estudantes de pós-graduação nos EUA, Stark (1963) descobriu que frequentar a igreja estava negativamente correlacionado com a auto-identificação como intelectual e com atitudes positivas perante a criatividade, a liberdade ocupacional e a ambição profissional. Assim, quem era religiosamente mais conformista parecia dar menos valor aos feitos intelectuais. Outros estudos mostram padrões bastante consistentes de menos envolvimento na religião institucional entre quem faz estudos pós-graduados, especialmente quem se identifica com o intelectualismo como valor".
E aqui reside o meu desagrado com o pensamento religioso. Para mim, o aprimoramento intelectual é um valor. Mas, como disse anteriormente, vários indivíduos a meu redor não compartilham desse valor, muito em virtude de suas crenças numa divindade.
Um outro ponto. Beit-Hallahmi cita outros dois estudos que mostram os pesquisadores das ciências sociais (humanas) como sendo mais descrentes que os pesquisadores das ciências da natureza (exatas). Ele arrisca uma explicação para isso:
"A razão, em termos psicológicos, é que as ciências da natureza aplicam critérios de pensamento crítico à natureza; as ciências humanas fazem perguntas críticas sobre a cultura, tradições e crenças. O mero fato de escolher a sociedade humana ou o comportamento como objeto de estudo reflete uma curiosidade sobre crenças e convenções sociais básicas e uma prontidão para as rejeitar. Os físicos, que estão a maior distância acadêmica [do estudo do comportamento ou da sociedade], podem conseguir isolar mais facilmente a sua ciência da religião".
Quero fazer notar ao(à) eventual leitor(a) que tomei o cuidado de não tentar relacionar inteligência e ateísmo (afinal, muitas pessoas inteligentes acreditam em divindades), preferindo vincular aprimoramento intelectual (uma escolha consciente do indivíduo) e descrença religiosa.
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* DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 [tradução de Fernanda Ravangnani]
** O termo crente está sendo usado nesta postagem com o significado de "aquele que acredita numa divindade", em oposição ao termo ateu ("aquele que não acredita em nenhuma"). Assim, crente, neste contexto, designa todos os que acreditam em Deus, independentemente da denominação religiosa da qual fazem parte.
*** É de se notar, contudo, que muitos crentes não são leitores habituais de seu livro sagrado.
**** BEIT-HALLAHMI, Benjamin. Ateus: um retrato psicológico. In: MARTIN, Michael (Org.). Um mundo sem Deus: ensaios sobre o ateísmo. Lisboa: Edições 70, 2010. p. 391-414 [Tradução de Desidério Murcho]
BG de Hoje
Dois dos filhos de CAETANO VELOSO são fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus. Ao que parece, todos têm um bom convívio (lembro que o compositor e cantor baiano é ateu). Isso demonstra que ninguém é obrigado a professar a fé (ou, nesse caso, a descrença) de seu(s) pai(s). No BG, a canção Diferentemente, em cujos versos há esse achado: "Diferentemente de Osama e Condoleezza/ Eu não acredito em Deus". (OBS: Desconsidere o slideshow ruim do vídeo abaixo)