terça-feira, 30 de agosto de 2016

Quatro poemas de João Cabral de Melo Neto



Segundo o crítico literário Antonio Carlos Secchin*, o poeta João Cabral de Melo Neto, ao longo de sua produção, sustentou que,

"quando se diz a palavra 'mesa' ou a palavra 'microfone', todos sabem do que se trata. Mas se alguém pronuncia 'beleza', 'amor' ou 'saudade', cada indivíduo vai entendê-las de um modo particular, obstruindo, pela polissemia, a dimensão univocamente compartilhável a que o poeta aspira. Encontramos na obra de João Cabral um predomínio inconteste de substantivos concretos sobre os abstratos. Outro dado interessante é que ele nega a existência de palavras que sejam a priori 'poéticas', pois isso implicaria a demissão do próprio poeta, reduzido a coletar ingredientes previamente preparados para adicionar à receita do texto. João Cabral sustenta que o poético é um efeito sintático, obtido no corpo a corpo com as palavras, e introduz na poesia brasileira vocábulos que ninguém ousava utilizar: cabra, ovo de galinha, aranha, gasolina, todos eles signos prosaicos, 'vulgares'. E abre uma confessa exceção: nunca conseguiu incluir 'charuto' em sua obra, considerando-o o termo menos aproveitável da língua portuguesa".

O poeta pernambucano, sabemos, nunca teve em alta conta a inspiração como força motriz da poesia. Sua poética - radicalmente antilírica, antirromântica - propugnou pelo esforço daquele que escreve em conter seu subjetivismo individualista, de modo a sofrear também a vaguidão de sentido do poema. Por isso o aspecto mais importante na obra de João Cabral é - para usar uma palavra cara ao artista - sua arquitetura, resultante do trabalho rigoroso de (re)elaboração do texto, uma vez que o poético, para ele, é um efeito antes sintático do que léxico, como bem observa Secchin no excerto acima.

Antes de prosseguir, gostaria de fazer uma breve revelação particular. Foi a leitura atenta dos poemas cabralinos que me curaram da poetice. Poetice é como chamo aquela pueril vontade de escrever poesia - afinal, qualquer um consegue sapecar uns versinhos por aí, não é mesmo? - vontade que acomete muitos indivíduos por volta do final da adolescência, mas estertora, felizmente, nos primeiros anos de vida adulta, quando o mero poeteiro percebe que o buraco é mais embaixo, graças ao contato sistemático ou, pelo menos, regular com os textos produzidos por poetas de verdade. Ler com atenção João Cabral de Melo Neto conduziu minha apreciação crítica de poesia para um horizonte no qual as composições furrecas que joguei no papel um dia não passavam de fumaça tóxica.

Observemos agora um dos quatro poemas selecionados para a postagem de hoje, todos publicados originalmente em 1975, no livro Museu de tudo**, um momento mais "flexível" - mas nem por isso menos valioso - dentro da granítica e vertebrada obra de João Cabral.

                MEIOS DE TRANSPORTE

§ O câncer é aquele ônibus
  que ninguém quer mas com que se conta;
  não se corre atrás dele,
  mas quando ele passa se toma;

  que ninguém quer mas sabe;
  e que um dia ao sair-se do sono,
  lá está, semi-surpresa,
  quase pontual, no seu ponto.

§ Sem pontos de parada,
  solto nas ruas como um táxi,
  sem o esperar, querer,
  sem ter por que, se toma o enfarte:

 táxi que, de repente,
 ao lado de quem não se pensava,
 para, no meio-fio,
 toma, quem não o vira ou chamara.

Dividido em duas partes, o poema não faz mistério nas imagens/metáforas que estabelece: câncer=ônibus - enfarte=táxi, formas corriqueiras de ser transportado para a morte. Note-se desde já quão pouco "poéticas" são as palavras-chaves escolhidas pelo autor (quantos incluiriam num escrito que se quer poético a palavra câncer, evitada até mesmo nas conversas cotidianas, por temor supersticioso?). Note-se também a ausência de adjetivos (exceto pontual, qualificativo, convenhamos, nada abstrato) entre as mais de 80 palavras usadas no poema. Passemos a outro texto, mas tendo em mente tudo o que estamos discutindo até agora.

            W. H. AUDEN
            (1905 - 1973)

Se morre da morte que ela quer.
É ela que escolhe seu estilo,
sem cogitar se a coisa que mata
rima com sua morte ou faz sentido.
Mas ela certo te respeitava,
de muito ler reler teus livros,
pois matou-te com a guilhotina,
fuzil limpo, do ataque cardíaco.

Uma vez mais, ocorrem pouquíssimos adjetivos, apenas no último verso - limpo, cardíaco (sendo que o segundo seria quase inevitável, dada a expressão da qual faz parte). Trata-se de um poema de circunstância, como vários que se encontram em Museu de tudo, homenageando (ou servindo de epitáfio a) Wystan Hugh Auden, poeta britânico radicado nos EUA, falecido dois anos antes da publicação desse livro de Cabral. O(a) eventual leitor(a) terá constatado a essa altura, observando os números de versos e tamanho das estrofes, a obsessão do autor pelo 4 e seus múltiplos: Meios de transporte compõe-se de 4 quadras, totalizando 16 versos; W. H. Auden, estrofe única de 8 versos.

"Às vezes" - diz Antonio Carlos Secchin - "um poema de Cabral ocupa uma única longa estrofe, aparentemente desobrigada do 4. Mas, se computarmos o total de versos chegaremos a 16, 32, 64... De 4 em 4 sempre ocorre uma espécie de insulamento de sentido, como se o poeta precisasse exatamente dessa medida para elaborar um pensamento". É mais um expediente previamente pensado, de cálculo, para conter a subjetividade individualista de modo que o esforço de construção, o artesanato do poema, ocupe o primeiro plano. Não escapou, claro, ao(à) eventual leitor(a) que os textos vistos até agora tematizam a morte e os males do corpo. Acrescentemos mais outro:

O ESPELHO PARTIDO

            1.

A morte pôs ponto final
à árvore solta do jornal-
romance pelo autor previsto
como câncer não como quisto.

Como câncer: signo da vida
que multiplica e é destrutiva,
câncer que leva outro mais dentro,
o câncer do câncer, o tempo.

             2.

Marques Rebelo compreendeu
na criação as leis do câncer:
a tensão do que se faz, entre
fazer e desfazer, pró e anti.

E não só nesse esgalhamento
com que ele se faz destruindo,
mas ao redestilar, do câncer,
o ácido de um sim negativo.

O Espelho Partido é um outro poema de circunstância, cujo título alude à trilogia escrita pelo romancista carioca Marques Rebelo e publicada entre 1959 e 1968. Tem também feição de necrológio; assim como W. H. Auden, Rebelo faleceu em 1973. Interessa-nos aqui, especificamente, a incisiva metáfora do poder corrosivo do tempo: "câncer que leva outro mais dentro/o câncer do câncer, o tempo". NOTA: Não custa lembrar rapidamente de outro texto no Museu de tudo (Duplicidade do tempo) em que esse poder é também metaforizado: "O níquel, o alumínio, o estanho/ e outros assépticos elementos,/ ao fim se corrompem: o tempo/injeta em cada um seu veneno".".

Tal como no primeiro poema lido nesta postagem o mesmo vocábulo "não-poético" ajuda a compor poesia de alta qualidade, entendida, já sabemos, sempre como um efeito sintático, ou seja, proveniente do plano das relações estabelecidas entre as palavras na estrutura conferida ao texto; não que o significado evocado por elas seja irrelevante, apenas que o valor artístico/estético do poema não depende disso.

Mais um (o último):

ANÚNCIO PARA COMÉSTICO

Nada há contra o tempo.
O homem tudo o que pode
é fechar-se ao espaço
redondo que o envolve;
jogar fora o espaço,
o fora, ele sim pode,
assim numa Cartuxa
que do ao redor o isole.
Mas o tempo é de dentro;
dentro dele faz-se, escorre,
e esse escorrer interno
não há nada que o corte.
Às vezes o ".........."
por certo tempo o encobre:
não o tempo ele próprio,
mas sim o corpo que ele morde,
já que o expressar do tempo
é roer o que percorre.

Essa sagaz reflexão sobre a impossibilidade de vencer/fugir do tempo (e, portanto, de sua corrosão, ou seja, o envelhecimento e, por conseguinte, a morte) diz logo o que se propõe a dizer, sem qualquer linguagem cifrada. Mais uma vez recorro a Antonio Carlos Secchin:

"A obra do poeta é clara, de claridade, porque é solar, meridiana, invadida de luz por todos os lados, e é também clara, de clareza, porque não propõe charadas. Não se cogita de 'isso quer dizer o quê? qual a mensagem escondida?'. Tudo está ali, à flor da página, à flor do texto. Mas o claro, quando excessivo, ofusca. Então, nos desnorteamos frente ao poema, não por ele ser hermético, mas por refugarmos diante de sua clareza. É ostensivamente visível o jogo proposto, e nós, caçadores de profundezas mirabolantes, perdemos a chance de topar com um tesouro que está na superfície da folha, sem aspirar a mistério algum".

O leitor pode, talvez, não ter claro em mente, por exemplo, a que o termo Cartuxa se refere (nesse caso, metonímia para monastério fechado; trata-se da ordem religiosa medieval, extremamente austera, fundada por São Bruno), mas todo o restante do poema não carrega qualquer intenção enigmática. Ah, e revela também um lado pouco ressaltado na obra de João Cabral: seu peculiaríssimo senso de humor.

João Cabral de Melo Neto - é inevitável - sempre será lembrado por Morte e vida severina. E não é mal que isso aconteça. O poeta, entretanto, tem muito, muito mais a oferecer. Essa postagem foi um modo de convidar o(a) eventual leitor(a) a frequentar essa poesia precisa, tantas vezes seca, quase sempre lúcida e bela a seu modo.

___________
* SECCHIN, Antonio Carlos. João Cabral: do fonema ao livro. In: _______. Escritos sobre poesia e alguma ficção. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003, p. 73-86

** MELO NETO, João Cabral de. Museu de tudo. In: ______. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 41-91

BG de Hoje

Soube que os PIXIES voltaram a se apresentar e tocar juntos. Boa notícia, mas nem tanto: soube também que não se trata da formação original. A baixista Kim Deal não está a bordo (seriam as famosas "diferenças criativas"?). De todo modo, mesmo não sendo um som sempre palatável, gosto de Pixies e escolho como BG uma das melhores canções da banda, uma das poucas cantadas por Deal (que também a compôs, junto com o controlador Black Francis): Gigantic.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

A brilhante tragicomédia de Will Self



Quando li pela primeira vez O livro de Dave*, há uns quatro anos, achei simplesmente fantástico. Naquela ocasião, entretanto, não escrevi uma linha sequer sobre o grande trabalho do ficcionista britânico Will Self. Farei-o agora, depois de ter relido, na semana passada, o romance lançado em 2006.

A narrativa, ao longo de seus 16 capítulos, alterna-se entre o "nosso" tempo - últimas décadas do século passado; início do atual - e um futuro pós-apocalíptico, distante centenas de anos. Alternam-se também momentos cômicos (por vezes grotescos) e momentos assustadoramente dramáticos e tensos. O sujeito citado no titulo da obra é Dave Rudman, apenas um taxista de Londres no "nosso" tempo, mas considerado um deus onipotente na era vindoura.

Nas grandes cidades, os taxistas constituem não apenas uma categoria profissional mas também uma espécie de tipo social (e, portanto, caricaturável), com suas práticas, manias e mentalidades peculiares, ajudando a compor o vasto folclore urbano. Tendo "passado metade de sua vida adulta dentro de um táxi", Dave Rudman é um homem altamente estressado e adoentado - fisica e mentalmente - porque seu universo de três dimensões - "tempo, distância e grana" - ficou ainda mais convulsionado em consequência do divórcio e, sobretudo, da perda de contato com o único filho. Ressentido, amargurado, racista, misógino e intransigente, Dave é um personagem nada simpático. Mas é impossível não se interessar por sua atribulada e, ao mesmo tempo, insignificante trajetória (pois quando ele passa a ser considerado deus já não se trata de Dave e sim da dävinanidade...), graças ao modo precioso como Will Self conduz e compõe a sua história, como acontece em toda boa Literatura. Uma pequena amostra do estilo do escritor: "A chuva amainara, passando a uma garoa que era como pregas de celulite nas poças cor de bosta, e um brilho oleoso a tudo banhava". Que singelo, não?

O livro de Dave pode ser lido como uma sátira às religiões, um estranho e fascinante guia turístico de Londres (pode-se dizer que a cidade acaba sendo o personagem central da narrativa) ou uma crítica à (in)sociabilidade humana - entre outras possibilidades.

Como visão crítica da convivência deteriorada característica de nossas sociedades irremediavelmente urbanas, observemos duas passagens:

1) "Michelle pensou em como a vida cotidiana era feita de uma série de pequenas ações malfeitas que, embora instantaneamente esquecidas, só traziam ruína, de um jeito ou de outro, tornando tudo grosseiro, torpe e indigno".

Quem faz essa reflexão (com a qual este blogueiro concorda integralmente, diga-se de passagem) é a ex-mulher de Dave Rudman, logo após saber que o ex-marido fora internado para tratamento psiquiátrico. O modo acidental como ela e Dave se conheceram é um ótimo exemplo dessas "pequenas ações malfeitas". Os poucos anos de duração de seu casamento - e o mal-estar experimentado por ambos dentro dele - demonstram que o resultado do convívio foi "apenas ruína, de um jeito ou de outro, tornando tudo grosseiro, torpe e indigno".

2) "Ele [Dave] dirigia - sair à esquerda em Frognal. Esquerda, Arkwright Road. Direita, Fitzjohn's Avenue - e discursava: merda isso, merda aquilo, macacada de merda e judeuzada de merda, putinhas de merda e mocreias de merda. Era como se, ao personificar um passageiro, Carl [o filho de Dave, entrando na adolescência nesse momento da narrativa, dando uma volta não planejada com o pai] houvesse se exposto ao mais profundo, escuro e atávico fluxo de consciência de um taxista".

As direções e indicações de trajeto são parte do chamado Conhecimento (The Knowledge), um conjunto de 320 rotas pelas ruas de Londres, que os profissionais precisam memorizar para passar nos testes organizados pelo PCO (Public Carriage Office), o principal órgão que regulamenta o serviço de táxi na capital da Inglaterra. O restante do excerto exibe o ódio acumulado dentro do cérebro perturbado do personagem. Recebendo e conduzindo diversos tipos de passageiros numa metrópole multicultural, tribalizada e socialmente heterogênea como Londres, Rudman (e seu táxi) circulam dentro desse amálgama colossal de gente incapaz de se suportar mutuamente mas que não pode deixar de ocupar e usar os mesmos espaços todos os dias (como, alías, acontece em qualquer grande cidade mundo afora).

Mencionei que O livro de Dave é um estranho e fascinante guia turístico de Londres. É também uma homenagem - estranhíssima, mais uma vez - à cidade. "Londres, London, Lõn-dãn - duas sílabas plúmbeas, como podiam ser tão mágicas? Ele [Dave] anelava Londres como uma identidade. Queria ser um londrino [...]". Noutra passagem, encontramos:

"Este [o interior de um black-cab, o tradicional táxi londrino] - era o que pareciam dizer - é o verdadeiro interior de Londres; seus insalubres prédios de escritórios, suas casas abafadas - até mesmo seus túneis de metrô abertos à força de broca - não passam de meras meias-águas, desprotegidas dos elementos. É apenas quando você se encontra dentro de um de nós que se vê inteiramente acomodado".

Por mais maluco que pareça, não consigo ver apenas derrisão no modo como o narrador desanca sua cidade; há também ali uma dose meio oculta de fascinação.

Mas é principalmente como composição satírica, tendo como alvo as religiões, que o romance de Will Self rende seus melhores momentos.

No auge de seu colapso mental e delirante (e "inspirado" pelo mormonismo), Dave Rudman escreve - e manda imprimir em metal - um livro ao qual, junto com o Conhecimento dos taxistas londrinos, adiciona uma série de regras para a vida conjugal e sexual, espelhadas nas situações experimentadas dentro de seu naufragado casamento com Michelle. Segundo a psiquiatra Jane Bernal, médica a quem o taxista recorreu, "é uma coleção de prescrições e exigências ao que parece derivados do mundo do trabalho dos taxistas londrinos, uma compreensão tortuosa numa mixórdia de fundamentalismo, mas na maior parte a própria misoginia vingativa de Rudman".

A peça metálica gravada foi enterrada no quintal da casa onde Michelle vivia com o novo companheiro e Dave esperava que um dia fosse tirada do buraco e lida pelo filho, Carl. Pois bem. Uma catástrofe ambiental atinge o planeta (consequência do aquecimento global, talvez?) e submerge diversas áreas. Após centenas de anos o livro de metal é desenterrado e os delírios de um taxista que não estava batendo bem da cachola tornam-se a base de uma religião cuja divindade absoluta é Dave.

As rotas que integravam o Conhecimento dos taxistas são tidas como "palavras arcanas"; os sacerdotes dessa religião são chamados "motoristas"; a própria percepção dos fenômenos da natureza é moldada pelo que está escrito no livro sagrado - o céu chama-se "vidro", a chuva, "lava-rápido", a lua, "lanterna" e a água potável, "evian", uma famosa marca de água engarrafada da Danone. O evento primordial de criação do universo e da vida presente nele recebe o nome de MadeInChina...

Will Self é genial ao valer-se dessa singular sociedade - situada no futuro, mas arcaica até o talo - para investir contra o absurdo inerente às interpretações dos supostos livros sagrados (e o absurdo representado pela própria existência de livros tidos como sagrados); contra o autoritarismo e a sanha opressora e punitiva característicos das organizações religiosas, além de execrar o papel de submissão que as crenças em divindades sempre destinaram às mulheres.

O livro de Dave acabou virando um de meus livros prediletos, mesmo tendo me aproximado dele poucos anos atrás. Não se surpreenda o(a) eventual leitor(a) se voltar a escrever sobre essa obra brilhante repetidas vezes aqui no blog.

Na próxima postagem falarei de alguns poemas de João Cabral de Melo Neto.
__________
* SELF, Will. O livro de Dave. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009 [Tradução de Cássio de Arantes Leite]

BG de Hoje

Mais do que uma artista, MADONNA é um ícone da cultura pop, embora não tenha hoje a popularidade atingida em seu auge nas décadas de 1980-90. Musicalmente falando, deve-se reconhecer, faz anos que não lança um disco relevante ou emplaca ao menos um hit radiofônico. Penso que seu último grande álbum apareceu em 2000, um CD intitulado justamente Music. Nele aparece a faixa Don't Tell Me, combinando um fraseado simples de violão com uma levada trip-hop hipnotizante, acompanhada de outros efeitos de estúdio. Além disso, a coreografia apresentada na segunda parte do clipe abaixo é muito legal.

OBS: Sempre notei um certo lado homoerótico no universo country (inclusive na sua versão abrasileirada). E aquelas calças apertadinhas e - sobretudo - as botas chiquéééérrimas são uma coisa bem gay, não? Nada de mal ou errado nisso, claro. Mas não é estranho que a maioria dos adeptos desse estilo seja tão homofóbica (além de machista)?


quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Estes tempos velozes combinam com Literatura?




Em setembro de 2010 escrevi aqui sobre uma das conferências de Italo Calvino reunidas em Seis propostas para o próximo milênio*. Preciso hoje voltar às suas reflexões.

Como se sabe, naquele livro, o escritor defende "alguns valores literários que mereciam ser preservados", ainda que não tenhamos indicação alguma dos rumos a serem tomados pela Literatura nos mil anos vindouros. Os valores seriam a leveza, a rapidez, a exatidão, a visibilidade, a multiplicidade e a consistência (Calvino, todavia, faleceu antes de escrever sobre o último). Assim como na postagem de 2010, vamos nos ater apenas à rapidez.

De acordo com o autor italiano, "o século da motorização [o século XX] impôs a velocidade como um valor mensurável, cujos recordes balizam a história do progresso da máquina e do homem". E assim permanece no século XXI. A lentidão, pelo que temos visto, não combina com a lucratividade de uma economia cada vez mais dependente de um mercado financeiro voraz, interconectado, que reage a mudanças em questão de minutos. A lentidão, ao que tudo indica, também não tem a simpatia de seres humanos ansiosos e impacientes, cada vez mais dependentes de seus pequenos dispositivos eletrônicos portáteis. "Numa época em que outros media triunfam, dotados de uma velocidade espantosa e de um raio de ação extremamente extenso", ainda segundo o italiano, que formas assumirá o texto literário? Ele chega a dizer que imagina "imensas cosmologias, sagas e epopeias encerradas nas dimensões de um epigrama". Basta ler As cosmicômicas, Cidades invisíveis e, principalmente, Palomar para entender por que Calvino advoga em favor da rapidez  e da narrativa condensada, de breve duração: "[...] meu temperamento me leva a realizar-me melhor em textos curtos - minha obra se compõe em sua maior parte de short stories".

A propósito, outro mestre em narrar por meio dos escritos pouco extensos e altamente concentrados foi Jorge Luis Borges, que nunca publicou um romance. Entretanto, sua História universal da infâmia, Ficções, O livro dos seres imaginários - entre outros - atestam que o tamanho de um texto nada diz de sua qualidade. Menciono, por exemplo, o conto O espelho e a máscara (d'O livro de areia**), um primor de condensação narrativa, cujo mote é o trabalho de um poeta encarregado de enaltecer, através de sua pena, a batalha vencida por seu monarca. Após três anos de trabalho árduo do poeta (e modificações e supressões aconteceram a cada apresentação anual da peça), restou apenas uma linha: "Sem se animarem a pronunciá-la em voz alta, o poeta e o Rei a saborearam, como se fosse uma prece secreta ou uma blasfêmia", lemos no sensacional conto do escritor argentino, sem descobrir o que continha aquele único verso. "Nasce com Borges" - nos diz Calvino - "uma literatura elevada ao quadrado e ao mesmo tempo uma literatura que é como a extração da raiz quadrada de si mesma".

A rapidez não é impedimento para a existência de uma produção literária maiúscula. Contudo, entre tanta gente apressada e inquieta no mundo, não se encontram muitos leitores de Borges - e de Calvino - andando por aí.

Dentro do ônibus ou no metrô, na espera da consulta médica e, talvez, antes de pegar no sono, deitados na cama, é possível flagrar alguns indivíduos com livros nas mãos (cercados, contudo - é claro! -, por zilhões de outros movendo freneticamente os polegares sobre a tela de seus inseparáveis aparelhinhos). Na maioria das vezes, o que se lê nessas ocasiões, noto geralmente, é autoajuda e psicologia de araque, (muita) religião e esoterismo, além de títulos vinculados à indústria do cinema/entretenimento (e já vi passageiros no transporte coletivo, em pé, segurando um daqueles taludos exemplares da saga assinada por George R. R. Martin, a despeito do desconforto do veículo lotado). Obviamente, as pessoas leem o que quiserem, independentemente do que sujeitos metidos a besta (como este blogueiro) achem de seus gostos e interesses individuais. Meu ponto aqui, porém, vai em outra direção agora.

Fala-se muito em falta de tempo. Fala-se bastante também em correria: todo conhecido com quem topamos alega sempre estar numa correria dos infernos (ironicamente, nossas atuais sociedades, urbanizadas, apresentam altos índices de obesidade entre a sua população, cada vez menos disposta a correr, no sentido literal). Tanta pressa, tanta falta de tempo, tanta correria... Surge, então, o questionamento:  a opção - mais do que isso, o exercício - da escrita e da leitura literárias combinam com essa velocidade quase tirânica, inescapável, de nossa era? Antes de responder, gostaria de falar sobre três livros que li no último fim de semana.

. . . . . . .

1) Um exemplo de que rumo a Literatura poderá tomar de agora em diante (e não quero dizer com isso que é um exemplo excelente, nem que é o rumo certo) pode ser encontrado no despretensioso livro A vida na porta da geladeira, de Alice Kuipers (Editora Martins Fontes, 2009, tradução de Rodrigo Neves). A narrativa focaliza o convívio das duas personagens centrais - mãe e filha - através dos bilhetes que cada uma deixa na porta do refrigerador durante quatro meses. Nesse intervalo de tempo, a mãe, médica, enfrenta grave complicação, enquanto a filha, uma estudante de 15-16 anos, atravessa os altos e baixos de sua pouca idade.

É possível ler A vida na porta da geladeira em menos de uma hora e meia. Como é composto por recados breves (muitos destes formados por apenas seis ou sete frases), a leitura segue ligeira e (para minha surpresa) bem agradável. No momento em que digito este texto, aposto, milhares de escritoras e escritores sem ter quem os leia devem estar ansiosos por um insight como esse de Alice Kuipers.

2) Leva-se também pouquíssimo tempo para terminar Adeus conto de fadas (Editora 7 Letras, 2006), reunião de minicontos escritos por Leonardo Brasiliense. Na orelha do livro, Marcelo Spalding observa que "o miniconto é um gênero que cresce no mundo todo, e cada vez mais a partir da internet" (onde o autor foi "descoberto" graças a seu site: www.leonardobrasiliense.com.br). O que me leva a pensar: manter um endereço na web (seja site, blog ou página/perfil em mídia social) parece ter se tornado quase indispensável para os artistas (inclusive escritores).

Voltando a Adeus conto de fadas, vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Melhor Livro Juvenil em 2007, reproduzo abaixo um miniconto que representa bem esse livro e seu leitor-destinatário:

MULTIMIMDIA

Tô jogando Battlefield com o Marcelo na internet, teclando com a Angélica no messenger, falando com o Didi no skype, pegando o maior tédio num chat, olhando um filme de terceira na TV a cabo, ouvindo meu mp3 player... tudo ao mesmo tempo. Ah, e além disso, lendo um livro de minicontos, o que me inspirou a dar uma de escritor e escrever este aqui. O quê? Não ficou bom? Mas por quê?

3) Por fim, os Contos mínimos, de Heloísa Seixas (Editora Best Seller/Record, 2006) dizem a que vieram logo no título da antologia. A escritora reconhece que alguns de seus textos (publicados inicialmente numa revista suplementar do extinto Jornal do Brasil) nem sempre são reconhecidadmente contos, mas que "atravessam uma fronteira imprecisa e têm sabor de crônica". Todas as 50 narrativas cabem em apenas duas páginas (exceção para Confete e Os ratos, acho eu). Na última delas, intitulada justamente Um conto mínimo (e uma das melhores), Heloísa Seixas fala de um acidente ocorrido com um avião japonês e escreve:

"Somos todos - não só artistas, mas todos nós - como aqueles japoneses desesperados. Vivemos tentando deixar nossas pegadas, apressados entre o início e o fim da viagem, sem saber ao certo o que acontecerá. E tudo passa num sopro, uma rajada, não dura mais do que alguns minutos diante do arco da eternidade.

A vida é um conto mínimo."

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A opção - mais do que isso, o exercício - da escrita e da leitura literárias combinam com essa velocidade quase tirânica, inescapável, de nossa era? Esse é o questionamento mantido em suspensão pelo blogueiro até agora. Necessário respondê-lo.

Diria que o tipo de Literatura pelo qual me interesso não combina com a velocidade. Não me entenda mal, eventual leitor(a): gosto também de textos curtos e rápidos. Minha opinião, porém, tem menos a ver com o tamanho das obras e mais com aquilo que estas requerem, exigem, do sujeito leitor.

Percebo, atualmente, no polo da recepção do texto literário, muita dispersão, muita superficialidade, pouca vontade de parar para pensar. A esse respeito, recomendo a leitura do pequeno e excelente artigo do professor da Fundação Getúlio Vargas, Thomaz Wood Jr., publicado na sua coluna da revista Carta Capital, em março do ano passado. Em A era da impaciência, Wood Jr. observa que estar o tempo todo envolvido com os smartphones, tablets e laptops da vida pode não ser tão bom negócio. As pessoas estão mais desatentas e apresentando menor capacidade analítica. Ele escreve:

"Não faltam exemplos: alunos lacrimejam e bocejam depois de 20 minutos de aula; leitores parecem querer textos cada vez mais curtos, fúteis e ilustrados; executivos saltam furiosamente sobre diagnósticos e análises e tomam decisões na velocidade do som; projetos são iniciados e rapidamente esquecidos; reuniões iniciam sem pauta e terminam sem rumo. Hipnotizados por tablets e smartphones, vivemos em uma sociedade assolada pelo transtorno do déficit de atenção e pela impaciência crônica".

Percebo também uma certa... preguiça mental: basta ver a quantidade de pessoas que reclamam de "textões" no Facebook ou a expressão norte-americana típica de alguns usuários de mídias sociais - tl;dr ("too long; didn't read").

Existe uma obsessão por interagir com outras pessoas o tempo todo e pouca disposição para ficar sozinho, pelo menos de vez em quando - condição que julgo essencial para alguém se tornar um leitor de verdade.

Junto a tudo isso, há o modo como cada indivíduo experimenta e vivencia a passagem do tempo. As pessoas lentas, como este blogueiro, têm grande dificuldade de entender (e se fazer entender pelas) pessoas velozes, aquelas que controlam o ritmo do mundo. Foi, aliás, um livro da psicanalista e ensaísta Maria Rita Kehl (sobre o qual já escrevi aqui e aqui) que me fez pensar nesse último ponto.

Quando tiver oportunidade, retomo essa discussão.

* CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990 [tradução de Ivo Barroso]

** BORGES, Jose Luis. O livro de areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 [Tradução de Davi Arrigucci Jr.]

BG de Hoje

Não sou sempre a brutalidade em pessoa. Emociono-me, choro, sinto saudade e carência afetiva como qualquer outra pessoa. E ontem à noite fiquei pensando muito nessa canção. É a balada mais bonita que conheço - Is it okay if I call you mine?, composta e interpretada pelo ator PAUL McCRANE para o inesquecível filme Fama, de 1980. "And what I'm trying to say isn't really new/It's just the things that happen to me when I'm reminded of you". Chega a apertar o coração.