quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Os narradores-meninos de Ondjaki


Em determinado trecho do romance Bom dia camaradas*, o narrador (uma criança) faz um desabafo:

"Nesses dias, quando me acontecia não conseguir evitar pensar nessas coisas [o fim da infância], ficava muito triste, porque embora ainda faltassem muitos anos para o fim dos anos lectivos, um dia eles iam acabar, e os mais velhos não fazem indisciplina na sala de aulas, não apanham falta vermelha, não dizem disparates na sala de aulas com professores cubanos que não entendem esses disparates, os mais velhos não aumentam automaticamente as estórias que contam, os mais velhos não ficam assim um monte de tempo a falar só das coisas que uma pessoa já fez ou gostava de fazer, os mais velhos nem sabem uma boa estiga!"

E, conclui, revelando alguma apreensão:

"Isso de ser mais velho deve masé dar muito trabalho".

A vida traz complicações para todos - tenhamos pouca ou muita idade - e o escritor angolano Ondjaki prefere olhar o mundo com os olhos de menino. Se os mais velhos têm lá suas makas (seus problemas, suas questões) próprias, os miúdos lidarão com os fatos por meio de outra forma de percepção, mais ingênua, imaginativa, um tanto malvada às vezes e, não raro, lírica.

Esse lirismo é mais evidente nas falas do narrador dos diversos livros de Ondjaki, que, com pequenas variações (e muitas continuidades) de uma história para outra, exibem traços biográficos do autor (que é também poeta).

Noutro romance  - AvóDezanove e o segredo do soviètico** -, em conversa com o extravagante personagem EspumaDoMar - o narrador-menino se mostra preocupado com a sua "vocação" poética:

" - Gosto da palavra 'segredo', parece uma coisa misteriosa onde cabe muita coisa.
- Me gusta tu modo de pensar. Puede que lhegues a ser un poeta.
- Não quero, muito obrigado. Já ouvi dizer que os poetas ficam malucos.
- No, no es verdad. Los poetas son locos, pero ese es otro tipo de locura. No te preocupes... [...]"

Esse narrador-menino não quer que o precioso tempo da meninice se vá. Está cheio de convicção quando diz a uma colega de escola, em Bom dia camaradas, que sabe "perfeitamente que estes são os melhores tempos da nossa vida [...]". Tornar-se adulto é despedir-se da infância e ele não gosta das despedidas porque estas não tem o "cheiro bom tipo chá-de-caxinde, ou as plantas a darem ares duma primeira respiração na frescura da manhã, entre silêncios e cacimbos molhados", como está escrito no comovente conto Um pingo de chuva (do livro Os da minha rua***). "Não. Despedida tem cheiro de amizade cinzenta. Nem sei bem o que isso é, nem quero saber. Não gosto mesmo de despedidas".

"Camuflar-se" na voz de uma criança permite também ao autor abordar, com maior leveza, temas mais graves, como, por exemplo, o ambiente belicoso que existia em Angola (até mesmo na capital Luanda) em razão do conflito civil interno pós-independência do país, além dos combates travados com os sul-africanos, num período em que a sombra da Guerra Fria ainda não se dissipara. Em Bom dia camaradas, pode-se verificar a força dessa atmosfera de luta armada no imaginário infantil:

"[...] É impressionante, eu costumava observar isso nas provas de EVP [Educação Visual e Plástica] desde a quarta classe, toda a gente desenhava coisas relacionadas com a guerra: três pessoas tinham desenhado akás [o fuzil AK-47], duas tinham desenhado tanques de guerra soviéticos, outros fizeram [pistolas] makarov's [...] Desenhar armas era normal, toda gente tinha pistolas em casa ou mesmo akás, se não, sempre havia um tio que tinha, ou que era militar e mostrava o funcionamento da arma".

E não posso deixar de fazer uma pergunta ao(à) eventual leitor(a): seria você capaz de adivinhar qual o produto cultural brasileiro mais citado nessas narrativas de Ondjaki? Não, não é a nossa música, mas sim as famigeradas novelas de TV. Cambalacho, O Bem Amado e, principalmente, Roque Santeiro eram entretenimento apreciado pela criançada angolana e referências à (discutível) teledramaturgia da Rede Globo surgem em várias páginas.

Mas a vida de criança desse narrador-menino um dia vai terminar, como termina a de qualquer pessoa. Diante da possibilidade de ir estudar noutro país depois de ter passado pelas primeiras etapas da educação escolar em sua cidade natal, ele se depara com mais uma despedida difícil, transformada no belíssimo conto Palavras para o velho abacateiro (que fecha o livro Os da minha rua):

"Deixei os braços pousarem na madeira inchada e úmida, abri um pouco a janela a pensar que isso de olhar a chuva de frente podia abrandar o ritmo dela, ouvi lá em baixo, na varanda, os passos da avó Agnette que se ia sentar na cadeira da varanda a apanhar fresco, senti que despedir-me da minha casa era despedir-me de todos os outros: os da minha rua, senti que rua não era um conjunto de casas mas uma multidão de abraços, a minha rua, que sempre se chamou Fernão Mendes Pinto, nesse dia ficou espremida numa só palavra que quase me doía na boca se eu falasse com palavras de dizer: infância".

E, quando se olha bem a fundo, qual o ganho em ser adulto? É, tenho que concordar: isso de ser mais velho dá masé muito trabalho...

* ONDJAKI. Bom dia camaradas. Rio de Janeiro: Agir, 2006

** ________. AvóDezanove e o segredo do soviético. São Paulo: Companhia das Letras, 2009

***________. Os da minha rua. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2007.

BG de Hoje

O cantor, compositor e guitarrista ROBERT CRAY é muitas vezes acusado de não tocar o, digamos, "blues de raiz". Ao adotar arranjos e acompanhamentos mais pop em suas composições, ele estaria "degradando" o gênero, Bem, não costumo ser purista com coisa alguma. Por isso, gosto do trabalho de Cray, como esse hit "Don't be afraid of the dark", que ouvi mais cedo pela manhã, pouco depois de acordar.