quinta-feira, 23 de maio de 2013

Depressão: sintoma social (I)



"A tristeza, os desânimos, as simples manifestações da dor de viver parecem intoleráveis em uma sociedade que aposta na euforia como valor agregado a todos os pequenos bens em oferta no mercado".

Maria Rita Kehl - O tempo e o cão


Está ocorrendo uma "patologização generalizada da vida subjetiva", afirma a psicanalista e ensaísta Maria Rita Kehl. Basta que o indivíduo queixe-se de algum tipo de alteração de humor para que se lhe indique um antidepressivo, indo, claro, ao encontro dos interesses dos fabricantes de remédios:

"As estratégias de expansão da indústria farmacêutica merecem atenção especial não apenas porque tendem a influir no aumento dos diagnósticos de depressão, mas principalmente porque difundem uma versão patológica e medicalizável de todas as formas de inquietação, oscilação de ânimo e inadaptação à norma que caracterizam a vida e a vitalidade psíquicas - em detrimento da existência das manifestações do inconsciente", escreve Maria Rita Kehl no livro O tempo e o cão: a atualidade das depressões*.

Comprei esse trabalho há dois anos mas só o li mês passado. Devo dizer que quase nada entendo de psicanálise. A obra é cheia de temas e conceitos especializados da área - função simbólica transubjetiva, fantasma, castração, identificação fálica, etc. Não os compreendo, o que tornou a leitura bem capenga. Apresentarei, entretanto, apenas o que consegui pinçar não obstante minha ignorância nesse campo.

O grande mérito de O tempo e o cão, penso, é defender o ponto de vista que supõe ser a depressão "um dos sintomas sociais contemporâneos". Segundo a psicanalista,

"A depressão é a expressão de mal-estar que faz água e ameaça afundar a nau dos bem-adaptados ao século da velocidade, da euforia prêt-à-porter, da saúde, do exibicionismo e, como já se tornou chavão, do consumo generalizado. A depressão é sintoma social porque desfaz, lenta e silenciosamente, a teia de sentidos e de crenças que sustenta e ordena a vida social desta primeira década do século XXI [...] Se o tédio, o spleen, o luto e outras formas de abatimento são malvistos no mundo atual, os depressivos correm o risco de ser discriminados como doentes contagiosos, portadores da má notícia da qual ninguém quer saber"

E citando Colette Soler: 

" 'Uma civilização que valoriza a competitividade e a conquista, mesmo se em última análise esta se limite à conquista do mercado, uma tal civilização não pode amar seus deprimidos, mesmo que ela os produza cada vez mais, a título de doença do discurso capitalista' ".

O livro O tempo e o cão: a atualidade das depressões será o assunto central da nova série de postagens.
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* KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009.

BG de Hoje

Sem mais: RED HOT CHILI PEPPERS, Funky monks.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Erostrato



Em determinado momento do conto Erostrato*, de Jean-Paul Sartre, o personagem-narrador diz: "eu também, um dia, no fim de minha vida obscura, explodiria e iluminaria o mundo com uma chama violenta e fugaz como um clarão de magnésio".

O nome dele é Paul Hilbert. Trata-se de um insignificante funcionário, sexualmente frustrado, que tem medo dos outros e considera-se fraco. Como se vê, um cara igual a milhões mundo afora (inclusive, igual a este blogueiro). Entretanto, julga-se superior aos demais homens, pelo menos ao observá-los da sacada de um sexto-andar: "uma superioridade de posição, nada mais; estou colocado acima do humano que existe em mim e o contemplo".

Hilbert odeia as outras pessoas - mal suporta a proximidade física delas - e acredita ter razões sérias para isso. Quais seriam? Não ficam claras ao longo da narrativa. Mas ele nos diz que é fácil imaginá-las. Por quê? Deixo a pergunta em suspensão.

O personagem-narrador sente-se diferente dos outros indivíduos, todos potenciais opositores:

"Sabia que eles eram meus inimigos, mas eles não o sabiam. Amavam-se uns aos outros, ajudavam-se; e me teriam ajudado, ocasionalmente, porque acreditavam que eu era semelhante a eles. Mas se pudessem adivinhar a mais ínfima parcela da verdade teriam me batido".

Ao comprar um revólver, "tudo começou a ir melhor". E noites depois, veio-lhe a singela "ideia de atirar em homens". Não queria fazer nada de forma irrefletida. Treinou um pouco e buscou fazer transparecer sua decisão, de forma velada.

Hilbert excitava-se tremendamente com a perspectiva de descarregar seu revólver nos outros. Simular em pensamento a situação "era uma brincadeira muito enervante; minhas mãos tremiam; por fim, eu me via obrigado a tomar um conhaque no Dreher para me refazer". Seu ato futuro lhe parecia uma obra de arte: "Encarado de certo ângulo é atroz, mas, por outro lado, dá ao instante que passa uma força e uma beleza consideráveis". O massacre se tornaria um "mineral resplandecente".

Numa carta destinada a 102 escritores franceses - o momento mais sensacional do conto - Hilbert, numa comparação com os destinatários, vê, entre estes e o remetente, apenas "uma pequena diferença de gosto". E reclama, demonstrando que mesmo um sujeito abjeto e perturbado como ele tenta dar algum significado para a existência: "Mas tudo passa como se tivésseis a graça e eu não. Sou livre para gostar ou não de lagosta à americana, mas, se não gosto dos homens, sou um miserável e não posso encontrar lugar ao sol. Monopolizaram o sentido da vida".

Por acaso, fica conhecendo o caso de Eróstrato, habitante de Éfeso, que, no século IV a. C., pôs em chamas o templo de Ártemis, no mesmo dia do nascimento de Alexandre Magno. Com isso, Eróstrato quis entrar para a história. Preso, foi condenado à tortura e seu nome foi proibido de ser pronunciado a partir de então, sob pena de morte a quem o fizesse. Hilbert fica encorajado: "Havia mais de dois mil anos que ele estava morto e sua ação ainda brilhava, como um diamante negro".

O resultado do "crime-obra-de-arte" do personagem-narrador nada tem de grandioso e termina de modo infame. Mas o que me interessa no momento é a resposta que gostaria de dar à pergunta formulada anteriormente (por que seria fácil para nós, leitores do conto de Sartre, imaginar as "razões sérias" que levam Hilbert a odiar as outras pessoas?).

Seria complicado formular explicitamente essas razões, mas algo menos evasivo pode ser dito. Vários de nós, que gostamos de nos ver como "gente de bem" ou com "alma de humanistas", experimentamos, com maior ou menor intensidade, a mesmíssima sensação de ódio em relação a outras pessoas, mesmo que estes indivíduos não nos tenham feito, direta ou indiretamente, qualquer malefício. Faça um breve exame de consciência. Não é fácil sentir esse ódio? Se temos ou não desejo ou intenção de matar os outros, aí já é outra conversa.

Na próxima postagem, começo a falar do livro O tempo e o cão, de Maria Rita Kehl.
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* SARTRE, Jean-Paul. Erostrato. In: ____________. O muro. 20 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. p. 65-83 [tradução de H. Âlcantara Silveira].

BG de Hoje

Ao contrário do personagem do conto de Sartre, a canção do BG fala justamente da proximidade afetiva entre as pessoas: a belíssima Pai e mãe, de GILBERTO GIL.


quinta-feira, 16 de maio de 2013

A poesia menor (e uma pisada na bola)

"Sou poeta menor, perdoai!"

Manuel Bandeira, em Testamento*



Ao falar de poesia, na última postagem, lembrei-me de um artigo de Antonio Candido lido recentemente, mas publicado pela primeira vez em 1944, no jornal Folha da Manhã**, em que o crítico literário se propõe a pensar na seguinte questão: "será pejorativo o qualificativo de poeta menor?"

Para Candido, desde o Simbolismo, a poesia foi diminuindo (de tamanho e de enfoque). Escreve ele:

"Ora, sem entrar no momento em julgamento de valor, o que é incontestável é que estas tendências todas encorajaram sobremaneira a poesia chamada menor; a poesia lírica dos simbolistas, dos intimistas, dos surrealistas, que se nutre de momentos excepcionais, e emoções raras, comunicáveis num pequeno número de versos; a poesia de associações raras, de meios tons, de elipses, de obscuridades, de notação essencial - que chega às vezes a parecer um convite a Sherlock Holmes".

E completa:

"O poeta põe de lado as aspirações ambiciosas de antes - os poemas épicos, as longas tentativas em que a inteligência organiza o poema e o dirige num sentido de totalização da experiência intelectual e afetiva - para ficar no jardim requintado ou limitado do lirismo de fôlego curto".

Após o Modernismo, escrever poemas tornou-se, segundo Candido, "uma luta contra o nexo lógico e, consequentemente, contra o caráter discursivo do poema". A seu ver - e concordo com ele - a maioria dos poetas brasileiros encaixa-se na categoria dos poetas menores. Entretanto, isso não quer dizer inferioridade: "há magníficos poetas menores - dos mais altos dentre os modernos - e péssimos poetas maiores".

O crítico lamenta, contudo, que essa preponderância dos poemas curtos, produzidos a partir do "lirismo intimista" e da "notação rápida, o despojamento excessivo", impedem que o texto poético atinja uma "visão ampla da vida".

Ah, e mesmo um intelectual do porte e com a credibilidade de Antonio Candido dá tremenda pisada na bola, fazendo observação machista, ao defender a importância da poesia dita maior:

"É claro que a poesia menor deve subsistir, mas é preciso que a poesia maior não se afunde. É necessário que os poetas se compenetrem de que o requinte e o despojamento devem ser entendidos em termos, como uma supressão daquilo que for prosaico e acessório no poema, mas nunca como uma proclamação da elipse e da notação sintética em detrimento das formas longas, aquelas em que o espírito se espraia em meditação sobre o homem e seus problemas, ou em que descreve, narra, ataca. Reduzir a poesia ao lirismo abreviado é desvirilizá-la. Não é a toa que às mulheres só são acessíveis os gêneros poéticos menores". [grifo meu]

Talvez por ser muito mais um leitor de prosa do que poesia, prefiro a poética mais discursiva, que desempenha "papel de ligação e de esclarecimento" entre os sujeitos - autor/leitor - e o mundo.

Na próxima postagem, tratarei de um conto de Jean-Paul Sartre.
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* BANDEIRA, Manuel. Testamento. In: ___________. Estrela da vida inteira. 20 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 181-182 [Esse poema foi originalmente publicado em 1940, na Lira dos cinquent'anos, acrescentada às Poesias completas, lançadas na mesma época]

** CANDIDO, Antonio. Notas de crítica - Sobre poesia. In: ___________. Textos de intervenção. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2002. p. 129-134 [seleção e notas de Vinícius Dantas]

BG de Hoje

Junção curiosíssima de reggae e rock, Ain't it strange demonstra que PATTI SMITH, nos anos 1970, já enxergava muito além dos limites musicais do punk, nascente naquele período e do qual a artista foi uma das porta-vozes mais brilhantes.

terça-feira, 14 de maio de 2013

O abandono da musicalidade



A poesia brasileira, do Modernismo em diante, abandonou a musicalidade. Assim, peremptória, uma afirmação como essa é descabida e leviana. Para prová-la, precisaria realizar estudo aprofundado. Como está implícito que não o farei, vou tentar tornar mais compreensível o que disse. Antes, porém, reproduzo abaixo um poema de Gonçalves Dias*, do qual gosto muito.

"NÃO ME DEIXES!

Debruçada nas águas dum regato
A flor dizia em vão
A corrente, onde bela se mirava...
'Ai, não me deixes, não!

'Comigo fica ou leva-me contigo
'Dos mares à amplidão,
'Límpido ou turvo, te amarei constante
'Mas não me deixes, não!'

E a corrente passava: novas águas
Após as outras vão;
E a flor sempre a dizer curva na fonte:
'Ai, não me deixes, não!'

E das águas que fogem incessantes
À eterna sucessão
Dizia sempre a flor, e sempre embalde:
'Ai, não me deixes, não!'

Por fim desfalecida e a cor murchada,
Quase a lamber o chão,
Buscava inda a corrente por dizer-lhe
Que a não deixasse, não.

A corrente impiedosa a flor enleia,
Leva-a do seu torrão;
A afundar-se dizia a pobrezinha:
'Não me deixaste, não!"

Ao ler esse texto, não são suas imagens ou sua tristeza piegas que me interessam, mas sim sua sonoridade, cadência e ritmo. Os versos - alternância de decassílabos e linhas menores - são carregados de musicalidade (aliás, a melhor característica da poesia de Gonçalves Dias, no geral).

Os poetas do Modernismo, e ulteriores, renunciaram completamente aos elementos rítmicos do poema? Claro que não. Mas após as (então) vanguardas do início do século XX, "libertados" da exigência da metrificação, os autores passam a dedicar menos tempo ao artesanato na composição de suas obras. Isso sem falar que muitos acataram o "fim do ciclo histórico do verso", propalado no manifesto concretista, como um imperativo estético.

. . . . . . .

Penso haver outros dois motivos para o abandono da musicalidade em parte significativa da atual produção poética:

1) Talvez seja ridículo - ou anacrônico - para um poeta contemporâneo e para os (raríssimos) leitores atuais de poesia concentrarem-se em textos "arrumadinhos", como Não me deixes!. Equivocadamente, a meu ver, poemas desse tipo são considerados ultrapassados, incompatíveis com o "novo" (seja lá o que isso for).

2) Muitos que escrevem poemas hoje em dia, estranhamente, não tem por hábito ler outros poetas - do passado ou mesmo contemporâneos. Veja o caso de Carlito Azevedo. Numa entrevista dada a Elisabeth Orsini** (disponível aqui) o poeta carioca disse: "Gosto de todas as formas de divulgação de poesia, mas odeio ler poesia, acho entediante". Odiar não implica deixar de ler (ele deve fazê-lo, imagino, ao menos por "dever de ofício" - até porque atua como editor). Mas muitos por aí, com "menos nome" do que Azevedo, julgam inventar a roda a cada escrito produzido. Resultado: falam apenas para si mesmos. Não me interessam.

Sugiro que leiam Gonçalves Dias. Acho que não faria mal.
__________
*  DIAS, Gonçalves. Não me deixes!. In: __________. Os melhores poemas de Gonçalves Dias. 2 ed. São Paulo: Global, 1997 [seleção de José Carlos Garbuglio]

**  Entrevistando três poetas. Disponível em <http://www.jornaldepoesia.jor.br/eorsini01c.html>. Acesso em 10/05/2013


BG de Hoje

Uma das canções mais tristes da MPB: Na batucada da vida, de ARY BARROSO (com letra de LUIZ PEIXOTO). Inesquecível na voz de ELIS REGINA. OBS: No vídeo, a apresentação é aberta com um trecho de João Valentão, de Dorival Caymmi.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Mais tempo na escola ou mais tempo de escolarização: e daí?



Iria, hoje, escrever sobre um poema de Gonçalves Dias, mas mudei de ideia ao ler a entrevista incluída na última edição da revista Presença Pedagógica*. Eliane Márcia da Cruz, coordenadora do Programa Escola Integrada, adotado pela Secretaria Municipal de Educação, aqui de Belo Horizonte, responde a apenas seis perguntas rasas, feitas quase sob medida (e não é agradável ver uma publicação de tão boa qualidade como a Presença Pedagógica servir - intencionalmente ou não - de palanque para a administração da capital mineira, encabeçada pelo prefeito Márcio Lacerda, do PSB).

Como era de se esperar nesses casos, a coordenadora faz um balanço positivo do programa e lança aquelas frases bonitinhas, mas que nada querem dizer, tão caras à Pedagogia (por exemplo, "A cidade é educadora, pois oferece múltiplos espaços de conhecimento e diversas oportunidades de aprendizagem" ou "Os caminhos por onde passam diariamente os alunos tornam-se espaços de formação - trilhas pedagógicas - na medida que possibilitam a ação e a intervenção", etc.).

Eliane Márcia da Cruz aproveitou também para falar de uma pesquisa feita pela Fundação Itaú Social e que mostrou um aumento "impressionante" (estou sendo irônico, viu?) de 4,6% (!) nas médias de matemática dos alunos participantes do programa. Para ela, "o impacto [do programa] na aprendizagem é perceptível, e a melhora da atitude das crianças e adolescentes para com a escola e os professores é consequência natural".

Pessoalmente, tenho muitas críticas à Escola Integrada. Que, aliás, não se confunde com a reivindicada escola integral, embora o ex-prefeito Fernando Pimentel - hoje ministro no governo Dilma - apregoava, marotamente, em campanha malsucedida ao Senado, em 2010, ter sido aquele que implantou a "escola integral" em BH, mas referindo-se ao programa do qual estamos falando.

O que o programa faz, na maior parte das vezes,  é manter as crianças e os adolescentes mais tempo na escola, sob a supervisão (nem sempre competente) de um adulto. E só. Parece ser essa a única função que hoje se reconhece na escola: manter alunos sob os cuidados de alguém para que seus pais ou responsáveis possam trabalhar. Não sou contra esse papel, mas uma instituição voltada para o ensino não se apequena demais limitando-se a fazer apenas isso? E pelo que consigo perceber, o fato de ficarem na escola por um período maior não tem feito desses indivíduos estudantes melhores.

O que me leva a pensar em outra coisa. Até hoje não conseguiram me convencer de que os 200 dias letivos trouxeram qualquer melhoria significativa na qualidade da escola se comparados aos 180 dias obrigatórios antes da LDB. Também convivo com estudantes que tem seis, sete, oito ou mais anos de escolarização e não dominam habilidades elementares, como interpretar um texto simples, de uma página.

A má qualidade da educação brasileira, penso, não diminuirá apenas com o aumento do tempo do aluno na escola. É preciso, urgentemente, valorizar - de verdade - os trabalhadores da educação, que, a propósito, estão mais uma vez em greve aqui na cidade**.

* Escola integrada à cidade. Presença Pedagógica, Belo Horizonte, v.19, n.110, mar./abr. 2013, p. 5-8

** Mas eu, abjeta e covardemente, estou furando o movimento grevista.

BG de Hoje

O mundo do rock pesado recebeu triste notícia nos últimos dias: a morte de um dos guitarristas do SLAYER, Jeff Hanneman. A banda vinha passando por desentendimentos internos e o falecimento de Hanneman talvez acabe por colocar um fim nas atividades do grupo de Los Angeles. Seria uma pena. A canção de hoje é Expendable youth, do ótimo disco Seasons in the abyss (1990)


segunda-feira, 6 de maio de 2013

Quero distância dos "virtuosos"



Um breve artigo escrito por Bertrand Russel na década de 1920 tem muito a dizer nesses nossos tempos em que o pensamento reacionário, quase sempre de mãos dadas com o fundamentalismo religioso, dá as caras em roupagens para todos os gostos.

Em O recrudescimento do puritanismo*, o filósofo inglês, embora reconheça alguns serviços prestados por essa doutrina à humanidade, em épocas pregressas, percebe um problema atual, diretamente relacionado à "combinação de ordem com liberdade para as minorias". Para Russell, "este problema requer uma perspectiva diferente da dos puritanos: ele precisa de tolerância e concórdia em vez de fervor moral. E a concórdia nunca foi o ponto forte dos puritanos".

Na contemporaneidade, segundo o articulista,

"Pode-se definir um puritano como um homem que pensa que certos tipos de atos, mesmo sem efeitos prejudiciais visíveis a outras pessoas, a não ser ao agente, são inerentemente pecaminosos e, por serem um pecado, devem ser evitados pelos meios mais eficazes - a lei criminal se possível e, caso contrário, a opinião pública endossada pela pressão econômica".

Com a ressalva de que muitos atos - avaliados como pecaminosos pelos puritanos - não têm efeitos prejudiciais nem sequer a seus agentes, a definição de Russell descreve razoavelmente o modo de pensar de muita gente que, no início de um novo milênio, protestaria, raivosa, se fosse chamada de puritana.

Russell considera que a ótica puritana enfraqueceu-se no século XIX, mas "com a deterioração generalizada do liberalismo [...] retomou o fundamento perdido e pressagia uma nova tirania tão opressiva quando a da Idade Média".

Exageros à parte, o pensador inglês aponta outro elemento negativo dessa forma antidemocrática e carola de ver a vida. Destaco:

"Há outro argumento mais geral que se opõe ao ponto de vista puritano. A natureza humana, tal como foi concebida, implica que as pessoas insistirão em obter algum prazer na vida. Grosso modo, para propósitos práticos, os prazeres devem ser divididos entre aqueles que se baseiam essencialmente nos sentidos e os que são, sobretudo, mentais. O moralista tradicional elogia os últimos porque não os considera prazeres. Sua classificação, claro, não é cientificamente defensável e em muitos casos ele tem dúvidas. Os prazeres advindos das artes pertencem aos sentidos ou à mente? Se ele for na verdade rígido, condenará a arte in toto, como Platão e os Pais da Igreja; se ele for mais ou menos latidudinário, tolerará a arte se tiver um 'propósito espiritual', o que significa em geral uma arte de má qualidade".

O autor também não deixa de assinalar que "os que vivem sob o domínio do puritanismo tornam-se excessivamente ávidos pelo poder" (as "bancadas evangélicas" que o digam), acrescentando: "É claro, em pessoas virtuosas, o amor ao poder camufla-se na benevolência de praticar o bem, mas isso representa uma diferença ínfima quanto aos seus efeitos sociais". Russell é implacável: "A indignação moral é uma das forças mais nocivas do mundo moderno, ainda mais porque pode sempre ser desviada para usos sinistros por aqueles que controlam a propaganda**".

O final do artigo, embora contenha observações hoje triviais, merece ser reproduzido em sua quase totalidade:

"O mundo está cada vez mais populoso, e a dependência em relação aos nossos vizinhos torna-se mais íntima. Nessas circunstâncias a vida não pode ser tolerável, salvo se aprendermos a deixar os outros sozinhos em todos os aspectos que não constituam uma preocupação imediata e evidente para a comunidade. Devemos aprender a respeitar a privacidade alheia e a não impor nossos padrões morais aos outros. O puritano imagina que seu preceito moral é o paradigma moral; ele não percebe que outras épocas e países, e mesmo outros grupos em seu próprio país têm padrões morais diferentes dos seus - padrões que esses têm tanto direito de exercer quanto ele de exercer o seu. Infelizmente, o amor ao poder, que é a consequência natural da autonegação puritana, torna os puritanos mais decididos em suas ações do que as outras pessoas e, por isso, é mais difícil lhes resistir. Esperemos que uma educação mais abrangente e um conhecimento maior da humanidade possam gradualmente enfraquecer o ardor dos nossos dominantes por demais virtuosos".

Na próxima postagem, depois de muito tempo, volto a falar de poesia, destacando Gonçalves Dias.

* RUSSELL, Bertrand. O recrudescimento do puritanismo. In: _________. Ensaios céticos. Porto Alegre: L&PM, 2010. p. 114-120 [tradução de Marisa Mota] 

** Vale lembrar que o termo propaganda tinha um sentido bem específico - político-ideológico - no período entre-guerras, que é quando Russel publica este artigo.

BG de Hoje

Como (quase) todo adolescente brasileiro do meu tempo, ouvi LEGIÃO URBANA até  quase furar os discos. Na adultícia (que palavra medonha), perdi o interesse. A banda de Brasília, liderada por Renato Russo, voltou a ser assunto por causa de filmes recentemente produzidos e a ela relacionados. E mesmo desinteressado hoje, ainda acho Baader-Meinhoff blues, do primeiro disco do grupo, uma ótima canção.


quinta-feira, 2 de maio de 2013

Literatura: "herança frágil"


Reproduzi, dias atrás, trecho de entrevista dada pelo crítico literário Tzvetan Todorov. Seguem outras palavras do pensador búlgaro (e cidadão francês):

"Hoje, se me pergunto por que amo a literatura, a resposta que me vem espontaneamente à cabeça é: porque ela me ajuda a viver. Não é mais o caso de pedir a ela, como ocorria na adolescência, que me preservasse das feridas que eu poderia sofrer nos encontros com pessoas reais; em lugar de excluir as experiências vividas, ela me faz descobrir mundos que se colocam em continuidade com essas experiências e me permite melhor compreendê-las. Não creio ser o único a vê-la assim. Mais densa e mais eloquente que a vida cotidiana, mas não radicalmente diferente, a literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo. Somos todos feitos do que outros seres humanos nos dão: primeiro nossos pais, depois aqueles que nos cercam: a literatura abre ao infinito essa possibilidade de interação com os outros e, por isso, nos enriquece infinitamente. Ela nos proporciona sensações insubstituíveis que fazem o mundo real se tornar mais pleno de sentido e mais belo. Longe de ser um simples entretenimento, uma distração reservada às pessoas educadas, ela permite que cada um responda melhor à sua vocação de ser humano".

Esse excerto encerra o prefácio de um dos livros mais acessíveis de Todorov, A literatura em perigo*. Cada um dos capítulos pode ser lido independentemente, pois são pequenos ensaios. Nestes, o autor discute a forma como se costuma ensinar e estudar Literatura ("Na escola, não aprendemos acerca do que falam as obras, mas sim do que falam os críticos"); apresenta primorosas observações no campo da Estética; e realiza uma micro-história das concepções envolvendo a arte literária. A literatura em perigo também é uma espécie de "acerto de contas" do pensador com o método formalista/estruturalista do qual ele foi um dos representantes. Passagens autobiográficas ao longo do livro não retiram o interesse pelos pontos de vista do ensaísta.

O autor tem em mente, nesse trabalho, o "leitor comum, que continua a procurar nas obras que lê aquilo que pode dar sentido à sua vida. [e que] tem razão contra professores, críticos e escritores que lhe dizem que a literatura só fala de si mesma ou que apenas pode ensinar o desespero".

Para Todorov, tal

"como a filosofia e as ciências humanas, a literatura é pensamento e conhecimento do mundo psíquico e social em que vivemos. A realidade que a literatura aspira compreender é, simplesmente (mas, ao mesmo tempo, nada é assim tão complexo), a experiência humana. Nesse sentido, pode-se dizer que Dante ou Cervantes nos ensinam tanto sobre a condição humana quanto os maiores sociólogos e psicólogos e que não há incompatibilidade entre o primeiro saber e o segundo".

E como a Literatura "não formula um sistema de preceitos", tem um função inigualável entre os conhecimentos de que dispomos: "As verdades desagradáveis - tanto para o gênero humano ao qual pertencemos quanto para nós mesmos - têm mais chances de ganhar voz e ser ouvidas numa obra literária do que numa obra filosófica ou científica".

Ao fim do livro, Todorov propõe outra finalidade para o ensino da Literatura: seu "espírito" deve ser conduzido pelo "grande diálogo entre os homens" promovido pelas obras ao longo do tempo, diálogo "do qual cada um de nós, por mais ínfimo que seja, ainda participa".

É essa a "herança frágil" que temos a transmitir.

* TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. 2 ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009 [tradução de Caio Meira]

BG de Hoje

Mike Mills, integrante do R.E.M., é um dos melhores baixistas da história do rock (acho eu). Suas linhas melódicas são limpas, parece violão. Repare no que ele faz no refrão de It's the end of the world as we know it, por exemplo. O cara é craque.