terça-feira, 19 de novembro de 2019

Falou e disse...

"O cabelo, um dos sinais diacríticos que faz parte da diversidade do gênero humano, foi capturado pela cultura e, a partir daí, passou a receber diferentes significados e sentidos diversos. No contexto da África pré-colonial, ele era visto pelas diversas etnias como símbolo de status, de realeza e de poder. No contexto da invasão colonial e da escravidão, passa a ser visto como marca de inferioridade racial, como uma entre as muitas justificativas para se manter o racismo e o mito da inferioridade do negro.

O cabelo do negro pode ser visto como símbolo de beleza e, incoerentemente, de inferioridade racial. As tensões e os desencontros entre essas representações refletem a presença de relações sociais autoritárias, hierárquicas e conflituosas entre negros e brancos ao longo da História. Esse processo não resulta somente em introjeção do racismo e do mito da inferioridade pelo negro e pela negra. Contraditoriamente, ele os impulsiona a diferentes tipos de reação, expressos na ressignificação do cabelo crespo, transformando-o em símbolo de afirmação racial e estética". *

* GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos de identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. p. 373

terça-feira, 12 de novembro de 2019

A retórica da inconformidade


Não. Eu não desisti de escrever aqui no Besta Quadrada.

Apenas não estou conseguindo superar a letargia que vem me dominando nos últimos três anos.

Será possível vencê-la nalgum momento? Espero que sim.

Por ora, falemos de dois brevíssimos textos de Luis Fernando Veríssimo.

Não se trata de crônicas bem humoradas, como é do feitio dele, mas de reflexões (em um tom mais severo que o habitual) sobre a noção de justiça no Brasil, desenvolvidas a partir de uma frase do cáustico jornalista norte-americano H. L. Mencken  NOTA: Há, no livro em que esses textos foram publicados ¹, um artigo sensacional de Frei Betto e outro, do antropólogo Luiz Eduardo Soares, sobre os quais já tive vontade de discutir aqui no blog, mas sempre acabo adiando. Quem sabe um dia?

A frase é a seguinte: "A injustiça é relativamente fácil de aturar, é a justiça que fere".

A intenção de Veríssimo é saber se "a experiência brasileira comprovava ou desmentia o paradoxo de Mencken". E ao pensar no Brasil e "nas suas misérias reincidentes", o escritor gaúcho acaba pensando também na "escorregadia palavra 'indignação'".

Escreve ele:

"Somos bons de indignação, somos muito bons na retórica da inconformidade. O movimento abolicionista é um exemplo disto, e uma espécie de protótipo para todos os anos de retórica inútil que viriam depois. Deu belos discursos e até alguns bons poemas, o que não impediu que o Brasil fosse o último país do mundo a abolir a escravatura, ou que o trabalho escravo continuasse aqui até hoje, sob formas mais ou menos disfarçadas".

Veríssimo escreveu isso antes do advento das mídias sociais. Caso o fizesse agora, encontraria milhares de exemplos dessa indignação da-boca-pra-fora, inofensiva e inconsequente.

Sendo "uma emoção, portanto um momento passageiro, mais do que um sentimento" e apenas "uma reação, que é menos do que uma ação e bem menos do que uma convicção", a indignação manifestada por muitos brasileiros - em posts na web, nos cartazes de passeatas meio carnavalescas, nos discursos de lideranças partidárias - nunca resulta em nada mais do que palavrório.

"Sabemos como ninguém" - diz Luis Fernando Veríssimo - "verbalizar nossos problemas e as suas soluções, mas na hora de trocar a eloquência pela prática preferimos ficar no discurso, e a eloquência da acomodação, ou da capitulação, é a mesma da indignação. [...] É, sim, relativamente fácil conviver com a injustiça. No Brasil, não fazemos outra coisa há anos. E sempre pelo método mais simpático, o da desconversa".

A meu ver, é mesmo fácil aturar a injustiça por aqui. Os milhões de miseráveis enquanto bancos batem recordes consecutivos de lucro; a sonegação de impostos amplamente praticada por vários representantes do grande empresariado nacional, muitos deles beneficiados por isenções e outros incentivos fiscais, apesar dos ganhos estratosféricos; os abusos cometidos pelo poder público (sobretudo através da violência das polícias contra a população favelada e periférica, em sua maioria negra); os assassinatos e perseguições que vitimam camponeses e indígenas, levados a cabo por latifundiários e grileiros; a inacessibilidade dos mais pobres ao transporte público eficiente, aos serviços advocatícios, à assistência médica/odontológica adequada, sem opções diversificadas de lazer e de cultura; tudo isso pode provocar aqui e ali uma erupçãozinha verbal indignada, seja através de um pronunciamento no Congresso, uma coluna de jornal, um textão ou um meme no Facebook ou uma hashtag no Twitter. Mas não passa disso.

Nunca partimos, como povo, para enfrentar concretamente tantas situações e formas de injustiça, nunca partimos para a luta no real sentido da palavra (ao ver os eventos recentes ocorridos em Hong Kong e no Chile, pensei comigo mesmo: "Uma resistência e uma força reivindicatória desse tipo jamais  ocorreriam no Brasil...").

Escrevendo esta postagem, me lembrei de um artigo do Vladimir Safatle publicado no jornal El País em setembro passado.O professor de Filosofia da USP argumenta que uma das ilusões das quais precisamos nos livrar "é aquela que leva alguns a acreditar que nosso momento histórico pede mais diálogo". Para ele, em muitos casos, "é necessário dar forma à recusa clara em dialogar. Quem dialoga com pessoas que louvam torturadores e assassinos como 'heróis nacionais' não sabe qual o valor das palavras [...] Não é de diálogo que o Brasil precisa. É de ruptura".

Ou seja: chega de tanta falação (ainda que carregada de inconformidade)! Nossas desigualdades e clivagens não vão ser resolvidas na base da conversa. A indignação precisa virar ação.

Voltando à frase de H. L. Mencken, podemos também dizer que a justiça por aqui (e justiça, nesse caso mais restrito, entendida como equivalente à atuação do Poder Judiciário) não fere, a não ser aqueles e aquelas definidos por ela de antemão como alvos a serem atingidos de acordo com interesses inconfessáveis, como pudemos testemunhar no lawfare que culminou na prisão do favorito a vencer a última disputa eleitoral para presidente. Essa mesma justiça  revela uma seletividade racial e de classe abominável, que resulta, por exemplo, nos mais de 230.000 detentos provisórios que aguardam julgamento.

Veríssimo observa que

"alguém já disse que uma condição para que o estado constitucional sobreviva no Brasil é que a Constituição não seja levada muito a sério. Poderia se dizer, com a mesma sabedoria ou cinismo, que uma condição para que a justiça funcione mais ou menos no Brasil é não exigir que ela funcione melhor, mais disposta a contrariar interesses, revolucionar costumes, aplicar a retórica e dar dentes ao discurso. Ou seja, mais disposta a ferir".

Com tantos juízes e promotores julgando-se membros de uma casta superior de indivíduos, desconectados das angústias das classes populares, além de inumeráveis legisladores que combinam venalidade e obscurantismo, é provável que nunca teremos uma justiça com as características descritas acima.


E nós, posicionados no campo progressista, não vamos além da nossa retórica da inconformidade. Até o dia em que seremos totalmente espoliados pelos detentores do capital e massacrados (literalmente) pelas tropas neofacistas proliferantes

¹ VERÍSSIMO, Luis Fernando. O poder do nada. In: VERÍSSIMO, Luis Fernando et al. O desafio ético. Rio de Janeiro: Garamond, 2000. p. 13-30

BG de Hoje

Poucas vezes ouvi uma canção com um trabalho de guitarra tão sensacional como o de Love Spreads, da banda britânica THE STONE ROSES. Tem uma pegada bluesy, quase "ledzeppeliniana" (aliás, no disco do qual ela faz parte - Second Coming, lançado no finalzinho de 1994 -, há outra joia em matéria de guitarra, a faixa Driving South).