segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Escolher morrer



Holanda, Bélgica e Luxemburgo são países onde a eutanásia é uma prática legalmente autorizada. E importante salientar: não só em caso de doença terminal ou outra que provoque intensa dor física, não aplacável pela medicação, mas também nos casos em que o indivíduo experimenta um insuportável sofrimento psíquico. Na Suíça, muitos sabem, o suicídio assistido é permitido pelas autoridades já faz algum tempo (o que leva muita gente até lá para o chamado "turismo da morte"). Tudo isso, para mim, é mostra de avanço civilizatório. Mas por que estou falando desse assunto? Chego lá.

. . . . . . . 

Dias atrás, reli o romance (ou seria novela?) Mas não se mata cavalo?, do escritor norte-americano Horace McCoy*, lançado em 1935. O estilo do autor é conciso, direto, sem nenhum traço de ornamentação. A trama se passa no período da gravíssima depressão econômica decorrente do crack financeiro de 1929 e destaca dois personagens, Robert Syverten (o narrador da história) e Gloria Beatty. Ambos tentam a sorte em Hollywood, cuja indústria cinematográfica começava a ser engendrada. Ele sonhava em se tornar diretor de filmes; ela se contentaria até mesmo com uma vaga de extra. Para sobreviver, aceitam fazer parte de uma prova de resistência física e psicológica. Um concurso de dança - como as dance marathons, eventos que viraram febre nos EUA durante a terceira e a quarta décadas do século passado.

Espécie de proto-reality show, a maratona de dança exigia que os casais participantes ficassem horas e horas de pé dançando ou, na maior parte do tempo, apenas mexendo o corpo. Os intervalos para descansar, alimentar-se e ir ao banheiro eram exíguos. Ganhava o prêmio em dinheiro somente a dupla que conseguisse suportar o absurdo daquela situação até o final. Havia público para acompanhar o "espetáculo". Se fosse bem sucedido, um casal podia contar com um patrocinador, que fornecia calçados e vestuário mediante a colocação de um anúncio nas roupas. Para eliminar alguns pares de forma mais rápida e aumentar a competitividade (e os lucros), também aconteciam corridas dentro do salão do evento. Esgotados fisicamente, não era incomum que os participantes caíssem estrepitosamente durante esses derbys ou mesmo dormissem no ombro dos parceiros, nos momentos em que simulavam dançar (como na foto no alto da postagem).

Há uma cena que descreve bem o quão bizarro era tudo isso:

" - Olhem para esses jovens, senhoras e senhores! [diz Rocky, o mestre-de-cerimônias, engatando uma série de lorotas] Depois de 216 horas estão tão frescos como rosas, na maratona mundial de dança, uma competição de resistência e habilidade. Esses meninos são alimentados sete vezes por dia: três grandes refeições e quatro lanches leves. Alguns dos concorrentes chegaram até a aumentar de peso durante a competição... E eles têm doutores e enfermeiros que os atendem constantemente para fazer com que eles se mantenham nas melhores condições físicas. Agora vou chamar o par nº 4, Mario Patrone e Jackie Miller, para um número especial. Vamos. Par nº 4! Lá estão eles, senhoras e senhores. Não é um par alinhado? 
Mario Patrone, um italiano reforçado e Jackie Miller, uma lourinha, subiram para a plataforma para receberem aplausos. Falavam com Rocky e depois começavam a sapatear, mas muito mal. Nem Mario nem Jackie pareciam perceber que a coisa não prestava. Quando terminaram, algumas pessoas atiraram dinheiro na pista.
- Mais, minha gente! - gritou Rocky - Uma chuva de prata. Mais! 
Algumas moedas mais bateram no chão. Mario e Jackie apanharam-nas e depois caminharam na nossa direção".

O que julgo, entretanto, mais relevante nesse livro é a postura de Gloria Beatty diante da vida. Amarga e pessimista, a personagem diz a certa altura: "Como sou fracassada, tenho inveja de todos que fazem sucesso. Você também não é assim?" (este blogueiro admite que pelo menos ele é). Ela está sempre repetindo que preferiria não estar mais viva (e o impulso dramático da narrativa vem desse desejo de morte da personagem). E logo no início de Mas não se mata cavalo? encontra-se a sua declaração mais interessante:

" - Uma coisa que me intriga é que todo mundo se preocupa tanto com viver e tão pouco com morrer. Por que é que todos esses cientistas bambas sempre andam por aí tentando prolongar a vida em vez de achar um jeito agradável de acabar com ela? Deve haver um mundão de gente como eu neste mundo... gente que quer morrer mas que não tem coragem..."

Há pessoas ("um mundão de gente", certamente) para as quais viver é algo extremamente difícil. E não me refiro aqui apenas à dificuldade que elas possam ter para adquirir os meios de subsistência. Decidir morrer, contudo, também não é fácil (entre outros complicadores, há o medo ou receio da agonia e da dor física). Pessoalmente, acho que seria um passo ético importantíssimo para a humanidade começar a pensar no suicídio como um direito. E caso a decisão de dar fim à própria vida seja garantida legalmente num futuro longínquo (e, talvez, utópico) - não apenas por estar com alguma terrível enfermidade, como no caso da eutanásia, mencionada lá no início da postagem, mas por escolha autônoma e madura do indivíduo - seria ainda mais digno, penso eu, que se pudesse fazer isso de "um jeito agradável"; ou seja, com o mínimo de sofrimento possível, contando com o trabalho de "todos esses cientistas bambas".
 
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* McCOY, Horace. Mas não se mata cavalo?. São Paulo: Abril Cultural, 1982 [Tradução de Érico Veríssimo]

BG de Hoje

 Nutshell (ALICE IN CHAINS) é, na minha opinião, uma das canções mais tristes dentro do rock. Canta Layne Staley ao final, "if I can't be my own/I'd feel better dead".


quarta-feira, 1 de outubro de 2014

O racismo brasileiro e os números


De acordo com o comunicado do IPEA intitulado Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas: 120 anos após a abolição (disponível aqui), as pessoas negras que fazem parte da população economicamente ativa "correspondem a 60,4% dos que ganham até 1 salário mínimo e a somente 21,7% dos que ganham mais de 10 salários mínimos. Entre os ocupados brancos, esses percentuais equivalem a 39,0% e 76,2%, respectivamente". Mais: negros são maioria entre os indivíduos sem ocupação; estão em menor número entre os trabalhadores com carteira assinada; e são minoria (26,2%) entre aqueles identificados como empregadores. A fonte principal do estudo foi a Pnad/IBGE de 2006

Apresentei esses dados apenas para dizer o seguinte: há uma extensa bibliografia - reunindo trabalhos organizados e publicados tanto por órgãos governamentais, quanto pelas universidades - constatando a grande desigualdade entre raças existente no Brasil. E é prova de ignorância ou má fé não reconhecer isso.

Entretanto, ainda persiste no país a manutenção do mito da "democracia racial" e a crença mal informada de que não se discrimina especificamente a população negra (e indígena, vale acrescentar), mas sim os pobres em geral (tanto brancos como não brancos).

Comecei a refletir com maior atenção sobre tudo isso ao reler Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil*, uma reunião de diversos pequenos artigos publicados pela filósofa Sueli Carneiro, em sua quase totalidade recolhidos da coluna que a autora manteve no jornal Correio Braziliense, no início da década passada.

Em Realidade estatística, Sueli Carneiro defende que as pesquisas que demonstram a desigualdade entre raças

"cada vez mais desautorizam as ideias consagradas em nossa sociedade sobre a inexistência de um problema racial. Questionam a simplificação de que o problema do Brasil é social, e não racial. Recusam os eufemismos como o do apartheid social e, sobretudo, indicam que as políticas universalistas, historicamente implementadas, não têm sido capazes de alterar o padrão de desigualdades entre negros e brancos na sociedade".

Para corrigir injustiças é necessário a adoção de medidas que atinjam o problema diretamente, sobretudo nas áreas da educação, trabalho e segurança pública. Contudo, acrescenta a filósofa neste mesmo artigo, as políticas públicas voltadas para a promoção da igualdade ficam presas, muitas vezes, num "vazio de implementação" que torna os problemas da população negra "uma abstração que jamais se consubstancia em realidade política. Constata-se a desigualdade, em alguns casos, lamenta-se. Mas parece não haver nada que se queira fazer em relação ao problema".

Noutro texto - Os negros e o Índice de Desenvolvimento Humano - Sueli Carneiro, ao comentar um estudo coordenado pelo economista Marcelo Paixão, considera que as políticas publicas voltadas para a melhoria dos indicadores sociais não podem negligenciar as desigualdades raciais fartamente demonstradas pelas pesquisas.

Esse trabalho coordenado pelo economista Marcelo Paixão utilizou os mesmos dados empregados no cálculo do IDH (expectativa de vida ao nascer, escolaridade e PIB per capita) para aplicá-los não a toda população conjuntamente, mas realizando nesta um recorte por raça. Chegou-se aos seguintes resultados

"é possível verificar que os afrodescendentes ocupam a 108ª posição no ranking proposto pelo Pnud [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento], enquanto os brancos ocupam a 49ª posição. O Brasil, obedecendo ao mesmo ranking, ocupava a 74ª posição [na época da divulgação do trabalho, no ano 2000]

Não tenho razões para acreditar que essa realidade tenha se alterado significativamente, de forma positiva, nos últimos anos.

A luta contra o racismo, todos sabemos, não é fácil. Mas um dos meios para tentar vencê-la é combatendo a desinformação. Por isso, apresentar livros, estudos e pesquisas sobre o tema é indispensável para dar consistência maior à argumentação antirracista.

Na próxima postagem, destacarei uma passagem do livro Mas não se mata cavalo?, do escritor norte-americano Horace McCoy.

* CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011

BG de Hoje

Hoje, infelizmente, não tem BG (motivo: péssima conexão com a internet)

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

A náusea: romance da contingência



" 'Mas por que', pensei, 'por que tantas existências, já que todas se parecem?'. Para que tantas árvores, todas iguais? Tantas existências fracassadas e obstinadamente recomeçadas e novamente fracassadas - como os esforços desajeitados de um inseto caído de costas? (Eu era um desses esforços)".


do personagem-narrador Roquentin, em A náusea, de Jean-Paul Sartre

 
Não é segredo que se compreende melhor a filosofia de Jean-Paul Sartre através da leitura de sua ficção e de seu teatro, pois seus textos propriamente filosóficos, na minha opinião, costumam ser difíceis (excetuando, talvez, os ensaios A imaginação e Que é a literatura?, além do opúsculo O existencialismo é um humanismo).

A problemática da existência e a indeterminação que caracteriza a condição humana são, naturalmente, tematizadas nas centenas de páginas da principal obra filosófica do autor - O ser e o nada (originalmente publicada em 1943); contudo, a argumentação de Sartre nesse tratado é, frequentemente, de uma aridez intimidadora. Por sua vez,  o romance A náusea (lançado antes, em 1938) é composto pelos mesmos temas, sendo, contudo, muito mais agradável de se ler.

Devo confessar, entretanto, que não atinei para a profundidade da reflexão proposta por A náusea quando o li pela primeira vez, há quase 25 anos. Estava no fim da adolescência, confuso, num dos piores momentos de minha vida. Não compreendi que o ritmo lento da narrativa era intencional e artisticamente relevante. Ainda assim, de alguma forma, o livro deixou-me um tanto perturbado. Já tinha ouvido, não sei quando nem onde, a máxima "A existência precede a essência" - que o filósofo francês amplificou por meio de seus escritos, mas não compreendia seu significado. Busquei interpretá-la através do que encontrei no romance sartreano e não tive êxito. Felizmente, voltei ao livro diversas outras vezes (inclusive no último fim de semana, para escrever esta postagem) e hoje entendo-o melhor, além de me sentir afetivamente ligado a ele.

Foi através de A náusea que compreendi plenamente o que é a contingência e como esta é um elemento preponderante na realidade que nos cerca.

Antoine Roquentin, o personagem-narrador do livro, registra no seu diário a certa altura*:

"O essencial é a contingência. O que quero dizer é que, por definição, a existência não é a necessidade. Existir é simplesmente estar presente; os entes aparecem, deixam que os encontremos, mas nunca podemos deduzi-los. Creio que há pessoas que compreenderam isso. Só que tentaram superar essa contingência inventando um ser necessário e causa de si próprio. Ora, nenhum ser necessário pode explicar a existência: a contingência não é uma ilusão, uma aparência que se pode dissipar; é o absoluto, por conseguinte a gratuidade perfeita. Tudo é gratuito: esse jardim, essa cidade e eu próprio. Quando ocorre que nos apercebamos disso, sentimos o estômago embrulhar, e tudo se põe a flutuar [...]: é isso a Náusea [...]"

E mais à frente, ele acrescentará:

"Agora eu sabia: as coisas são inteiramente o que parecem - e por trás delas... não existe nada".

O que Roquentin quer dizer ao leitor (e, provavelmente, o autor também o quer, através do personagem) é que não há uma "realidade além da realidade" ou um desígnio (externo a nós), predeterminação ou destino a conduzir as vidas dos indivíduos. Uma existência simplesmente existe, aparece, dá-se a ver. Não é necessária; é contingente, gratuita. E farão parte da condição humana as tentativas de prover essas existências (caso surjam sob a forma de vidas individuais) de significado e de sentido, porque estes não nos foram dados de antemão. Mas, como se pode perceber, bastando olhar para dentro de si, trata-se de tarefa nada simples. Porque essa atribuição de significado e sentido precisa ser feita a todo instante por meio das ações que se escolhe fazer - ou deixar de fazer (lê-se em O existencialismo é um humanismo**: "Um homem embrenha-se na sua vida, desenha o seu retrato, e para lá desse retrato não há nada". E logo adiante, Sartre arremata: "O que queremos dizer é que um homem nada mais é do que uma série de empreendimentos, que ele é a soma, a organização, o conjunto das relações que constituem estes empreendimentos").

Há ainda outro aspecto sobre o qual gostaria de falar. As obras literárias que mais tocam os leitores muitas vezes extraem seu poder de atração do sentimento de identificação que nutrimos por determinados personagens. Angústia, de Graciliano Ramos,  por exemplo, é um de meus livros prediletos (como já escrevi aqui) porque, entre outras razões, olho para o personagem Luís da Silva como um espelho. Os demônios e Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski, também são mais significativos para mim por causa de, respectivamente, Kirílov e Ivan Karamazov.

Voltando ao livro de Sartre. Antoine Roquentin, apesar de ser um historiador culto e um ocioso da classe média (ele próprio registrou em seu diário: "Não tenho problemas, tenho dinheiro, fruto de rendas, não tenho patrão [...]"), relata sentimentos - desespero, angústia, desamparo - em nada diferentes dos meus (pobre-diabo que sou). Já senti - e sinto frequentemente - a misantropia de Roquentin (o excerto abaixo expressa tão bem o que penso a respeito dos indivíduos em geral!):

"Eles são sossegados, um pouco taciturnos, pensam no Amanhã, isto é, simplesmente um novo hoje; as cidades dispõem apenas de um único dia que retorna igualzinho todas as manhãs. Só o enfeitam um pouco aos domingos. Que imbecis! Repugna-me pensar que vou rever seus rostos espessos e tranquilos. Eles legislam, escrevem romances populistas, casam-se, cometem a extrema tolice de fazer filhos"

Grandes obras literárias também nos deixam lições. De A náusea, extraí esta: "Todo ente nasce sem razão, se prolonga por fraqueza e morre por acaso". Essa frase nunca abandonou meu pensamento.
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* SARTRE, Jean-Paul. A náusea. Rio de Janeiro: Nova Fronteiro, 1986. [Tradução de Rita Braga]

** ________. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1978 [Tradução de Vergílio Ferreira] (Coleção Os pensadores)

BG de Hoje

Como diria o filósofo Kafunga (ex-goleiro e comentarista de futebol), hoje é sem coré-coré: PANTERA, Domination.


terça-feira, 16 de setembro de 2014

"Como disse o Millôr..."


Semanas atrás, a 12ª edição da FLIP (Feira Literária Internacional de Parati) - talvez o evento do gênero com maior visibilidade hoje no Brasil - homenageou Millôr Fernandes (falecido em 2012).

O autor carioca foi um multimídia avant la lettre e é difícil destacar qual era sua principal atividade (Dramaturgo? Tradutor? Cartunista? Poeta? E outras mais...). Entretanto, não há dúvida de que ele será lembrado com um dos maiores humoristas do país, com uma produção de textos e desenhos sempre muito alta. Às vezes, seu trabalho é marcado pela sofisticação; noutras, pela simplicidade (e nem por isso menos engraçado, como nesta pequena biografia*):

"Millôr nasceu. Aos 13 anos de idade, já estava. O que não invalida. No entanto, sua atuação teatral, até onde se sabe dos livros publicados, foi constatado sem qualquer dúvida. Ao concluir seu Mestrado, percebeu logo. Um dia, depois de um longo programa de televisão, foi que. Amigos e pessoas vagamente interessadas, naturalmente. Onde e como, mas talvez, Millôr jamais, no caso. Ao ser agraciado disse, e não foi à toa. Entre os tradutores brasileiros. E tanto em 1960 quanto em 1978. Mas nem todo mundo concorda. O resto, diz ele. Ou seja, hoje em dia, como ninguém ignora".

A obra de Millôr Fernandes teve sempre grande alcance, chegando a "um público abrangente, [mas] sem perder a erudição", como observou o diretor geral da FLIP, Mauro Munhoz. Numa das mesas do evento (O guru do Méier), seus participantes - os jornalistas Hugo Sukman e Sérgio Augusto, ao lado dos cartunistas Claudius e Cássio Loredano - ressaltaram a insubmissão do artista a credos partidários ou ideológicos de ocasião. Loredano lembrou ainda uma frase antológica (e aparentemente nonsense) de Millôr: "Não gosto da direita porque ela é de direita e não gosto da esquerda porque ela é de direita".

E por falar em frases... É frequente em diversas ocasiões, ao presenciar um acontecimento ou envolver-me nalguma situação, falar "como disse o Millôr..." e emendar uma frase do artista, concernente àquele episódio. E estou certo de que muitas pessoas Brasil afora fazem o mesmo. Millôr Fernandes foi o mais genial autor de ditos curtos e epigramas da cultura brasileira, anos-luz à frente de Apparício Torelly (o "Barão de Itararé), Nelson Rodrigues ou Sérgio Porto (o "Stanislaw Ponte Preta"). Quando, em 1994, foi lançado Millôr definitivo: a bíblia do caos**, os admiradores do escritor regalaram-se com a publicação, reunindo 5142 pequenas joias do humorista. Eis algumas das que mais gosto:

"Bota na tua cabecinha que amanhã pode acontecer uma grande desgraça. O dia de hoje vai ficar muito melhor". 
"As coisas nem sempre são tão ruins quanto parecem. Mas quase sempre são". 
"Quantas vezes eu já fui agredido por bêbados em minha vida? Muitas. Mas poucas em relação ao número de vezes em que fui agredido por semi-ideias, por tolices ditas pomposamente, por ideologias malmastigadas e filosofias maldigeridas. Assim a pergunta é pertinente - quem é mais perigoso: o cara que bebe mal ou o cara que lê mal?" 
"Um pessimista é o único que está preparado para ser otimista quando seu pessimismo der certo". 
"Só conheço uma forma infalível de planejamento familiar - a prosperidade". 
"O cinismo é o máximo da sofisticação filosófica. Só ele se aproxima da verdade". 
"Caras brilhantes fazem frases brilhantes e idiotas as repetem. Não vá repetir essa pros seus amigos". 
"A hipocrisia já é um progresso ético" 
"Sou humanista: Isso não significa ser bonzinho ou acreditar que o homem é bonzão. Significa apenas que aceito o homem como é - medroso, primário, invejoso, incapaz, acertando por acaso e errando por vaidade e ignorância: meu irmão", 
"Se a ocasião faz o ladrão, a falta de oportunidade faz a honestidade?" 
"Eu jamais suportaria como amigo um cara que me dissesse 10% do que eu digo a mim mesmo em certas madrugadas de insônia".
E outras duas, provenientes de outras fontes:

"O mundo é cheio de idiotas. Felizmente estão sentados nas outras mesas" (durante uma conversa com Tom Jobim, num bar no Rio de Janeiro) 
"Quem está na merda não filosofa (moral que encerra a fábula Os perigos da filosofia)

Noutra das mesas da FLIP (O estilo Millôr), Reinaldo (ex-integrante do Casseta & Planeta) contou que começou "lendo Millôr na idade em que os garotos hoje lêem Harry Potter, ele era onipresente. Tinha O Cruzeiro em qualquer sala de espera, e eu já tinha aprendido que naquela revista tinha duas páginas de Millôr, que eu sempre procurava”. Lembrei-me então de duas experiências pessoais que marcaram meu contato com a obra desse autor. Era ainda criança quando tentava entender os cartuns publicados por Millôr na revista Veja, disponível em nossa casa graças a uma assinatura paga por meu irmão mais velho. Depois, aos 13 anos, numa inesquecível atividade escolar promovida por uma professora de português muito dedicada, senti grande prazer com a leitura de A morte da tartaruga. Felizmente, uma de minhas irmãs possuía o livro Fábulas fabulosas, no qual esse texto fora publicado originalmente, e pude lê-lo por inteiro. Daí em diante, sempre me mantive próximo da obra de Millôr Fernandes.

Link para o site da 12ª edição da FLIP: http://www.flip.org.br/

Caso o(a) leitor(a) tenha interesse, link para uma entrevista muito boa concedida por Millôr ao programa Roda Viva (TV Cultura) em 1989: http://tvcultura.cmais.com.br/millor


* Pode ser encontrada numa das "orelhas' do livro 100 fábulas fabulosas (Editora Best Seller, 2011, 7ª edição). Mas há também uma "autobiografia de mim mesmo à maneira de mim próprio", também engraçadíssima, e com alguns trechos incluídos na apresentação das Novas fábulas fabulosas (Editora Nórdica, 1997, 5ª edição).

** O exemplar que atualmente possuo desse livro é uma edição de bolso mais recente da L&PM.

BG de Hoje

Domingo passado, estava tomando cerveja num bar agradavelmente decadente em bairro próximo à minha residência. O dono trocava, vez ou outra, os discos (de vinil) que compunham a "trilha sonora" da birosca. E um destes foi Do fundo do nosso quintal (do grupo FUNDO DE QUINTAL), um álbum que, em outras épocas, ouvi até cansar, principalmente por causa de Eu não quero mais, um samba de partido-alto, contagiante e bem humorado, como há muito não se encontra por aí.


quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Faltou ação


Bíblia em ação (Geográfica Editora, 2013, 5 ª edição) não é um bom entretenimento.

Trata-se de uma adaptação, para os quadrinhos, de episódios bíblicos que vão do velho ao novo testamento.

Claro que HQ não é apenas entretenimento; elevou-se em termos estéticos e hoje, todos sabemos, está em pé de igualdade com outras formas de arte narrativa.

Entretanto, justamente por se persistir numa concepção empobrecida do que significam os quadrinhos atualmente, adaptam-se determinados textos (considerados difíceis) para o formato de HQ, com o intuito de "facilitar" sua leitura. Parece ser o caso dessa Bíblia em ação.

O responsável pelo trabalho, Sérgio Cariello - apresentado como "artista completo desde a infância" - possui um traço e um enquadramento que nos remetem às pequenas sagas de super-heróis produzidas nos anos 1970 e início da década seguinte, muito presentes nas publicações standard das megaempresas do setor, Marvel e DC (estúdios, aliás, nos quais Cariello trabalhou). Percebe-se, no desenho do adaptador, a nítida influência de artistas como Tony DeZuniga e John Buscema (este último conhecido por ilustrações de Thor, Surfista Prateado e Conan, o bárbaro). Não sei dizer se estamos diante de uma homenagem à "escola" de narração quadrinística representada por esses desenhistas renomados, mas é perceptível, logo de saída, que o estilo de Sérgio Cariello não dialoga com a produção de quadrinhos de vanguarda. 

A caracterização visual dos personagens não foge de uma receita já testada. Todos apresentam traços fisionômicos, tons de pele e cabelos que, acredito, não são nada condizentes com o que seria de se esperar de povos autóctones do Oriente Médio e adjacências (para se ter ideia, os egípcios ilustrados estão mais para anglo-saxões...). A figura de Jesus, por exemplo, repete a mesma imagem consagrada pela iconografia religiosa desde a baixa Idade Média (até a túnica branca e o manto azul) e que é reproduzida à exaustão nos folhetos das Testemunhas de Jeová ou nos desenhos animados nada criativos usados para catequese e evangelização.

O maior problema do livro, porém, são as poucas cenas de ação. Falta considerável, pois a publicação quer transpor os episódios bíblicos para a estética das histórias em quadrinhos de super-heróis, como se pode depreender a partir de seu prefácio:

"E, se a palavra ' herói ' normalmente remete a figuras como o Super-Homem, que é capaz de lançar um carro pelos ares com um simples sopro, que dizer de Deus, que criou todo o universo e a vida com um simples sopro? Super-Homem pode salvar o dia com sua força, mas Jesus salvou o mundo inteiro com sua morte!"

A comparação com o personagem kriptoniano acima citado não é, portanto, fortuita. Mas o livro decepciona o leitor que buscava ação. Passagens que poderiam ser empolgantes (como o episódio Sansão e Dalila, ou a luta de Davi contra Golias, ou ainda as imagens impactantes do apocalipse) são pouco destacadas. Por outro lado, mais de 84 páginas são dispensadas à teologização e institucionalização do cristianismo após a morte e alegada ressurreição do Cristo (o que pode até ser importante para o crente*, mas que, do ponto de vista de uma narrativa quadrinística que se propõe a ser de ação, acaba tendo resultado decepcionante).

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Antes de encerrar esta postagem gostaria de aproveitar a ocasião para tentar esclarecer um posicionamento que passarei a exprimir em todos os momentos nos quais me sentir obrigado a manifestá-lo.

Ouço com frequência: "ateus são arrogantes". E mais: são metidos a donos da verdade e se acham mais inteligentes do que os outros (ou, pelo menos, mais do que aqueles que acreditam em divindades e/ou entes sobrenaturais).

Não tenho procuração para falar em nome de todos os ateus. Portanto irei expor apenas o que penso e como me coloco diante dessas críticas, supondo, entretanto, que essa exposição e essa colocação sejam familiares a outros descrentes similares a mim.

Sendo ateu, procuro também ser cético. E um cético é alguém que, para aceitar algo, precisa antes ter evidências razoáveis sobre a plausibilidade desse algo. A certeza sobre as coisas do mundo precisa ser construída racionalmente e, à vezes, nem sequer é atingida, permanecendo no campo da provisória incerteza. Ou seja, o cético e o ateu têm dúvidas profundas sobre diversos aspectos de nossa realidade.

Para uma boa parte dos crentes, contudo, parece não ser assim. Com impudente presunção, declaram conhecer uma verdade definitiva por meio da fé. Ou seja, têm certeza absoluta sobre o principal fundamento da realidade, apresentando para tanto evidências muito frágeis (e, muitas vezes, não apresentando nenhuma, a não ser o próprio sentimento ou desejo pessoal).

Quem é o arrogante, nesse caso? Quem está se comportando como "dono da verdade"?

Quanto à reclamação de que os ateus se acham mais inteligentes, digo o seguinte: por exigirem melhores evidências para considerar algo verdadeiro ou digno de crença, os ateus esforçam-se um pouco mais para compreender como o mundo é. Para isso, leem mais, estudam mais, não aceitando sem mais nem menos aquilo que está escrito num conjunto de textos ao qual se atribuiu caráter sagrado ou aquilo que está contido no discurso de um sacerdote ou outro representante de alguma organização religiosa. Aliás, a acomodação intelectual é algo que me desagrada muito em algumas pessoas. Não quero dizer com isso que ateus são mais inteligentes do que crentes; apenas vejo algumas indicações de que os primeiros são geralmente menos inertes intelectualmente do que os segundos. Deixo claro que isso é apenas uma impressão pessoal, não uma comprovação empírica.

Para finalizar. O livro hoje aqui discutido chegou às minhas mãos na forma de um presente de aniversário. Tenho imenso amor e respeito por quem me deu esse presente. Apesar disso, não posso deixar de perceber nesse gesto um resquício da atitude presunçosa e o ar superior de alguns daqueles que acreditam em divindades e dos quais acabei de falar. Para essas pessoas, o ateu sofre de uma espécie de "patologia" que pode ser "curada" mediante "doses" repetidas de proselitismo religioso ou com "pílulas" extraídas do livro considerado (por eles) sagrado. Há nessa atitude um menosprezo da parte do crente em relação ao ponto de vista do ateu (que, diga-se de passagem, desenvolveu-o, em muitos casos, através de um longo processo, legítimo e autônomo, de elaboração e reelaboração de suas convicções). Gostaria de deixar claro que essa atitude proselitista, mesmo querendo ser "do bem", tem um quê da disposição autoritária de quem não convive bem com o pensamento divergente. Vou, a partir de agora, declarar meu desagrado com isso todas as vezes em que o proselitismo religioso vier me incomodar.

* O termo crente está sendo usado nesta postagem com o significado de "aquele que acredita numa divindade", em oposição ao termo ateu ("aquele que não acredita em nenhuma"). Assim, crente, neste contexto, designa todos os que acreditam em Deus, independentemente da denominação religiosa da qual fazem parte.

BG de Hoje

Direto ao ponto: FAITH NO MORE e o propositalmente tosco clipe de Everything's ruined.


sexta-feira, 5 de setembro de 2014

O que poderia explicar a estranha satisfação dos homens-massa? (III)


"Toda vida é luta, é o esforço para ser ela mesma".


José Ortega y Gasset - A rebelião das massas



AVISO: O texto a seguir, para ser melhor compreendido, pressupõe a leitura da primeira e da segunda postagens anteriormente publicadas desta série, disponíveis aqui e aqui.

No início deste conjunto de escritos sobre o pensamento de Ortega y Gasset, eu havia dito que suas considerações no campo da ética são preciosas - fazendo, contudo, a advertência de que o mesmo não se poderia dizer de suas ideias políticas reacionárias. As reflexões morais desse pensador incidem sobre duas noções que, de uns tempos pra cá, venho estudando com muito interesse: responsabilidade e esforço individual.

Como escrevi anteriormente, o filósofo espanhol divide a sociedade em dois grupos - minorias e massas - que não equivalem a classes sociais, mas sim a "classes de homens". Explicando melhor: nas minorias estão "indivíduos ou grupos de indivíduos especialmente qualificados"; nas massas encontram-se aqueles que se contentam apenas com sua mediocridade.

Por isso, n' A rebelião das massas*, Ortega y Gasset afirma que

"[...] a divisão mais radical que deve ser feita na humanidade é dividi-la em duas classes de criaturas: as que exigem muito de si mesmas e se acumulam de dificuldades e deveres, e as que não exigem de si nada de especial, para as quais viver é ser a cada instante o que já são, sem esforço para o aperfeiçoamento de si próprias, boias que vão à deriva".

E por que o homem-massa parece tão satisfeito, a exigir tão pouco de si próprio?

Segundo o pensador espanhol, o homem-massa contemporâneo - a despeito dos dados objetivos do mundo que indicam um estado de coisas bem pouco deleitável - é dominado, psicologicamente, pela "impressão inata e radical de que a vida é fácil, superabundante, sem limitações trágicas". Não se sentindo limitado, esse indivíduo procurará realizar e expressar livremente todos os seus desejos, sem receio algum de impor sua vulgaridade - pois não teme ser contrariado - e sem julgar necessário estabelecer compromissos éticos com a coletividade. Lembra uma criança mimada.

"Mimar" - escreve Gasset - "é não limitar os desejos, dar a um ser a impressão de que tudo lhe é permitido, que não é obrigado a nada. A criatura submetida a esse regime não tem noção de seus próprios limites. Por se evitar qualquer pressão à sua volta, qualquer choque com outros seres, chega a acreditar efetivamente que só ele existe, e se acostuma a não considerar os demais, principalmente a não considerar ninguém [como sendo intelectual e moralmente] superior a ele".

Gostaria de salientar, como escrevi antes, que todos nós inseridos em sociedades de massa, consciente ou inconscientemente, exercemos o papel de homens-massa, com maior ou menor intensidade. A grande questão, todavia, é: o que pretendemos fazer para escaparmos, pelo menos às vezes, da inércia intelectual e moral que caracteriza esse papel (caso, naturalmente, estejamos dispostos a isso)? Uma tal decisão implica procurar ser responsável (em relação à vida coletiva) e esforçar-se individualmente (para aprimorar-se como ser pensante).

Pode-se não concordar com a visão de mundo professada por José Ortega y Gasset n' A rebelião das massas, mas muitos de seus ensaios filosóficos têm pelo menos a intenção de nos fazer voltar os olhos para nossas próprias condutas, com o fito de nos tornar mais autocríticos. E incluo um último (e belíssimo) excerto de seu livro como fechamento da discussão até aqui empreendida:

"A vida que é antes de tudo o que podemos ser, vida possível, também é, por esse mesmo fato, decidir entre as possibilidades o que de fato vamos ser. Circunstância e decisão são dois elementos essenciais de que se compõe a vida. A circunstância - as possibilidades - é o que chamamos o mundo. A vida não escolhe seu mundo, mas viver é encontrar-se, de início, num mundo determinado que não pode ser trocado: neste de agora. Nosso mundo é a dimensão de fatalidade que integra nossa vida. Mas essa fatalidade vital não é semelhante à mecânica [...] Em vez de nos ser imposta uma trajetória, nos são impostas várias, o que, consequentemente, nos força... a escolher. É surpreendente a condição de nossa vida! Viver é sentir-se fatalmente forçado a exercer a liberdade, a decidir o que vamos ser neste mundo. Não há um momento de descanso para nossa atividade de decisão. Inclusive quando, desesperados, nos abandonamos à sorte, decidimos não decidir. Portanto é falso dizer-se que na vida são 'as circunstâncias que decidem'. Ao contrário: as circunstâncias são o dilema sempre novo, ante o qual temos que nos decidir. Mas o que decide é o nosso caráter".
__________
* ORTEGA y GASSET, José. A rebelião das massas. São Paulo: Martins Fontes, 1987 [Tradução de Maria Estela Heider Cavalheiro]

BG de Hoje

Insone mais uma vez, fui trocando as estações do rádio e numa delas escutei ROBERTA SÁ, acompanhada pelo MPB 4, interpretando a maravilhosa canção Cicatrizes. A infelicidade que eu sentia permaneceu, é verdade, mas a madrugada ficou mais suportável daí em diante.


segunda-feira, 1 de setembro de 2014

O que poderia explicar a estranha satisfação dos homens-massa? (II)


"Não é que o homem-massa seja idiota. Ao contrário, o atual é mais rápido, tem mais capacidade intelectiva que o de qualquer outra época. Mas essa capacidade não lhe serve de nada; a rigor, a vaga sensação de possuí-la só serve para ele fechar-se ainda mais em si, e não para usá-la. Consagra definitivamente a coleção de tópicos, preconceitos, pedaços de ideias ou, simplesmente, palavras vazias que ao acaso foi amontoando em seu interior, e, com uma audácia que só se explica pela ignorância, quer impô-las em qualquer lugar: [...] não é que o vulgo pense que é excepcional e não vulgar, mas sim que o vulgar proclama e impõe o direito da vulgaridade, ou a vulgaridade como um direito".


José Ortega y Gasset - A rebelião das massas



AVISO: O texto a seguir, para ser melhor compreendido, pressupõe a leitura da primeira postagem anteriormente publicada desta série, disponível aqui.

Antes de prosseguir, quero esclarecer um ponto.

Vivemos, de forma irreversível talvez, em sociedades de massa e todos nós, momentaneamente ou na maior parte do tempo (essa é justamente a questão), comportamo-nos como homens-massa. Não se trata de algo do tipo eles X nós.

Voltemos agora ao livro de José Ortega y Gasset.

Quero reiterar que o filósofo espanhol empenhou-se em não circunscrever o termo massa num sentido exclusivamente político. Como ele explica em A rebelião das massas*, "A vida pública não é apenas política e sim, ao mesmo tempo e até antes, intelectual, moral, econômica, religiosa, compreende todos os hábitos coletivos, inclusive o modo de se vestir e o modo de se divertir". O comportamento do homem-massa (e lembro que todos nós, em algum momento, somos esse indivíduo) pode ser identificado em várias facetas de sua vida, não só naquelas em que a ação política se faz mais evidente (como, por exemplo, protestos e manifestações). Dito isso, interessa-me no momento deter-me apenas na compleição intelectual do homem-massa.

É preciso, contudo, indicar primeiramente qual a perspectiva cultural assumida n' A rebelião das massas (da qual discordo, aliás) para prosseguirmos a discussão.

Sem meias-palavras: José Ortega y Gasset considera - como muitos pensadores de seu tempo - que a Europa e o "European way of life" são (ou deveriam ser) os faróis e os guias supremos da cultura universal. O século XX, entretanto, testemunhou um abalo profundo na crença de uma suposta superioridade cultural europeia, modificando os referenciais (antes aceitos sem qualquer questionamento) utilizados para definir o que se entendia por arte, religião, moralidade, conhecimento e outros conceitos (entre eles, a própria noção de cultura). De acordo com a visão do filósofo, a cultura europeia precisa ser defendida pois está sob ameaça.

Convém observar que é um sestro inseparável do pensamento conservador a opinião de que tudo o que é considerado certo ou sagrado por esse mesmo pensamento está, de alguma maneira, prestes a "decair". Discordo do posicionamento de Gasset em relação à dinâmica cultural porque seu ponto de vista induz a pensar que toda mudança civilizacional é ameaçadora simplesmente por ser mudança. Mas concordo noutro ponto. E é isso que nos interessa aqui.

Hoje é mais claro do que nunca que a cultura europeia (da qual, vale dizer, os norte-americanos são hoje os "herdeiros" mais poderosos, mesmo vivendo noutro continente) não é a condutora inconteste da cultura universal, mas é difícil negar que, durante séculos, ela in-formou o Ocidente. Consideremos o caso da filosofia e da ciência (e também no desdobramento dessa última em saber técnico/tecnológico). Ambas subjazem nossos sistemas educacionais, econômicos e jurídicos (para citar apenas esses três) e decorrem do acúmulo de reflexões e experiências desenvolvidas historicamente dentro da tradição cultural europeia. Pois bem. Se é legítimo e fundamental, à luz do atual contexto sociopolítico, questionar e contrapor-se à supremacia cultural europeia (e à dos EUA, como indiquei acima), não é razoável, por outro lado, negligenciar o que essa tradição nos legou. Legado que se expressa, por exemplo, no método científico, essência, obviamente, da atividade dos cientistas, da qual provêm, por sua vez, os objetos que satisfazem tanto o homem-massa atual.

A propósito, observemos este excerto de A rebelião das massas:

"Já começa a ser difícil atraírem-se discípulos para os laboratórios de ciência pura. E isso acontece quando a indústria atinge o seu maior desenvolvimento e quando as pessoas mostram o maior interesse pelo uso de aparelhos e medicamentos criados pela ciência [...] O que significa uma situação tão paradoxal? [...] Significa que o homem hoje dominante é um primitivo, um Naturmensch, emergindo no meio de um mundo civilizado. O mundo é civilizado, mas seu habitante não o é: nem sequer vê a civilização nele, mas a utiliza como se fosse natureza. O novo homem deseja o automóvel e desfruta dele, mas crê que é um fruto espontâneo de uma árvore do Éden. No fundo de sua alma desconhece o caráter artificial, quase inverossímil, da civilização e não estenderá seu entusiasmo pelos aparelhos até os princípios que os tornam possíveis [...] O homem-massa atual é, de fato, um primitivo, que entrou pelos bastidores no velho cenário da civilização".

O homem-massa contemporâneo está constantemente alegre com os dispositivos eletrônicos, com a velocidade dos veículos, com uma maior e mais diversificada oferta de alimentos, com a liberdade proporcionada pelos mecanismos democráticos**. Mas não demonstra a menor disposição para compreender como tais benefícios tornaram-se possíveis. Ou seja, o homem-massa parece não estar apto a empreender o esforço necessário para que o modelo civilizatório vigente (do qual ele extrai sua alegria) perdure e se amplie. Não se sente responsável por ele; utiliza-o "como se fosse natureza" e não percebe que está diante de um artifício resultante de intenso processo de racionalização e intelectualização.

Termino na próxima postagem.
__________
* ORTEGA y GASSET, José. A rebelião das massas. São Paulo: Martins Fontes, 1987 [Tradução de Maria Estela Heider Cavalheiro]

** Não se está esquecendo, nesse texto, que milhões de pessoas não podem partilhar dessa alegria pelo aterrador fato de se encontrarem na miséria e na opressão. Na verdade, esse estado de coisas, revelador de uma tremenda injustiça e de uma impiedosa desigualdade, é mais um motivo para considerar a alegria dos homens-massa muito estranha e despropositada.

BG de Hoje

Essa canção já foi BG no blog. Mas é que estou cada vez mais fascinado com o som desse grupo. BAND OF SKULLS, Sweet Sour.


sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Falou e disse...


"Talvez os grandes personagens literários sejam aqueles que sempre escapam à nossa compreensão plena. O intolerável Lear trazendo seus cem camaradas à casa da filha, o apaixonado Dante, obcecado por uma mocinha que encontrou brevemente, o desgraçado Dom Quixote, surrado e apedrejado por persistir em suas ilusões - por que eles nos comovem até as lágrimas, por que eles nos acompanham, por que nos sugerem que esta vida faz sentido no final das contas, a despeito de tudo? Eles não oferecem razão alguma; apenas pedem que acreditemos, reconheçamos, afirmemos sua existência 'sob juramento' ".*

*  MANGUEL, Alberto. Os livros e os dias: um ano de leituras prazerosas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 155

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

O que poderia explicar a estranha satisfação dos homens-massa? (I)



[Postagem atualizada em 13/09/2022]

Figura controversa (não obstante, pouco proeminente) na história da Filosofia, o madrilenho José Ortega y Gasset ganhou opositores aguerridos. Por exemplo: o teórico marxista György Lukács dizia (de forma exagerada, a meu ver) que as palavras de Hitler foram antes enunciadas, "num plano mais elevado", por pensadores como Nietzsche, Bergson e o filósofo espanhol (para ser justo, ele cita também Spengler; e no caso do autor de O declínio do Ocidente, concordo com a acusação de Lukács). Noutra frente, os defensores do multiculturalismo manifestam horror ao pensamento de Ortega Y Gasset. O elitismo que professa e sua obstinada defesa do individualismo deixam desconfortável até quem se dispõe (como este blogueiro) a compreender melhor seus pontos de vista. A esse respeito, aliás, vale dizer que Gasset não usa meias palavras ao admitir que*

"[...] notoriamente sustento uma interpretação radicalmente aristocrática da história. É radical, porque nunca disse que a sociedade humana deve ser aristocrática, mas muito mais do que isso. Disse e continuo acreditando, cada dia com mais convicção, que a sociedade humana é sempre aristocrática, queira ou não, por sua própria essência, a ponto de ser sociedade na medida em que é aristocrática, e deixa de sê-lo na medida em que se desaristocratiza".

Num mundo em que pelo menos algumas nações buscam ser mais democráticas, com ações governamentais e até na área empresarial (por mais raro que seja) visando mitigar a exclusão, esse posicionamento soa como afronta, mesmo com a ressalva do espanhol: "Que fique bem entendido que falo da sociedade e não do Estado".

Então por que perder tempo com um sujeito tão conservador?

Em alguns casos, talvez não se deva descartar tudo o que determinado filósofo tem a dizer. Pensando em José Ortega y Gasset, posso afirmar que suas reflexões no campo da política, além de reacionárias, não têm relevância alguma. Ao contrário, porém, de suas considerações voltadas para a ética (sem mencionar sua filosofia da educação); sobre isso vale a pena falar.

Comecemos por tentar estabelecer, ainda que provisoriamente, dois conceitos centrais - massa e homem-massa - dentro do livro a ser discutido aqui: A rebelião das massas, provavelmente o mais conhecido trabalho do autor.

Como se pode depreender, a massa possui um componente muito evidente em nossa era - a quantidade - mas Ortega y Gasset acrescenta um decisivo elemento de natureza qualitativa:

"O conceito de multidão é quantitativo e visual. Se o traduzirmos para a terminologia sociológica, sem alterá-lo, encontraremos a ideia de massa social. A sociedade é sempre uma unidade dinâmica de dois fatores: minorias e massas. As minorias são indivíduos ou grupos de indivíduos especialmente qualificados. Portanto, não se deve entender por massas, nem apenas, nem principalmente, 'as massas operárias'. Massa é 'o homem médio'. Desse modo converte-se o que era apenas quantidade - a multidão - em uma determinação qualitativa; é a qualidade comum, é o monstrengo social, é o homem enquanto não diferenciado dos outros homens, mas que representa um tipo genérico [...] A rigor, a massa pode definir-se como fato psicológico, sem necessidade de esperar o aparecimento dos indivíduos em aglomeração. Diante de uma só pessoa, podemos saber se é massa ou não. Massa é todo aquele que não atribui a si mesmo um valor - bom ou mau - por razões especiais, mas que se sente 'como todo mundo' e, certamente não se angustia com isso, sente-se bem por ser idêntico aos demais".

A massa, portanto, não é definida em termos de classe social: estabelece uma tipologia de seres humanos e descreve, de acordo com Gasset, o comportamento próprio desses sujeitos, hoje majoritários em nossas sociedades. São os homens-massa.


"O homem-massa é um homem cuja vida carece de projeto, segue à deriva. Por isso nada constrói, embora suas possibilidades, seus poderes sejam enormes". Esse indivíduo (sendo pobre ou rico, não importa aqui) está "satisfeito do jeito que é. Ingenuamente, sem ser arrogante, como a coisa mais natural do mundo, tenderá a afirmar e a qualificar como bom tudo o que tem em si: opiniões, apetites, preferências ou gostos. Por que não, se [...] nada nem ninguém o força a tomar consciência de que é um homem de segunda classe, limitadíssimo, incapaz de criar ou conservar a própria organização que dá à sua vida essa amplitude e esse contentamento, nos quais se apoia tal afirmação de si próprio?".

Entre outras características, o homem-massa não é capaz de autocrítica. Por isso vive contente. Ou, pelo menos, aparenta estar muito satisfeito consigo mesmo, ainda que o mundo à sua volta esteja indo para a latrina. Na opinião do pensador espanhol (da qual, nesse ponto específico, partilho), essa satisfação é estranha e perniciosa. De onde vem ela?

Continuo na próxima postagem.
__________
* ORTEGA y GASSET, José. A rebelião das massas. São Paulo: Martins Fontes, 1987 [Tradução de Maria Estela Heider Cavalheiro]


BG de Hoje

Ao pensar no BG, fui atrás de algo que fosse politicamente bem distinto do conservadorismo de José Ortega Y Gasset: RAGE AGAINST THE MACHINE e a canção Take The Power Back, cuja letra parece sob medida para se contrapor à visão eurocêntrica do filósofo espanhol. P. S. Como esses caras do RATM sabem juntar funk com pauleira...


segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Carolina, a favela e a Literatura (III)



Bem, encerremos esta série de postagens. E, devo dizer, tive muita satisfação em escrevê-la.

Um dos questionamentos mais comuns feitos a Quarto de despejo diz respeito à autenticidade do diário. Por exemplo: Fábio Lucas (geralmente mais arguto em outros escritos) foi um daqueles críticos literários cuja avaliação, na década seguinte ao lançamento da obra, recaiu apenas no aspecto documentário do relato*. Considerou-o "impressionante", embora repleto de "cacoetes estilísticos". Interessou, ao crítico, o fenômeno imprevisto, "que o próprio aproveitamento publicitário tornou mais relevante". E colocou a autenticidade do diário em xeque ao suspeitar do teor da "contribuição de um jornalista" (no caso, Audálio Dantas).

Por sua vez, o que diz Dantas?

Em A atualidade do mundo de Carolina**, o jornalista, responsável pela edição do texto publicado em 1960, escreve: "A repetição da rotina favelada, por mais fiel que fosse, seria exaustiva. Por isso foram feitos cortes, selecionados os trechos mais significativos". E acrescenta: "Mexi, também, na pontuação, assim como em algumas palavras cuja grafia poderia levar à incompreensão da leitura. E foi só, até a última linha". Ou seja, Audálio Dantas (na imagem à esquerda) afirma não ter realizado nenhuma alteração de monta no manuscrito recebido de Carolina Maria de Jesus. Entretanto, José Carlos Sebe Bom Meihy - pesquisador citado na postagem anterior - publicou uma outra versão da obra (em 1996), juntamente com Robert Levine, intitulada Meu estranho diário, por julgar que o trabalho editado por Dantas comprometeu o texto original. NOTA: Ainda não tive oportunidade de ler Meu estranho diário e cotejá-lo com a versão mais difundida, organizada pelo jornalista. De todo modo, o livro de Carolina estabeleceu-se no cenário cultural brasileiro, gerando recepções diferentes ao longo do tempo. Inclusive fora do país***.

Mas por que, afinal, mais do que um documento, Quarto de despejo é uma particularíssima obra de Literatura?

Não será, certamente, por trechos como este**** :

"... O céu é belo, digno de contemplar porque as nuvens vagueiam e formam paisagens deslumbrantes. As brisas suaves perpassam conduzindo os perfumes das flores. E o astro rei sempre pontual para despontar-se e recluir-se. As aves percorrem o espaço demonstrando contentamento. A noite surge as estrelas cintilantes para adornar o céu azul. Há várias coisas belas no mundo que não é possível descrever-se. Só uma coisa nos entristece: os preços, quando vamos fazer compras. Ofusca todas as belezas que existe".

É preciso reconhecer o acúmulo de imagens gastas e lugares-comuns surrados no excerto reproduzido acima (ainda que a narradora tenha o mérito de deixar clara sua insatisfação com a conjuntura econômica). Mas, menos do que um "cacoete estilístico", essa forma ("enfeitada", digamos) de escrever nos indica outra coisa, mais significativa. José Carlos S. B. Meihy*****, em relação a expressividade da escritora, notou corretamente, a meu ver, que

"Seus erros gramaticais, em contraste com a difícil explicação de seu vocabulário, representam facetas que fundem na necessidade expressiva a afetação de quem vê a literatura como poder. Isso, aliás, nunca esteve ausente da percepção de Carolina, que, mesmo sendo mulher fisicamente indefesa na favela, sabia que, por saber ler e escrever, tinha domínio dos códigos dos poderosos".

A escritora, portanto, não desconhecia que a Literatura é também um sistema (tenho em mente aqui o conceito brilhantemente formulado por Bernard Mouralis em As contraliteraturas). Sendo assim, para fazer parte desse sistema, a autora tentou simular (equivocadamente, nesse caso) o código de escrita que julgava ser o dos segmentos mais cultos da população. Porém, isso é compreensível para alguém que, como ela mesma nos relata no livro, tinha "apenas dois anos de grupo escolar".

Mas observemos agora, apenas para exemplificar a qualidade da escrita de Carolina Maria de Jesus,  estes dois outros excertos, extraídos também de Quarto de despejo:

1) "Antigamente era a macarronada o prato mais caro. Agora é o arroz e feijão que suplanta a macarronada. São os novos ricos. Passou para o lado dos fidalgos. Até vocês, feijão e arroz, nos abandona! Vocês que eram os amigos dos marginais, dos favelados, dos indigentes. Vejam só. Até o feijão nos esqueceu. Não está ao alcance dos infelizes que estão no quarto de despejo. Quem não nos despresou foi o fubá. Mas as crianças não gostam de fubá". 
2) "O gato é um sábio. Não tem amor profundo e não deixa ninguém escravisá-lo. E quando vai embora não retorna, provando que tem opinião. 
Se faço esta narração do gato é porque fiquei contente dela ter matado o rato que estava estragando os meus livros".

Essas passagens demonstram que Carolina Maria de Jesus, quando não se preocupava em escrever de modo "enfeitado", era inventiva, engenhosa ao narrar, mesmo que fosse mais "preocupada com a mensagem temática e não com o apuro formal", como assinala Meihy. Por isso, penso que talvez não seja o melhor expediente, numa análise mais aprofundada da obra dessa escritora (obviamente nem sequer esboçada neste blog), insistir em enquadrá-la nos pressupostos estéticos cristalizados da crítica literária mais formalista. Mas isso é assunto para outra oportunidade.

Na próxima semana, escreverei brevemente sobre algumas ideias expostas em A rebelião das massas, de José Ortega y Gasset.
__________
* LUCAS, Fábio. O caráter social da literatura brasileira. 2 ed. São Paulo: Quíron, 1976

** Texto que serve de prefácio à edição de Quarto de despejo utilizada para escrever esta série de postagens e referenciada mais abaixo.

*** Quarto de despejo foi publicado no exterior e particularmente nos EUA foi bem acolhido, recebendo o nome de Child of the dark, com sucessivas reedições.

**** JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 8 ed. São Paulo: Ática, 2001

***** MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Carolina Maria de Jesus: emblema do silêncio. Revista USP, São Paulo, vol. 37, mar./mai. 1998, p. 82 - 91. Disponível em <http://www.usp.br/revistausp/37/08-josecarlos.pdf>. Acesso em 14/04/2014

BG de Hoje

Que a composição literária, na cultura brasileira, tem proximidade tremenda com a música popular, não é segredo para ninguém. E ao ficar esses dias pensando na representação da pobreza nas cidades, dentro da nossa Literatura, através da obra de Carolina Maria de Jesus, acabei por me lembrar dos RACIONAIS MC's: não só rappers, mas cronistas essenciais da vida urbana no Brasil. E uma de suas canções mais emblemáticas e emocionantes é a célebre O homem na estrada.


terça-feira, 12 de agosto de 2014

Carolina, a favela e a Literatura (II)


Escreverei sobre o valor propriamente literário, estético, do livro Quarto de despejo (como anunciei que faria hoje) na próxima semana. Julgo necessário discutir, antes, a questão a seguir.
. . . . . . .

Lendo o ensaio Carolina Maria de Jesus: emblema do silêncio*, do historiador José Carlos S. B. Meihy, surpreendi-me ao saber que foi localizada uma caixa**, muito tempo depois da morte da escritora, contendo 37 cadernos, cujas páginas escritas ultrapassavam cinco mil. De acordo com Meihy:

"O acervo encontrado trazia uma quantidade grande de poemas, contos, quatro romances e três peças de teatro. Isso, entre lições escolares dos filhos, receitas de bolos, contabilidade doméstica. Escritos todos com a letra firme, clara e corrente de Carolina, tudo em papéis velhos encontrados no lixo, guardados sem o cuidado devido".

Em vida, além de Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus publicou outros quatro trabalhos: Casa de Alvenaria, Provérbios, Pedaços da fome e Diário de Bitita. Mas, como bem observa José Carlos S. B. Meihy,

"A existência preciosa de quatro romances enormes [e não publicados], por outro lado, demonstra que estamos em face de um caso único da história da cultura popular nacional, onde, na favela, uma autora semi-alfabetizada produziu uma obra que, segundo o impulso inicialmente dado, seria uma promessa de renovação de nossos critérios de definição cultural".

E por que tal renovação não se deu?

Adio a resposta para ressaltar, primeiramente, que, em diversas passagens de Quarto de despejo***, é perceptível um sentimento de autoconfiança (e expectativa positiva com relação a uma possível publicação), a despeito da vida infausta (a expressão é corriqueira no livro) sob a qual se encontrava a autora. Por exemplo:

"Vocês [as outras moradoras da favela] são incultas, não pode compreender. Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradáveis me fornece os argumentos".

Ou esta outra, mais direta:

"É que estou escrevendo um livro, para vendê-lo. Viso com esse dinheiro comprar um terreno para eu sair da favela".

E mais ainda:

"Tem hora que eu odeio o repórter Audálio Dantas. Se ele não prendesse o meu livro eu enviava os manuscritos para os Estados Unidos e já estava socegada". 
"- Pois é, Toninho, os editores do Brasil não imprime o que escrevo porque sou pobre e não tenho dinheiro para pagar. Por isso eu vou enviar o meu livro para os Estados Unidos. Ele deu-me varios endereços de editoras que eu devia procurar".

Carolina Maria de Jesus via a si mesma como poeta e, pelos excertos acima reproduzidos, percebe-se que também não duvidava da sua aptidão para a escrita narrativa e nem da validade de seu manuscrito no jogo editorial. Ainda assim, a obra dessa escritora não se tornou "uma promessa de renovação de nossos critérios de definição cultural". Muito em função do silêncio da crítica literária. A imprensa da época interessou-se por aquele fenômeno apenas enquanto fato "exótico"; os cadernos de cultura, no geral, limitaram-se (e até hoje assim o fazem) a consagrar o já consagrado. A crítica literária acadêmica, especializada, tinha outra "agenda" no momento em que a escritora surgia, apesar do contexto favorável da época (a despeito de se estar no período que antecedeu a ditadura militar) - ampliação do feminismo, do movimento negro e do maior interesse pela cultura popular.

Termino na próxima postagem, cumprindo a intenção manifestada no primeiro texto da série.
__________
* MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Carolina Maria de Jesus: emblema do silêncio. Revista USP, São Paulo, vol. 37, mar./mai. 1998, p. 82 - 91. Disponível em  <http://www.usp.br/revistausp/37/08-josecarlos.pdf>. Acesso em 14/04/2014

** O historiador localizou a caixa junto com a família da escritora e com Robert Levine, durante a elaboração do trabalho Cinderela negra - a saga de Carolina Maria de Jesus  (escrito em parceria com Levine).

*** JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 8 ed. São Paulo: Ática, 2001

BG de Hoje

Repito no BG a dupla SÁ & GUARABYRA. Mas é porque fiz um exercício de autocrítica ao lembrar da canção Ziriguidum tchan. Explico: na minha modesta coleção de CDs há muito mais artistas ingleses e norte-americanos do que brasileiros. Estou longe de ser chauvinista; porém, às vezes, não me dou conta do quanto sou afetado por algo (a música pop) que me faz esquecer de olhar a meu redor e sentir-me saudavelmente brasileiro.


segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Carolina, a favela e a Literatura (I)


"... As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo".

Carolina Maria de Jesus



No ano de 1960, quando foi lançado, assim como no decorrer daquela década, Quarto de despejo causou furor. E vendeu. Foram quase 100 mil exemplares, número significativo mesmo para os padrões atuais do restritivo mercado editorial brasileiro. Como explicar a acolhida impressionante de um livro particularíssimo, elaborado por escritora tão improvável? Digo improvável, pensando na origem e pertencimento de classe típicos dos intelectuais no país (a esse respeito, recomendo enfaticamente a leitura de Intelectuais à brasileira, do sociólogo Sérgio Miceli). Terá sido apenas um modismo daquele período e por isso sua obra é menos lida nos dias de hoje?

Audálio Dantas, o jornalista que encontrou Carolina Maria de Jesus em 1958 na favela do Canindé (São Paulo) e editou Quarto de despejo, em entrevista recente (e curta) à Cynara Menezes (blog Socialista Morena/Revista Carta Capital), acha "que, como sempre, a moda passou rapidinho. A maioria consumiu Carolina como uma novidade, uma fruta estranha. Carolina, como objeto de consumo, passou mas a importância de seu livro, um documento sobre os marginalizados, permanece" (a matéria de Cynara Menezes pode ser encontrada aqui). Pergunto-me, contudo: Quarto de despejo seria apenas um registro documentário?

No prefácio de uma edição bem ulterior do livro (a que disponho no momento*), intitulado A atualidade do mundo de Carolina, o mesmo Audálio Dantas faz a seguinte avaliação, desta vez mais ampla:

"Mas acima da excitação dos consumidores fascinados pela novidade, pelo inusitado feito daquela negra semi-analfabeta que alcançava o estrelato e, mais do que isto, ganhava dinheiro, pairava a força do livro, sua importância como depoimento, sua autenticidade e sua paradoxal beleza".

Sem dúvida, como já foi dito repetidas vezes, Quarto de despejo é a visão de dentro da favela, falando da pobreza e da miséria, por alguém que viveu verdadeiramente nessas condições. Mesmo assim, acredito ser reducionista interpretar o trabalho da escritora apenas como testemunho, depoimento ou material a ser aproveitado numa análise sociológica.

É sobre o valor propriamente literário, estético, do livro que quero escrever. Quero falar - como foi dito por Dantas - de sua paradoxal beleza. Tentarei fazer isso na próxima postagem.
__________
* JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 8 ed. São Paulo: Ática, 2001

BG de Hoje

Nos últimos meses tenho tido muita vontade (mas muita vontade mesmo) de me deitar numa rede e ficar dias e dias só "panguando" (como se diz aqui em Minas). E ouvindo música, claro. Uma das mais tocadas seria Cinamomo, da dupla SÁ & GUARABYRA.