segunda-feira, 22 de setembro de 2014

A náusea: romance da contingência



" 'Mas por que', pensei, 'por que tantas existências, já que todas se parecem?'. Para que tantas árvores, todas iguais? Tantas existências fracassadas e obstinadamente recomeçadas e novamente fracassadas - como os esforços desajeitados de um inseto caído de costas? (Eu era um desses esforços)".


do personagem-narrador Roquentin, em A náusea, de Jean-Paul Sartre

 
Não é segredo que se compreende melhor a filosofia de Jean-Paul Sartre através da leitura de sua ficção e de seu teatro, pois seus textos propriamente filosóficos, na minha opinião, costumam ser difíceis (excetuando, talvez, os ensaios A imaginação e Que é a literatura?, além do opúsculo O existencialismo é um humanismo).

A problemática da existência e a indeterminação que caracteriza a condição humana são, naturalmente, tematizadas nas centenas de páginas da principal obra filosófica do autor - O ser e o nada (originalmente publicada em 1943); contudo, a argumentação de Sartre nesse tratado é, frequentemente, de uma aridez intimidadora. Por sua vez,  o romance A náusea (lançado antes, em 1938) é composto pelos mesmos temas, sendo, contudo, muito mais agradável de se ler.

Devo confessar, entretanto, que não atinei para a profundidade da reflexão proposta por A náusea quando o li pela primeira vez, há quase 25 anos. Estava no fim da adolescência, confuso, num dos piores momentos de minha vida. Não compreendi que o ritmo lento da narrativa era intencional e artisticamente relevante. Ainda assim, de alguma forma, o livro deixou-me um tanto perturbado. Já tinha ouvido, não sei quando nem onde, a máxima "A existência precede a essência" - que o filósofo francês amplificou por meio de seus escritos, mas não compreendia seu significado. Busquei interpretá-la através do que encontrei no romance sartreano e não tive êxito. Felizmente, voltei ao livro diversas outras vezes (inclusive no último fim de semana, para escrever esta postagem) e hoje entendo-o melhor, além de me sentir afetivamente ligado a ele.

Foi através de A náusea que compreendi plenamente o que é a contingência e como esta é um elemento preponderante na realidade que nos cerca.

Antoine Roquentin, o personagem-narrador do livro, registra no seu diário a certa altura*:

"O essencial é a contingência. O que quero dizer é que, por definição, a existência não é a necessidade. Existir é simplesmente estar presente; os entes aparecem, deixam que os encontremos, mas nunca podemos deduzi-los. Creio que há pessoas que compreenderam isso. Só que tentaram superar essa contingência inventando um ser necessário e causa de si próprio. Ora, nenhum ser necessário pode explicar a existência: a contingência não é uma ilusão, uma aparência que se pode dissipar; é o absoluto, por conseguinte a gratuidade perfeita. Tudo é gratuito: esse jardim, essa cidade e eu próprio. Quando ocorre que nos apercebamos disso, sentimos o estômago embrulhar, e tudo se põe a flutuar [...]: é isso a Náusea [...]"

E mais à frente, ele acrescentará:

"Agora eu sabia: as coisas são inteiramente o que parecem - e por trás delas... não existe nada".

O que Roquentin quer dizer ao leitor (e, provavelmente, o autor também o quer, através do personagem) é que não há uma "realidade além da realidade" ou um desígnio (externo a nós), predeterminação ou destino a conduzir as vidas dos indivíduos. Uma existência simplesmente existe, aparece, dá-se a ver. Não é necessária; é contingente, gratuita. E farão parte da condição humana as tentativas de prover essas existências (caso surjam sob a forma de vidas individuais) de significado e de sentido, porque estes não nos foram dados de antemão. Mas, como se pode perceber, bastando olhar para dentro de si, trata-se de tarefa nada simples. Porque essa atribuição de significado e sentido precisa ser feita a todo instante por meio das ações que se escolhe fazer - ou deixar de fazer (lê-se em O existencialismo é um humanismo**: "Um homem embrenha-se na sua vida, desenha o seu retrato, e para lá desse retrato não há nada". E logo adiante, Sartre arremata: "O que queremos dizer é que um homem nada mais é do que uma série de empreendimentos, que ele é a soma, a organização, o conjunto das relações que constituem estes empreendimentos").

Há ainda outro aspecto sobre o qual gostaria de falar. As obras literárias que mais tocam os leitores muitas vezes extraem seu poder de atração do sentimento de identificação que nutrimos por determinados personagens. Angústia, de Graciliano Ramos,  por exemplo, é um de meus livros prediletos (como já escrevi aqui) porque, entre outras razões, olho para o personagem Luís da Silva como um espelho. Os demônios e Os irmãos Karamazov, de Dostoiévski, também são mais significativos para mim por causa de, respectivamente, Kirílov e Ivan Karamazov.

Voltando ao livro de Sartre. Antoine Roquentin, apesar de ser um historiador culto e um ocioso da classe média (ele próprio registrou em seu diário: "Não tenho problemas, tenho dinheiro, fruto de rendas, não tenho patrão [...]"), relata sentimentos - desespero, angústia, desamparo - em nada diferentes dos meus (pobre-diabo que sou). Já senti - e sinto frequentemente - a misantropia de Roquentin (o excerto abaixo expressa tão bem o que penso a respeito dos indivíduos em geral!):

"Eles são sossegados, um pouco taciturnos, pensam no Amanhã, isto é, simplesmente um novo hoje; as cidades dispõem apenas de um único dia que retorna igualzinho todas as manhãs. Só o enfeitam um pouco aos domingos. Que imbecis! Repugna-me pensar que vou rever seus rostos espessos e tranquilos. Eles legislam, escrevem romances populistas, casam-se, cometem a extrema tolice de fazer filhos"

Grandes obras literárias também nos deixam lições. De A náusea, extraí esta: "Todo ente nasce sem razão, se prolonga por fraqueza e morre por acaso". Essa frase nunca abandonou meu pensamento.
___________
* SARTRE, Jean-Paul. A náusea. Rio de Janeiro: Nova Fronteiro, 1986. [Tradução de Rita Braga]

** ________. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1978 [Tradução de Vergílio Ferreira] (Coleção Os pensadores)

BG de Hoje

Como diria o filósofo Kafunga (ex-goleiro e comentarista de futebol), hoje é sem coré-coré: PANTERA, Domination.


terça-feira, 16 de setembro de 2014

"Como disse o Millôr..."


Semanas atrás, a 12ª edição da FLIP (Feira Literária Internacional de Parati) - talvez o evento do gênero com maior visibilidade hoje no Brasil - homenageou Millôr Fernandes (falecido em 2012).

O autor carioca foi um multimídia avant la lettre e é difícil destacar qual era sua principal atividade (Dramaturgo? Tradutor? Cartunista? Poeta? E outras mais...). Entretanto, não há dúvida de que ele será lembrado com um dos maiores humoristas do país, com uma produção de textos e desenhos sempre muito alta. Às vezes, seu trabalho é marcado pela sofisticação; noutras, pela simplicidade (e nem por isso menos engraçado, como nesta pequena biografia*):

"Millôr nasceu. Aos 13 anos de idade, já estava. O que não invalida. No entanto, sua atuação teatral, até onde se sabe dos livros publicados, foi constatado sem qualquer dúvida. Ao concluir seu Mestrado, percebeu logo. Um dia, depois de um longo programa de televisão, foi que. Amigos e pessoas vagamente interessadas, naturalmente. Onde e como, mas talvez, Millôr jamais, no caso. Ao ser agraciado disse, e não foi à toa. Entre os tradutores brasileiros. E tanto em 1960 quanto em 1978. Mas nem todo mundo concorda. O resto, diz ele. Ou seja, hoje em dia, como ninguém ignora".

A obra de Millôr Fernandes teve sempre grande alcance, chegando a "um público abrangente, [mas] sem perder a erudição", como observou o diretor geral da FLIP, Mauro Munhoz. Numa das mesas do evento (O guru do Méier), seus participantes - os jornalistas Hugo Sukman e Sérgio Augusto, ao lado dos cartunistas Claudius e Cássio Loredano - ressaltaram a insubmissão do artista a credos partidários ou ideológicos de ocasião. Loredano lembrou ainda uma frase antológica (e aparentemente nonsense) de Millôr: "Não gosto da direita porque ela é de direita e não gosto da esquerda porque ela é de direita".

E por falar em frases... É frequente em diversas ocasiões, ao presenciar um acontecimento ou envolver-me nalguma situação, falar "como disse o Millôr..." e emendar uma frase do artista, concernente àquele episódio. E estou certo de que muitas pessoas Brasil afora fazem o mesmo. Millôr Fernandes foi o mais genial autor de ditos curtos e epigramas da cultura brasileira, anos-luz à frente de Apparício Torelly (o "Barão de Itararé), Nelson Rodrigues ou Sérgio Porto (o "Stanislaw Ponte Preta"). Quando, em 1994, foi lançado Millôr definitivo: a bíblia do caos**, os admiradores do escritor regalaram-se com a publicação, reunindo 5142 pequenas joias do humorista. Eis algumas das que mais gosto:

"Bota na tua cabecinha que amanhã pode acontecer uma grande desgraça. O dia de hoje vai ficar muito melhor". 
"As coisas nem sempre são tão ruins quanto parecem. Mas quase sempre são". 
"Quantas vezes eu já fui agredido por bêbados em minha vida? Muitas. Mas poucas em relação ao número de vezes em que fui agredido por semi-ideias, por tolices ditas pomposamente, por ideologias malmastigadas e filosofias maldigeridas. Assim a pergunta é pertinente - quem é mais perigoso: o cara que bebe mal ou o cara que lê mal?" 
"Um pessimista é o único que está preparado para ser otimista quando seu pessimismo der certo". 
"Só conheço uma forma infalível de planejamento familiar - a prosperidade". 
"O cinismo é o máximo da sofisticação filosófica. Só ele se aproxima da verdade". 
"Caras brilhantes fazem frases brilhantes e idiotas as repetem. Não vá repetir essa pros seus amigos". 
"A hipocrisia já é um progresso ético" 
"Sou humanista: Isso não significa ser bonzinho ou acreditar que o homem é bonzão. Significa apenas que aceito o homem como é - medroso, primário, invejoso, incapaz, acertando por acaso e errando por vaidade e ignorância: meu irmão", 
"Se a ocasião faz o ladrão, a falta de oportunidade faz a honestidade?" 
"Eu jamais suportaria como amigo um cara que me dissesse 10% do que eu digo a mim mesmo em certas madrugadas de insônia".
E outras duas, provenientes de outras fontes:

"O mundo é cheio de idiotas. Felizmente estão sentados nas outras mesas" (durante uma conversa com Tom Jobim, num bar no Rio de Janeiro) 
"Quem está na merda não filosofa (moral que encerra a fábula Os perigos da filosofia)

Noutra das mesas da FLIP (O estilo Millôr), Reinaldo (ex-integrante do Casseta & Planeta) contou que começou "lendo Millôr na idade em que os garotos hoje lêem Harry Potter, ele era onipresente. Tinha O Cruzeiro em qualquer sala de espera, e eu já tinha aprendido que naquela revista tinha duas páginas de Millôr, que eu sempre procurava”. Lembrei-me então de duas experiências pessoais que marcaram meu contato com a obra desse autor. Era ainda criança quando tentava entender os cartuns publicados por Millôr na revista Veja, disponível em nossa casa graças a uma assinatura paga por meu irmão mais velho. Depois, aos 13 anos, numa inesquecível atividade escolar promovida por uma professora de português muito dedicada, senti grande prazer com a leitura de A morte da tartaruga. Felizmente, uma de minhas irmãs possuía o livro Fábulas fabulosas, no qual esse texto fora publicado originalmente, e pude lê-lo por inteiro. Daí em diante, sempre me mantive próximo da obra de Millôr Fernandes.

Link para o site da 12ª edição da FLIP: http://www.flip.org.br/

Caso o(a) leitor(a) tenha interesse, link para uma entrevista muito boa concedida por Millôr ao programa Roda Viva (TV Cultura) em 1989: http://tvcultura.cmais.com.br/millor


* Pode ser encontrada numa das "orelhas' do livro 100 fábulas fabulosas (Editora Best Seller, 2011, 7ª edição). Mas há também uma "autobiografia de mim mesmo à maneira de mim próprio", também engraçadíssima, e com alguns trechos incluídos na apresentação das Novas fábulas fabulosas (Editora Nórdica, 1997, 5ª edição).

** O exemplar que atualmente possuo desse livro é uma edição de bolso mais recente da L&PM.

BG de Hoje

Domingo passado, estava tomando cerveja num bar agradavelmente decadente em bairro próximo à minha residência. O dono trocava, vez ou outra, os discos (de vinil) que compunham a "trilha sonora" da birosca. E um destes foi Do fundo do nosso quintal (do grupo FUNDO DE QUINTAL), um álbum que, em outras épocas, ouvi até cansar, principalmente por causa de Eu não quero mais, um samba de partido-alto, contagiante e bem humorado, como há muito não se encontra por aí.


quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Faltou ação


Bíblia em ação (Geográfica Editora, 2013, 5 ª edição) não é um bom entretenimento.

Trata-se de uma adaptação, para os quadrinhos, de episódios bíblicos que vão do velho ao novo testamento.

Claro que HQ não é apenas entretenimento; elevou-se em termos estéticos e hoje, todos sabemos, está em pé de igualdade com outras formas de arte narrativa.

Entretanto, justamente por se persistir numa concepção empobrecida do que significam os quadrinhos atualmente, adaptam-se determinados textos (considerados difíceis) para o formato de HQ, com o intuito de "facilitar" sua leitura. Parece ser o caso dessa Bíblia em ação.

O responsável pelo trabalho, Sérgio Cariello - apresentado como "artista completo desde a infância" - possui um traço e um enquadramento que nos remetem às pequenas sagas de super-heróis produzidas nos anos 1970 e início da década seguinte, muito presentes nas publicações standard das megaempresas do setor, Marvel e DC (estúdios, aliás, nos quais Cariello trabalhou). Percebe-se, no desenho do adaptador, a nítida influência de artistas como Tony DeZuniga e John Buscema (este último conhecido por ilustrações de Thor, Surfista Prateado e Conan, o bárbaro). Não sei dizer se estamos diante de uma homenagem à "escola" de narração quadrinística representada por esses desenhistas renomados, mas é perceptível, logo de saída, que o estilo de Sérgio Cariello não dialoga com a produção de quadrinhos de vanguarda. 

A caracterização visual dos personagens não foge de uma receita já testada. Todos apresentam traços fisionômicos, tons de pele e cabelos que, acredito, não são nada condizentes com o que seria de se esperar de povos autóctones do Oriente Médio e adjacências (para se ter ideia, os egípcios ilustrados estão mais para anglo-saxões...). A figura de Jesus, por exemplo, repete a mesma imagem consagrada pela iconografia religiosa desde a baixa Idade Média (até a túnica branca e o manto azul) e que é reproduzida à exaustão nos folhetos das Testemunhas de Jeová ou nos desenhos animados nada criativos usados para catequese e evangelização.

O maior problema do livro, porém, são as poucas cenas de ação. Falta considerável, pois a publicação quer transpor os episódios bíblicos para a estética das histórias em quadrinhos de super-heróis, como se pode depreender a partir de seu prefácio:

"E, se a palavra ' herói ' normalmente remete a figuras como o Super-Homem, que é capaz de lançar um carro pelos ares com um simples sopro, que dizer de Deus, que criou todo o universo e a vida com um simples sopro? Super-Homem pode salvar o dia com sua força, mas Jesus salvou o mundo inteiro com sua morte!"

A comparação com o personagem kriptoniano acima citado não é, portanto, fortuita. Mas o livro decepciona o leitor que buscava ação. Passagens que poderiam ser empolgantes (como o episódio Sansão e Dalila, ou a luta de Davi contra Golias, ou ainda as imagens impactantes do apocalipse) são pouco destacadas. Por outro lado, mais de 84 páginas são dispensadas à teologização e institucionalização do cristianismo após a morte e alegada ressurreição do Cristo (o que pode até ser importante para o crente*, mas que, do ponto de vista de uma narrativa quadrinística que se propõe a ser de ação, acaba tendo resultado decepcionante).

. . . . . . .

Antes de encerrar esta postagem gostaria de aproveitar a ocasião para tentar esclarecer um posicionamento que passarei a exprimir em todos os momentos nos quais me sentir obrigado a manifestá-lo.

Ouço com frequência: "ateus são arrogantes". E mais: são metidos a donos da verdade e se acham mais inteligentes do que os outros (ou, pelo menos, mais do que aqueles que acreditam em divindades e/ou entes sobrenaturais).

Não tenho procuração para falar em nome de todos os ateus. Portanto irei expor apenas o que penso e como me coloco diante dessas críticas, supondo, entretanto, que essa exposição e essa colocação sejam familiares a outros descrentes similares a mim.

Sendo ateu, procuro também ser cético. E um cético é alguém que, para aceitar algo, precisa antes ter evidências razoáveis sobre a plausibilidade desse algo. A certeza sobre as coisas do mundo precisa ser construída racionalmente e, à vezes, nem sequer é atingida, permanecendo no campo da provisória incerteza. Ou seja, o cético e o ateu têm dúvidas profundas sobre diversos aspectos de nossa realidade.

Para uma boa parte dos crentes, contudo, parece não ser assim. Com impudente presunção, declaram conhecer uma verdade definitiva por meio da fé. Ou seja, têm certeza absoluta sobre o principal fundamento da realidade, apresentando para tanto evidências muito frágeis (e, muitas vezes, não apresentando nenhuma, a não ser o próprio sentimento ou desejo pessoal).

Quem é o arrogante, nesse caso? Quem está se comportando como "dono da verdade"?

Quanto à reclamação de que os ateus se acham mais inteligentes, digo o seguinte: por exigirem melhores evidências para considerar algo verdadeiro ou digno de crença, os ateus esforçam-se um pouco mais para compreender como o mundo é. Para isso, leem mais, estudam mais, não aceitando sem mais nem menos aquilo que está escrito num conjunto de textos ao qual se atribuiu caráter sagrado ou aquilo que está contido no discurso de um sacerdote ou outro representante de alguma organização religiosa. Aliás, a acomodação intelectual é algo que me desagrada muito em algumas pessoas. Não quero dizer com isso que ateus são mais inteligentes do que crentes; apenas vejo algumas indicações de que os primeiros são geralmente menos inertes intelectualmente do que os segundos. Deixo claro que isso é apenas uma impressão pessoal, não uma comprovação empírica.

Para finalizar. O livro hoje aqui discutido chegou às minhas mãos na forma de um presente de aniversário. Tenho imenso amor e respeito por quem me deu esse presente. Apesar disso, não posso deixar de perceber nesse gesto um resquício da atitude presunçosa e o ar superior de alguns daqueles que acreditam em divindades e dos quais acabei de falar. Para essas pessoas, o ateu sofre de uma espécie de "patologia" que pode ser "curada" mediante "doses" repetidas de proselitismo religioso ou com "pílulas" extraídas do livro considerado (por eles) sagrado. Há nessa atitude um menosprezo da parte do crente em relação ao ponto de vista do ateu (que, diga-se de passagem, desenvolveu-o, em muitos casos, através de um longo processo, legítimo e autônomo, de elaboração e reelaboração de suas convicções). Gostaria de deixar claro que essa atitude proselitista, mesmo querendo ser "do bem", tem um quê da disposição autoritária de quem não convive bem com o pensamento divergente. Vou, a partir de agora, declarar meu desagrado com isso todas as vezes em que o proselitismo religioso vier me incomodar.

* O termo crente está sendo usado nesta postagem com o significado de "aquele que acredita numa divindade", em oposição ao termo ateu ("aquele que não acredita em nenhuma"). Assim, crente, neste contexto, designa todos os que acreditam em Deus, independentemente da denominação religiosa da qual fazem parte.

BG de Hoje

Direto ao ponto: FAITH NO MORE e o propositalmente tosco clipe de Everything's ruined.


sexta-feira, 5 de setembro de 2014

O que poderia explicar a estranha satisfação dos homens-massa? (III)


"Toda vida é luta, é o esforço para ser ela mesma".


José Ortega y Gasset - A rebelião das massas



AVISO: O texto a seguir, para ser melhor compreendido, pressupõe a leitura da primeira e da segunda postagens anteriormente publicadas desta série, disponíveis aqui e aqui.

No início deste conjunto de escritos sobre o pensamento de Ortega y Gasset, eu havia dito que suas considerações no campo da ética são preciosas - fazendo, contudo, a advertência de que o mesmo não se poderia dizer de suas ideias políticas reacionárias. As reflexões morais desse pensador incidem sobre duas noções que, de uns tempos pra cá, venho estudando com muito interesse: responsabilidade e esforço individual.

Como escrevi anteriormente, o filósofo espanhol divide a sociedade em dois grupos - minorias e massas - que não equivalem a classes sociais, mas sim a "classes de homens". Explicando melhor: nas minorias estão "indivíduos ou grupos de indivíduos especialmente qualificados"; nas massas encontram-se aqueles que se contentam apenas com sua mediocridade.

Por isso, n' A rebelião das massas*, Ortega y Gasset afirma que

"[...] a divisão mais radical que deve ser feita na humanidade é dividi-la em duas classes de criaturas: as que exigem muito de si mesmas e se acumulam de dificuldades e deveres, e as que não exigem de si nada de especial, para as quais viver é ser a cada instante o que já são, sem esforço para o aperfeiçoamento de si próprias, boias que vão à deriva".

E por que o homem-massa parece tão satisfeito, a exigir tão pouco de si próprio?

Segundo o pensador espanhol, o homem-massa contemporâneo - a despeito dos dados objetivos do mundo que indicam um estado de coisas bem pouco deleitável - é dominado, psicologicamente, pela "impressão inata e radical de que a vida é fácil, superabundante, sem limitações trágicas". Não se sentindo limitado, esse indivíduo procurará realizar e expressar livremente todos os seus desejos, sem receio algum de impor sua vulgaridade - pois não teme ser contrariado - e sem julgar necessário estabelecer compromissos éticos com a coletividade. Lembra uma criança mimada.

"Mimar" - escreve Gasset - "é não limitar os desejos, dar a um ser a impressão de que tudo lhe é permitido, que não é obrigado a nada. A criatura submetida a esse regime não tem noção de seus próprios limites. Por se evitar qualquer pressão à sua volta, qualquer choque com outros seres, chega a acreditar efetivamente que só ele existe, e se acostuma a não considerar os demais, principalmente a não considerar ninguém [como sendo intelectual e moralmente] superior a ele".

Gostaria de salientar, como escrevi antes, que todos nós inseridos em sociedades de massa, consciente ou inconscientemente, exercemos o papel de homens-massa, com maior ou menor intensidade. A grande questão, todavia, é: o que pretendemos fazer para escaparmos, pelo menos às vezes, da inércia intelectual e moral que caracteriza esse papel (caso, naturalmente, estejamos dispostos a isso)? Uma tal decisão implica procurar ser responsável (em relação à vida coletiva) e esforçar-se individualmente (para aprimorar-se como ser pensante).

Pode-se não concordar com a visão de mundo professada por José Ortega y Gasset n' A rebelião das massas, mas muitos de seus ensaios filosóficos têm pelo menos a intenção de nos fazer voltar os olhos para nossas próprias condutas, com o fito de nos tornar mais autocríticos. E incluo um último (e belíssimo) excerto de seu livro como fechamento da discussão até aqui empreendida:

"A vida que é antes de tudo o que podemos ser, vida possível, também é, por esse mesmo fato, decidir entre as possibilidades o que de fato vamos ser. Circunstância e decisão são dois elementos essenciais de que se compõe a vida. A circunstância - as possibilidades - é o que chamamos o mundo. A vida não escolhe seu mundo, mas viver é encontrar-se, de início, num mundo determinado que não pode ser trocado: neste de agora. Nosso mundo é a dimensão de fatalidade que integra nossa vida. Mas essa fatalidade vital não é semelhante à mecânica [...] Em vez de nos ser imposta uma trajetória, nos são impostas várias, o que, consequentemente, nos força... a escolher. É surpreendente a condição de nossa vida! Viver é sentir-se fatalmente forçado a exercer a liberdade, a decidir o que vamos ser neste mundo. Não há um momento de descanso para nossa atividade de decisão. Inclusive quando, desesperados, nos abandonamos à sorte, decidimos não decidir. Portanto é falso dizer-se que na vida são 'as circunstâncias que decidem'. Ao contrário: as circunstâncias são o dilema sempre novo, ante o qual temos que nos decidir. Mas o que decide é o nosso caráter".
__________
* ORTEGA y GASSET, José. A rebelião das massas. São Paulo: Martins Fontes, 1987 [Tradução de Maria Estela Heider Cavalheiro]

BG de Hoje

Insone mais uma vez, fui trocando as estações do rádio e numa delas escutei ROBERTA SÁ, acompanhada pelo MPB 4, interpretando a maravilhosa canção Cicatrizes. A infelicidade que eu sentia permaneceu, é verdade, mas a madrugada ficou mais suportável daí em diante.


segunda-feira, 1 de setembro de 2014

O que poderia explicar a estranha satisfação dos homens-massa? (II)


"Não é que o homem-massa seja idiota. Ao contrário, o atual é mais rápido, tem mais capacidade intelectiva que o de qualquer outra época. Mas essa capacidade não lhe serve de nada; a rigor, a vaga sensação de possuí-la só serve para ele fechar-se ainda mais em si, e não para usá-la. Consagra definitivamente a coleção de tópicos, preconceitos, pedaços de ideias ou, simplesmente, palavras vazias que ao acaso foi amontoando em seu interior, e, com uma audácia que só se explica pela ignorância, quer impô-las em qualquer lugar: [...] não é que o vulgo pense que é excepcional e não vulgar, mas sim que o vulgar proclama e impõe o direito da vulgaridade, ou a vulgaridade como um direito".


José Ortega y Gasset - A rebelião das massas



AVISO: O texto a seguir, para ser melhor compreendido, pressupõe a leitura da primeira postagem anteriormente publicada desta série, disponível aqui.

Antes de prosseguir, quero esclarecer um ponto.

Vivemos, de forma irreversível talvez, em sociedades de massa e todos nós, momentaneamente ou na maior parte do tempo (essa é justamente a questão), comportamo-nos como homens-massa. Não se trata de algo do tipo eles X nós.

Voltemos agora ao livro de José Ortega y Gasset.

Quero reiterar que o filósofo espanhol empenhou-se em não circunscrever o termo massa num sentido exclusivamente político. Como ele explica em A rebelião das massas*, "A vida pública não é apenas política e sim, ao mesmo tempo e até antes, intelectual, moral, econômica, religiosa, compreende todos os hábitos coletivos, inclusive o modo de se vestir e o modo de se divertir". O comportamento do homem-massa (e lembro que todos nós, em algum momento, somos esse indivíduo) pode ser identificado em várias facetas de sua vida, não só naquelas em que a ação política se faz mais evidente (como, por exemplo, protestos e manifestações). Dito isso, interessa-me no momento deter-me apenas na compleição intelectual do homem-massa.

É preciso, contudo, indicar primeiramente qual a perspectiva cultural assumida n' A rebelião das massas (da qual discordo, aliás) para prosseguirmos a discussão.

Sem meias-palavras: José Ortega y Gasset considera - como muitos pensadores de seu tempo - que a Europa e o "European way of life" são (ou deveriam ser) os faróis e os guias supremos da cultura universal. O século XX, entretanto, testemunhou um abalo profundo na crença de uma suposta superioridade cultural europeia, modificando os referenciais (antes aceitos sem qualquer questionamento) utilizados para definir o que se entendia por arte, religião, moralidade, conhecimento e outros conceitos (entre eles, a própria noção de cultura). De acordo com a visão do filósofo, a cultura europeia precisa ser defendida pois está sob ameaça.

Convém observar que é um sestro inseparável do pensamento conservador a opinião de que tudo o que é considerado certo ou sagrado por esse mesmo pensamento está, de alguma maneira, prestes a "decair". Discordo do posicionamento de Gasset em relação à dinâmica cultural porque seu ponto de vista induz a pensar que toda mudança civilizacional é ameaçadora simplesmente por ser mudança. Mas concordo noutro ponto. E é isso que nos interessa aqui.

Hoje é mais claro do que nunca que a cultura europeia (da qual, vale dizer, os norte-americanos são hoje os "herdeiros" mais poderosos, mesmo vivendo noutro continente) não é a condutora inconteste da cultura universal, mas é difícil negar que, durante séculos, ela in-formou o Ocidente. Consideremos o caso da filosofia e da ciência (e também no desdobramento dessa última em saber técnico/tecnológico). Ambas subjazem nossos sistemas educacionais, econômicos e jurídicos (para citar apenas esses três) e decorrem do acúmulo de reflexões e experiências desenvolvidas historicamente dentro da tradição cultural europeia. Pois bem. Se é legítimo e fundamental, à luz do atual contexto sociopolítico, questionar e contrapor-se à supremacia cultural europeia (e à dos EUA, como indiquei acima), não é razoável, por outro lado, negligenciar o que essa tradição nos legou. Legado que se expressa, por exemplo, no método científico, essência, obviamente, da atividade dos cientistas, da qual provêm, por sua vez, os objetos que satisfazem tanto o homem-massa atual.

A propósito, observemos este excerto de A rebelião das massas:

"Já começa a ser difícil atraírem-se discípulos para os laboratórios de ciência pura. E isso acontece quando a indústria atinge o seu maior desenvolvimento e quando as pessoas mostram o maior interesse pelo uso de aparelhos e medicamentos criados pela ciência [...] O que significa uma situação tão paradoxal? [...] Significa que o homem hoje dominante é um primitivo, um Naturmensch, emergindo no meio de um mundo civilizado. O mundo é civilizado, mas seu habitante não o é: nem sequer vê a civilização nele, mas a utiliza como se fosse natureza. O novo homem deseja o automóvel e desfruta dele, mas crê que é um fruto espontâneo de uma árvore do Éden. No fundo de sua alma desconhece o caráter artificial, quase inverossímil, da civilização e não estenderá seu entusiasmo pelos aparelhos até os princípios que os tornam possíveis [...] O homem-massa atual é, de fato, um primitivo, que entrou pelos bastidores no velho cenário da civilização".

O homem-massa contemporâneo está constantemente alegre com os dispositivos eletrônicos, com a velocidade dos veículos, com uma maior e mais diversificada oferta de alimentos, com a liberdade proporcionada pelos mecanismos democráticos**. Mas não demonstra a menor disposição para compreender como tais benefícios tornaram-se possíveis. Ou seja, o homem-massa parece não estar apto a empreender o esforço necessário para que o modelo civilizatório vigente (do qual ele extrai sua alegria) perdure e se amplie. Não se sente responsável por ele; utiliza-o "como se fosse natureza" e não percebe que está diante de um artifício resultante de intenso processo de racionalização e intelectualização.

Termino na próxima postagem.
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* ORTEGA y GASSET, José. A rebelião das massas. São Paulo: Martins Fontes, 1987 [Tradução de Maria Estela Heider Cavalheiro]

** Não se está esquecendo, nesse texto, que milhões de pessoas não podem partilhar dessa alegria pelo aterrador fato de se encontrarem na miséria e na opressão. Na verdade, esse estado de coisas, revelador de uma tremenda injustiça e de uma impiedosa desigualdade, é mais um motivo para considerar a alegria dos homens-massa muito estranha e despropositada.

BG de Hoje

Essa canção já foi BG no blog. Mas é que estou cada vez mais fascinado com o som desse grupo. BAND OF SKULLS, Sweet Sour.