segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Sensações

À doce J., com muito afeto


O escritor paranaense Dalton Trevisan é conhecido por sua aversão a entrevistas e aparições públicas. Mas numa de suas poucas declarações à imprensa, quando perguntado sobre o que realmente valia a pena na vida, citou, entre outras coisas, a leitura de "um conto de Tchekhov".

Anton Pavlovitch Tchekhov notabilizou-se mundialmente por suas peças teatrais e por suas histórias curtas. E, entre as últimas, aquelas de caráter humorístico. No entanto, o autor russo conseguia, não raro, imprimir uma grande delicadeza dramática em algumas delas. É o caso do melancólico (e belo) conto O beijo*.

Um grupo de oficiais é convidado a visitar um certo general Von Rabbek, numa recepção promovida em casa deste. Entre estes militares, encontra-se o capitão Riabóvitch, que, segundo o narrador, era um "oficial pequeno, um tanto curvado, de óculos e de suíças que lembravam um lince". Tudo no ambiente festivo da casa do general "infundia a Riabóvitch alarma e vontade de esconder a cabeça". O capitão, protagonista do conto, era "homem tímido e pouco sociável" e "o que primeiro lhe saltou à vista foi aquilo que nunca tivera, isto é, a extraordinária coragem dos seus novos conhecidos".

Os modos desses novos conhecidos - o general Von Rabbek, sua esposa e familiares - ampliavam, por contraste, a inadequação do protagonista: "quanto mais Riabóvitch olhava e escutava, tanto mais lhe agradava aquela família insincera, mas admiravelmente disciplinada".

Começam as valsas. Os pares se formam. Riabóvitch, contudo, "em toda a sua vida, nunca dançara e nenhuma vez abraçara a cintura de uma mulher direita". Observa com admiração e inveja o comportamento dos outros dançarinos. Sai do salão para acompanhar um jogo de bilhar. Enfada-se. Ao tentar retornar, ocorre o incidente crucial da narrativa.

Confuso sobre qual caminho tomar, perde-se momentaneamente pelos cômodos da casa. Parado, hesitante, à porta de um quarto escuro, percebe a aproximação de uma mulher. Esta abraça-o e beija-o sem que ele diga uma palavra. "Mas, imediatamente, aquela que o beijara soltou um pequeno grito e, foi a impressão de Riabóvitch, afastou-se dele com repugnância, num movimento brusco".

O capitão, perturbado - com um pouco de vergonha e medo - volta ao salão. Porém, algumas sensações demoram a se dissipar:

"O seu pescoço, que num instante atrás fora envolvido por braços macios, cheirosos, parecia-lhe untado com manteiga; sobre a face junto ao bigode esquerdo, onde fora beijado pela desconhecida, tremia um friozinho ligeiro, agradável, como gotas de menta, e quanto mais ele esfregava esse lugar, tanto mais fortemente sentia o friozinho, e todo ele, da cabeça aos pés, estava repleto de um sentimento novo, estranho, que não cessava de crescer... Teve vontade de dançar, falar, correr para o jardim, rir alto... Esqueceu-se completamente de que era curvado e incolor, que tinha suíças de lince e um 'físico indefinido' (assim se descrevera o seu aspecto exterior numa conversa de senhoras, que ele ouvira sem querer)".

Naturalmente, o beijo foi resultado de um mal-entendido; a moça confundira-o com outro, com o qual provavelmente havia marcado um encontro às escondidas.

Ainda assim Riabóvitch foi inteiramente transformado por esse simples - e banal - acontecimento. À noite, logo que adormeceu, "o seu último pensamento foi que alguém o acarinhara e alegrara, que em sua vida ocorrera algo extraordinário, tolo, mas muito bom e alegre".

Ao ler o texto, solidarizo-me com essa personagem. Riabóvitch - em tudo, um gauche - começa então a nutrir esperanças quanto ao futuro. Em suas próprias palavras: " 'tudo o que agora sonho e que me parece impossível e não terrestre é, na realidade, muito comum' ".

Durante dias, o incidente do beijo e todas as sensações surgidas a partir dele ocuparam a mente de Riabóvitch. Construiu, em fantasia, cenários nos quais ele e ela viviam situações especiais. Sonhou reencontrá-la. Isso, entretanto, não seria possível, obviamente.

A personagem finalmente percebe a estupidez de todas as quimeras engendradas graças às sensações nascidas de um beijo involuntário, acontecido por engano e que causou nojo em quem o deu. Riabóvitch volta à terrível e feroz realidade:

"E o mundo inteiro, toda a vida, pareceram a Riabóvitch uma brincadeira incompreensível, sem objetivo... Mas, afastando os olhos da água e olhando o céu, lembrou, novamente, como o destino, na pessoa de uma mulher desconhecida, acarinhara-o sem querer, lembrou seus devaneios e imagens do verão, e a vida que levava pareceu-lhe tosca, miserável, incolor..."

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* TCHEKHOV, Anton. O beijo. In: ______. As três irmãs; Contos. São Paulo: Abril Cultural, 1979 [tradução de Bóris Schnaiderman]

domingo, 10 de janeiro de 2010

A insignificância nossa de cada dia

Muito tenho pensado, ultimamente, num soneto de Augusto dos Anjos* , o poeta brasileiro preferido de todos os pessimistas apreciadores da Literatura nacional, como este blogueiro que ora digita.

O poema não me sai da cabeça porque, às vezes - e isto está acontecendo com uma frequência acima do tolerável - começo a considerar-me inteligente (e quase todo mundo se acha inteligente), gente fina (e quase todo mundo se acha gente fina), moralmente equilibrado (e quase todo mundo se acha moralmente equilibrado). O problema é que não deveria acreditar nem um pouco nisso. Para mim, a maioria das pessoas (eu, obviamente, incluso), na maior parte do tempo de suas vidinhas insossas, não vale as flatulências que expele rotineiramente. Ainda mais na Internet, quando não somos pessoas e sim, perfis, imagens que gostaríamos de projetar sobre os outros. Ao texto de Augusto dos Anjos, pois:

"INSÂNIA DE UM SIMPLES

Em cismas patológicas insanas,
É-me grato adstringir-me, na hierarquia
Das formas vivas, à categoria
Das organizações liliputianas

Ser semelhante aos zoófitos e às lianas,
Ter o destino de uma larva fria
Deixar enfim na cloaca mais sombria
Este feixe de células humanas!

E enquanto arremedando Éolo iracundo,
Na orgia heliogabálica do mundo,
Ganem todos os vícios de uma vez,

Apraz-me, adstrito ao triângulo mesquinho
De um delta humilde, apodrecer sozinho
No silêncio de minha pequenez!"

Augusto dos Anjos, grato pelo alerta!

* ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. 47 ed. rev. amp. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. OBS: Considero essa a edição mais elegante e bem acabada de todas as disponíveis no mercado contendo os textos do poeta paraibano.