segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Premiações, livros e leitura: algumas questões



Voltarei a escrever sobre O jogo da amarelinha na próxima semana; outro assunto acabou "impondo-se" ao blogueiro.

Antes de mais nada, gostaria de deixar claro que sou plenamente favorável ao estabelecimento, fomento e criação de prêmios para produções culturais, técnico-científicas e artísticas, não me importando muito se o concedente da recompensa é o Estado ou uma entidade privada.

Ainda assim, o anúncio de alguns vencedores do Jabuti 2011 (confira todos, de acordo com a categoria, clicando aqui) levou-me a pensar sobre qual seria a função ideal para um prêmio como esse. Mas antes de falar disso, vale a pena dar uma rápida explicação a respeito da organização e do regulamento do concurso.

É a Câmara Brasileira do Livro (CBL), associação que reúne as maiores empresas editoriais do país, a responsável pelo prêmio Jabuti, criado no final dos anos 1950. Segundo o regulamento (clique aqui), o júri é composto por "profissionais habilitados, indicados pelos associados da Câmara" e escolhido através de sorteio, por uma comissão montada pela própria CBL. Cada obra inscrita é analisada "por uma equipe de três jurados especialistas em cada categoria". O regulamento estipula formas de impedir que autores, editoras e obras sejam favorecidos por vínculos diretos com a Comissão Organizadora ou com o corpo de jurados. Ao todo, o prêmio Jabuti contempla 29 categorias, indo além de publicações puramente literárias.

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Para mim, é inteiramente legítimo que a CBL realize uma premiação voltada para obras editadas por seus associados. E não duvido de que há estratégias de marketing ligadas ao fortalecimento de certas marcas e a aposta em determinados nomes para "puxarem" vendas futuras, e que, no somatório geral, tudo isso acabe condicionando a escolha dos títulos vencedores no concurso. Nada de absurdo nesse procedimento (até porque o valor em dinheiro do prêmio - R$ 3.000 por categoria - é relativamente baixo).

Gostaria, entretanto, de destacar uma passagem lida no site da entidade:

"Polêmicas à parte, o fato é que o Jabuti tornou-se um ' patrimônio nacional '.     ' Com obstinação e argúcia, à maneira do seu inspirador, o Prêmio Jabuti avançou sem esmorecer, ganhou agilidade e encarou uma longa jornada. Avançou, ganhou densidade e respeito, conquistou o reconhecimento de todos os que, no Brasil, produzem informação, conhecimento e arte, de todos os que escrevem, publicam e leem livros. Tornou-se, ele próprio, um personagem vivo da cultura brasileira contemporânea ', destaca a editora e ex-presidente da CBL, Rosely Boschini. Na maior festa do livro no Brasil, ganhar ou não o Prêmio, já não faz diferença. O importante é participar".

De fato, hoje o Jabuti é altamente prestigioso ; mais do que isso, ele orienta e sugere leituras.

Por ano, no país, publicam-se milhares de títulos. É praticamente impossível, para qualquer leitor, tomar conhecimento de todos eles, ainda que superficialmente. Por isso, certas agências têm papel importante na filtragem daquilo que é dado a ler. Considero esse papel, mesmo com toda a controvérsia que o cerca, fundamental, sobretudo num tempo histórico em que há tanta circulação de dados e nos sentimos, às vezes (ou frequentemente, em alguns casos), desorientados nesse torvelinho informacional.

Dessa forma, acho que o prêmio Jabuti poderia conferir a autores e autoras menos badalados, mas artisticamente relevantes, a chance de terem suas obras divulgadas para um público maior, menos especializado.

Sem me atrever a discutir os vencedores de todas as categorias (sobre as quais - a maioria - não tenho conhecimento algum) e ficando apenas no setor Literatura, penso que, ao premiar Ferreira Gullar (na Poesia, com o livro Em alguma parte alguma), Dalton Trevisan (no Conto/Crônica, com o livro Desgracida) ou Marina Colasanti (no Juvenil, com o livro Antes de virar gigante e outras histórias), por exemplo, a CBL apenas consagra aqueles que já não precisam mais de consagração.

Não estou questionando a qualidade do trabalho desses artistas (até porque ainda nem li as obras mencionadas). Meu ponto de argumentação vai em outra direção : não se está perdendo a oportunidade de ampliar o repertório do público leitor ao laurear esses nomes, conhecidíssimos, e não outros?


BG de Hoje

"Eu choro tanto, me escondo e não digo/ viro um farrapo, tento suicídio/ Com caco de telha, com caco de vidro". Refrão forte, nessa maravilhosa composição de LUIZ MELODIA, (Farrapo humano). OBS: Esta versão reggae (a original é um rock), com participação do Skank - banda de que não gosto - ficou muito boa, acho eu.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

O jogo de Cortázar (1)


Foi o Existencialismo que me levou a ler, pela primeira vez, O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar. Isso foi há quase 20 anos.

Entre as disposições filosóficas cuja pretensão é refletir, sem recorrer à metafísica, sobre noções e valores (muito) caros à humanidade - ética e moral, liberdade e autonomia, a definição de realidade, entre outros -, o pensamento existencialista, a despeito de sua  "impopularidade" pós-1960, é o que mais me interessava quando adolescente (e continua interessando, agora que já não sou jovem).

Por isso, li com avidez, ao longo do tempo, algumas obras ficcionais engendradas a partir dessa disposição. Isso se aplica, certamente, a romances de declarada "filiação" existencialista: por exemplo, O estrangeiro, A peste e A queda, de Camus ; A idade da razão, Sursis e A náusea, de Sartre (autores, é bom acrescentar, com posições distintas entre si). Também se aplica, penso eu, aos romances, diríamos, apenas "simpatizantes" àquele movimento filosófico, como o livro publicado em 1963 pelo escritor argentino e que será o assunto desta e da próxima postagem.

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Sendo franco, aquela primeira leitura do texto de Cortázar não me agradou. A postura blasé, característica da maioria dos personagens, principalmente do protagonista Horacio Oliveira e dos outros membros d ' "O Clube", acabou irritando, por seu acúmulo. Isso sem falar nas centenas de citações em francês - idioma que até hoje não compreendo - e que o tradutor manteve (poderiam ser traduzidas em notas de rodapé, não?). Há ainda a imensa profusão de referências à pintores, poetas, romancistas, músicos, etc. dos quais nada conhecia. NOTA: E esse é sem dúvida um dos desafios propostos pel' O jogo da amarelinha: o leitor ideal inscrito nesta obra é um leitor bastante intelectualizado.

A segunda leitura deste romance*, há alguns meses, foi motivada justamente pelo livro que discuti aqui, dias atrás (A vida: modo de usar, de Georges Perec). Os dois trabalhos têm em comum a proposta lúdica e a possibilidade da leitura aleatória, "desrespeitando" o ordenamento tradicional das estruturas romanescas. O livro de Perec, entretanto, levando em conta apenas o aspecto da inovação formal, interessa-me muito mais.

N'O jogo da amarelinha estamos no terreno das narrativas que prescindem de enredo: quase não há o plano da ação pois este é suplantado inteiramente pelo plano do discurso. Seja nas habitações, ruas e estabelecimentos comerciais de Paris; seja nos apartamentos, no circo ou no manicômio - os últimos em solo argentino -, Horacio e todos os que gravitam a seu redor falam - e em demasia - mais do que atuam; algo, aliás, nada em desacordo com um livro no qual são as ideias e os duelos verbais entre esses personagens que devem ser salientados.

E, talvez, o maior mérito do livro de Julio Cortázar se encontre no questionamento radical a que submete a construção da ficção literária. Em quase todo o romance, implicitamente, circula a pergunta: o que é necessário para uma narrativa ser considerada Literatura e não outra coisa?

Na próxima semana, três excertos do romance serão discutidos.

* CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha. 11 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007 [tradução de Fernando de Castro Ferro]

BG de Hoje

Há nesta canção, me parece, uma urgência e uma angústia bastante estudadas por parte da cantora alemã (de ascendência nigeriana) AYO. Nada contra, muito pelo contrário. Adoro Down on my knees justamente por isso.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A vida: modo de usar (2)


Georges Perec levou cerca de nove anos para concluir A vida: modo de usar*. É um livro feito com o cuidado do artífice, do artesão. Não à toa, o construtor dos quebra-cabeças, Gaspard Winckler, personagem essencial da trama, impõe-se no romance por sua paciência e a imensa habilidade de artesão. Por outro lado, à medida que se vai lendo, começa a se desenhar, para o leitor, um projeto perceptível por trás de tudo o que está naquelas páginas. E a esse respeito, vale a pena ler o capítulo XXVI (2ª Parte), quando o protagonista Bartlebooth estabelece os "três princípios diretivos" de seu plano pessoal. Mais uma vez, personagem e autor se tocam.

Mas A vida: modo de usar não "funcionaria" se o jogo proposto deixasse de convidar o leitor a participar. Porém, como apreender todo o romance (ou romances, com está no subtítulo da obra)? Sucedem-se descrições/enumerações extensas e altamente meticulosas dando conta, por exemplo, de receitas culinárias, catálogos para venda de produtos, cardápios de jantares e outras festividades, bem como quadros, obras de arte e livros criados por autores inexistentes (ao mesmo tempo em que se fala de pessoas cuja existência pode ser comprovada no plano da realidade). O livro reproduz, inclusive graficamente, fragmento de jornal, cartão de visita, cartaz de espetáculo, nota de falecimento, página de palavras-cruzadas, etc.

Há ainda dezenas de personagens cujas histórias ocorreram num intervalo de tempo bastante amplo e em lugares variados do mundo (embora o prédio situado no meio da rua Simon-Crubellier seja o centro espacial da(s) narrativa(s)). O leitor precisa parar para respirar!

Li o livro duas vezes seguidas. Na primeira, linearmente, segui a ordem numérica sem salto algum ; na segunda, optei por escolher os capítulos por meio dos personagens ou locais do prédio destacados em cada um deles, fazendo ordenamentos de leitura provisórios. Mas certamente é possível "movimentar-se" pela obra de outras maneiras.

Na postagem publicada em 04/10/11, observei que o livro guarda semelhança com as enciclopédias. E isso pode ser comprovado tanto pela abundância de "informação"** a circular pelo texto, quanto pelos índices remissivos e referências cronológicas disponíveis na seção de anexos de A vida: modo de usar.

Durante minha leitura suspeitei de que um livro assim só poderia ser o resultado do trabalho de um escritor que foi também um leitor inveterado. E estava certo: no Pós-escrito, Perec lista os autores dos quais extraiu algo para compor sua(s) narrativa(s): Borges, Calvino, García Márquez, Thomas Mann, Nabokov, Rabelais, Kafka, Flaubert, Jules Verne e mais 20 outros.

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Não gostaria de encerrar essa primeira discussão sobre A vida: modo de usar (certamente voltarei a escrever sobre esse livro) sem apresentar ao(à) leitor(a) pelo menos um pouco da criatividade e da elegância da escrita de Georges Perec. Para isso escolhi o capítulo LX (3ª Parte), no qual se conhecem as ocupações do personagem Cinoc.

Ao chegar ao edifício, a concierge teve dificuldade para saber dizer corretamente o nome do novo morador. Consultou outros e lhe foram apresentadas algumas soluções de pronúncia que o narrador expõe de modo didático (e irônico). O próprio nomeado não fazia questão disso.

Cinoc "exercia um curioso ofício. Como ele próprio se dizia, era um ' matador de palavras ': trabalhava na atualização dos dicionários Larousse", eliminando os vocábulos e significados fora de uso.

Escreve Perec:

"Quando se aposentou, em 1965, após cinquenta e três anos de escrupulosos serviços, fizera desaparecer centenas e milhares de ferramentas, de técnicas, de costumes, de crenças, de ditos, de pratos, de jogos, de apelidos, de pesos e medidas; riscara do mapa dezenas de ilhas, centenas de cidades e rios, milhares de capitais de cantões; devolvera ao anonimato taxionômico centenas de espécies de vacas, pássaros, insetos e serpentes, de peixes um tanto especiais, variedades de conchas, plantas não de todo semelhantes, tipos particulares de legumes e de frutos; fizera desaparecer na noite dos tempos coortes de geógrafos, missionários, entomologistas, de Pais da Igreja, homens de letras, generais, Deuses e Demônios".

Na próxima semana, começo a escrever sobre O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar.

* PEREC, Georges. A vida: modo de usar. São Paulo: Companhia das Letras, 1991 [tradução de Ivo Barroso]

** Por se tratar de uma obra obra ficcional, o conceito de informação precisa ser aqui um pouco alargado. O livro apresenta certa quantidade de dados factuais, mas a maior parte da matéria narrada se baseia em situações inventadas, inclusive a partir de lugares e pessoas existentes no plano da realidade.

BG de Hoje

Essa canção me lembra uma época em que meu corpo conseguia resistir a noites e noites de bebedeira e quase sem dormir. Não sinto saudade daquele período, embora fosse melhor do que hoje: MEGADETH, A secret place.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Meu problema com as artes plásticas (e com o conceito de arte em geral)



Deveria hoje dar prosseguimento à discussão do livro de Georges Perec mencionado na postagem anterior. Mas a leitura de uma matéria da revista Carta Capital na semana passada (Relato de um naufrágio*) mudou o planejamento.

A jornalista Leneide Duarte-Plon destacou alguns pontos de uma publicação lançada pelo ensaísta e crítico de arte francês Jean Clair. No livro L'hiver de la culture (O inverno da cultura), Clair não esconde sua aversão pelas obras e artistas inseridos no que chamamos "arte contemporânea" (para ele, esta expressão deveria sempre vir entre aspas). Na matéria, lê-se declaração pejada de reacionarismo e preconceito por parte do crítico francês:

"Em nome da democratização da arte, para observar Leonardo, Ticiano, Rembrandt, Velázquez ou Vermeer, deve-se exigir menos respeito e reverência do que os requeridos antigamente para entrar em um recinto de orações? (questionamento surgido ao descrever um visitante no Museu do Louvre "que veste short, a cueca aparecendo e uma camiseta sem mangas na qual se vê um peito peludo, cheirando a suor").

A arte "performática" e de "instalações" é atacada com dureza e a lucrativa atuação de um grupo seleto de artistas plásticos que adota práticas típicas do sistema financeiro não é deixada de lado na crítica de Jean Clair, que pergunta: "o que se pode ensinar hoje numa escola de belas artes a não ser dicas, não mais o savoir-faire de um métier, mas o saber vender de um mercado?"

A visão do ensaísta é altamente pessimista. Para ele, só se salvariam a música e a dança. E por quê?

"A razão é que há nessas disciplinas, e a palavra aí volta a ter sentido, um métier, um domínio do corpo longamente aprendido, uma técnica singular, ensinada e transmitida ano após ano. Ora, não há mais métier ou maestria nas artes plásticas".

A matéria termina com a observação de que o panorama da "arte contemporânea", segundo Clair, "sinaliza uma crise de civilização, iniciada no movimento surrealista". Na frase-resumo do crítico francês, "a arte contemporânea é o relato de um naufrágio e um desaparecimento".

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Antes de mais nada devo esclarecer que nada entendo de artes plásticas. Fiquei pensando, contudo, numa das afirmativas do crítico Jean Clair: "não há mais métier ou maestria nas artes plásticas". E arrisco dizer: está deixando de existir também nas outras manifestações artísticas.

Vejo algumas obras de arte contemporânea. E sendo franco: quase nunca consigo separar a criatividade da empulhação. Ignorância de minha parte? É provável. Mas penso ser também - e suponho que algo parecido aconteça com o(a) leitor(a) - reflexo de um estado de coisas que exige outra explicação.

Acredito na educação estética. Duvido que alguém nasça com um "gene de reconhecimento da beleza artística", cuja "ação orgânica" se dissemina, naturalmente, quando seu portador é submetido a uma sinfonia de Beethoven ou a um texto de Balzac. Arte, seja a de matriz mais popular ou a mais erudita, implica aprendizado, tanto por parte de quem faz, quanto por parte de quem apenas aprecia. Não obstante o prazer que possa proporcionar, há uma "dimensão laboriosa" do fazer/fruir artístico que não deveria ser negligenciada. Não é ocioso lembrar que arte e artífice têm o mesmo radical linguístico.

Assim sendo, como limitado espectador/fruidor de arte (em constante aprendizado, acrescento), só consigo apreciar aquilo que me parece indicar essa "dimensão laboriosa" acima referida.

É o que consigo, por exemplo, ver nos belíssimos (e famosos) quadros reproduzidos nesta postagem: o primeiro, O Retrato de Louis-François Bertin, de Jean Ingres (1780-1867), e o segundo, O Triunfo de Baco ou Os Ébrios, de Diego Velázquez (1599-1660). Essas obras exsudam estudo, trabalho, domínio e criação de técnicas. Hoje em dia, entretanto, dentro de minha pouca ilustração, deparo-me com as exibições cada vez mais cínicas - nem por isso pouco rentáveis e potencializadas pelos meios de comunicação - do pintor que não sabe pintar, do ator que não sabe interpretar, do músico que não sabe tocar, do dançarino que não sabe dançar, do escritor que não sabe escrever.

Na próxima postagem, volto ao livro A vida: modo de usar.

* Relato de um naufrágio. Carta Capital, São Paulo, Ano XVII, nº 666, 5 out. 2011, p. 78-81


BG de Hoje

Direto ao ponto: MATANZA, Eu não gosto de ninguém.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

"A vida: modo de usar" (1)



"Podemos deduzir daí algo que é, sem dúvida, a verdade última do puzzle: apesar das aparências, não se trata de um jogo solitário - todo gesto que faz o armador de puzzles, o construtor já o fez antes dele; toda peça que toma e retoma, examina, acaricia, toda combinação que tenta e volta a tentar, toda a hesitação, toda intuição, toda esperança, todo esmorecimento foram decididos, calculados, estudados pelo outro".

Georges Perec - A vida: modo de usar

 
 
É muito raro - sendo quase impraticável - que se leiam os verbetes de uma enciclopédia como se estes fizessem parte de um mesmo romance; como se compusessem uma única narrativa na qual se destacasse uma única diretriz; como se esses pequenos artigos contassem uma história integral, não fragmentária (embora a ambição das enciclopédias seja a de cobrir a totalidade do que existe para se conhecer). Não tenho notícia de nenhum leitor que diante de uma reunião de verbetes proceda do mesmo modo quando incitado a lidar com um texto literário.

O que dizer então de uma obra ficcional escrita de forma tão condensada e minuciosa quanto pode ser a maioria das enciclopédias?

A vida: modo de usar*, do francês Georges Perec, foi chamado de "hiper-romance" por Italo Calvino, que o considerava "o último verdadeiro acontecimento na história" desse gênero de Literatura. Nas Seis propostas para o próximo milênio**, ao tratar da Multiplicidade, Calvino afirma que "o puzzle dá ao romance o tema do enredo e o modelo formal". A ação se desenrola sobretudo num prédio residencial de Paris e o narrador entra em cada apartamento para nos contar, com descrições detalhistas ao máximo, o ambiente e os fatos relacionados a cada um de seus moradores. E não consigo deixar de pensar no duro trabalho a cargo do tradutor dessa obra...

Italo Calvino - que foi amigo pessoal de Perec - informa que A vida: modo de usar dispõe a matéria narrada como num jogo de xadrez e o escritor francês utiliza-se do "movimento do cavalo segundo uma certa ordem que lhe permite ocupar sucessivamente todas as casas" [ou seja, as divisões do prédio residencial]. Ainda segundo ele, o autor seguiu procedimentos matemáticos para combinar os diversos temas nas dezenas de mini-histórias entrecruzadas no livro. E acrescenta:

"Para escapar à arbitrariedade da existência, Perec, como seu protagonista, tem necessidade de se impor regras rigorosas (mesmo se essas regras forem por sua vez arbitrárias). Mas o milagre é que essa poética que se poderia dizer artificiosa e mecânica dá como resultado uma liberdade e uma riqueza inventiva inesgotáveis".

Esse protagonista, o milionário inglês Percival Bartlebooth, decide aprender, por dez anos, a pintar aquarelas com o artista  Serge Valène para colocar em prática um "plano de vida" inusitado. Contará também com os serviços de um habilidoso construtor de brinquedos e outros objetos, Gaspard Winckler. Os três são moradores do mesmo edifício. A contribuição de Winckler para o plano de Bartlebooth consiste na fabricação de 500 quebra-cabeças de 750 peças cada um, que deveriam ser criados de forma imaginosa, em nada semelhantes aos de corte industrial típicos daqueles vendidos em estabelecimentos comerciais comuns.

O milionário inglês tentará montar os quebra-cabeças durante muito tempo. E o leitor de A vida: modo de usar, por sua vez, tentará jogar com o que Georges Perec deixa à vista em relação à(s) narrativa(s) que compõe(m) seu livro. Por isso, o narrador registra no Preâmbulo (e o mesmo texto reaparecerá mais à frente, no capítulo XLIV - 2ª Parte ):

"A arte do puzzle começa com os puzzles de madeira cortados à mão, quando a pessoa que os fabrica se propõe apresentar a si mesma todas as questões que o jogador deverá resolver ; quando, em vez de deixar o acaso enredar as pistas, decide interferir pessoalmente para criar a astúcia, o ardil, a ilusão ; de maneira premeditada, todos os elementos que figuram na imagem a ser reconstruída [...] servirão de partida para uma informação enganadora ; o espaço organizado, coerente, estruturado, significativo, do quadro será cortado não apenas em elementos inertes, amorfos, pobres de significado e informações, mas também em elementos falsificados, portadores de informações falsas [...]".

Na próxima semana, volto a escrever sobre esse livro impressionante.
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* PEREC, Georges. A vida: modo de usar. São Paulo: Companhia das Letras, 1991 [tradução de Ivo Barroso]

** CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990 [tradução de Ivo Barroso]

BG de Hoje

Detesto bossa-nova. Não consigo achar a menor graça naquilo (e, apenas nesse caso, não lamento minha ignorância). A bossa-nova é vista como uma manifestação musical sofisticada e João Gilberto (que eu acho um saco), gênio da cultura brasileira. Por isso, considero sensacional esta sátira rasgada feita pelo LÍNGUA DE TRAPO: Cagar é bom.