domingo, 23 de setembro de 2018

#DemocraciaSim #EleNão


Deixarei o texto sobre O deserto dos tártaros para mais adiante.

Quero, melhor dizendo, preciso abordar outro assunto.

Passei a última semana pensando muito na degradação pela qual passa a política brasileira. E confesso, tenho medo.

Um candidato completamente despreparado, racista, misógino, homofóbico, que faz apologia da violência e da tortura e apesar (ou justamente por causa) disso tudo passou a interessar a plutocracia nacional, ESSE indivíduo lidera as pesquisas de intenção de voto em 2018! Pode ganhar a próxima eleição presidencial! É assustador (mas não chega a ser surpreendente) saber que uma parcela enorme de brasileiros aderiu a essa calamidade. E, entre estes, estão indivíduos que, aproveitando o desencanto e a aflição experimentados pela população (e não tenho dúvida de que o farão de forma ostensiva caso seu candidato chegue ao poder), propagam e colocam em prática ideias e ações que devem ser chamadas pelo seu verdadeiro nome: nazi-fascistas.

Acabei de ler um manifesto com o qual tenho forte concordância. Por isso divulgarei o seu conteúdo na integra e o nome de seus principais signatários até agora. Este blogueiro também assinou-o e convida o(a) eventual leitor(a) a fazer o mesmo. Convém esclarecer que o manifesto apenas alerta para o risco representado pelo postulante do PSL, não sugerindo o nome de nenhum(a) outro(a) candidato(a) especificamente. Entre os signatários, o(a) eventual leitor(a) vai encontrar pessoas que estiveram em lados opostos na eleição de 2014. Gostaria de destacar dois nomes, por razões diferentes: Lilia Moritz Schwarcz, de quem falei nas duas últimas postagens aqui no blog, coerentemente com sua trajetória acadêmica e intelectual, assina o manifesto, o que muito me alegra; Miguel Reale Jr., um dos autores do pedido de impeachment da ex-presidenta Dima Rousseff (mesmo que ela não tenha cometido nenhum crime de responsabilidade!), parte do golpe que contribuiu enormemente para o atual miserável estado de coisas, também é um dos signatários, demonstrando o suprapartidarismo da iniciativa.

Ao texto, pois:

Pela Democracia, pelo Brasil


Somos diferentes. Temos trajetórias pessoais e públicas variadas. Votamos em pessoas e partidos diversos. Defendemos causas, ideias e projetos distintos para nosso país, muitas vezes antagônicos.

Mas temos em comum o compromisso com a democracia. Com a liberdade, a convivência plural e o respeito mútuo. E acreditamos no Brasil. Um Brasil formado por todos os seus cidadãos, ético, pacífico, dinâmico, livre de intolerância, preconceito e discriminação.

Como todos os brasileiros e brasileiras sabemos da profundidade dos desafios que nos convocam nesse momento. Mais além deles, do imperativo de superar o colapso do nosso sistema político, que está na raiz das crises múltiplas que vivemos nos últimos anos e que nos trazem ao presente de frustração e descrença.

Mas sabemos também dos perigos de pretender responder a isso com concessões ao autoritarismo, à erosão das instituições democráticas ou à desconstrução da nossa herança humanista primordial.

Podemos divergir intensamente sobre os rumos das políticas econômicas, sociais ou ambientais, a qualidade deste ou daquele ator político, o acerto do nosso sistema legal nos mais variados temas e dos processos e decisões judiciais para sua aplicação. Nisso, estamos no terreno da democracia, da disputa legítima de ideias e projetos no debate público.

Quando, no entanto, nos deparamos com projetos que negam a existência de um passado autoritário no Brasil, flertam explicitamente com conceitos como a produção de nova Constituição sem delegação popular, a manipulação do número de juízes nas cortes superiores ou recurso a autogolpes presidenciais, acumulam declarações francamente xenofóbicas e discriminatórias contra setores diversos da sociedade, refutam textualmente o princípio da proteção de minorias contra o arbítrio e lamentam o fato das forças do Estado terem historicamente matado menos dissidentes do que deveriam, temos a consciência inequívoca de estarmos lidando com algo maior, e anterior a todo dissenso democrático.

Conhecemos amplamente os resultados de processos históricos assim. Tivemos em Jânio e Collor outros pretensos heróis da pátria, aventureiros eleitos como supostos redentores da ética e da limpeza política, para nos levar ao desastre. Conhecemos 20 anos de sombras sob a ditadura, iniciados com o respaldo de não poucos atores na sociedade. Testemunhamos os ecos de experiências autoritárias pelo mundo, deflagradas pela expectativa de responder a crises ou superar impasses políticos, afundando seus países no isolamento, na violência e na ruína econômica. Nunca é demais lembrar, líderes fascistas, nazistas e diversos outros regimes autocráticos na história e no presente foram originalmente eleitos, com a promessa de resgatar a autoestima e a credibilidade de suas nações, antes de subordiná-las aos mais variados desmandos autoritários.

Em momento de crise, é preciso ter a clareza máxima da responsabilidade histórica das escolhas que fazemos.

Esta clareza nos move a esta manifestação conjunta, nesse momento do país. Para além de todas as diferenças, estivemos juntos na construção democrática no Brasil. E é preciso saber defendê-la assim agora.

É preciso dizer, mais que uma escolha política, a candidatura de Jair Bolsonaro representa uma ameaça franca ao nosso patrimônio civilizatório primordial. É preciso recusar sua normalização, e somar forças na defesa da liberdade, da tolerância e do destino coletivo entre nós.

Prezamos a democracia. A democracia que provê abertura, inclusão e prosperidade aos povos que a cultivam com solidez no mundo. Que nos trouxe nos últimos 30 anos a estabilidade econômica, o início da superação de desigualdades históricas e a expansão sem precedentes da cidadania entre nós. Não são, certamente, poucos os desafios para avançar por dentro dela, mas sabemos ser sempre o único e mais promissor caminho, sem ovos de serpente ou ilusões armadas.

Por isso, estamos preparados para estar juntos na sua defesa em qualquer situação, e nos reunimos aqui no chamado para que novas vozes possam convergir nisso. E para que possamos, na soma da nossa pluralidade e diversidade, refazer as bases da política e cidadania compartilhadas e retomar o curso da sociedade vibrante, plena e exitosa que precisamos e podemos ser.


Assinam este manifesto

Adriana Lisboa
Alê Youssef
Alessandra Negrini
Alessandra Orofino
Alexandre Brasil Fonseca
Alexandre Nero
Alexandre Schneider
Alice Braga
Amon Barros
Ana Carolina Evangelista
Ana Helena Altenfelder
Ana Moser
Ana Toni
André Corradi Moreira Luthier
Andre Degenszajn
André Fischer
André Pereira de Carvalho
Andre Perosa
André Vallias
Andrea Alvarez
Andrea Barata Ribeiro
Andrea Calabi
Andrea Magri
Andreia Horta
Anete Abramowicz
Anna Penido
Antonia Pelegrino
Antonio Grassi
Antônio Nóbrega
Antônio Prata
Ariovaldo Ramos
Arnaldo Antunes
Aron Zylberman
Ary Oswaldo Mattos Filho
Astrid Fontenelle de Brito
Aurea Vieira
Bárbara Musumeci Mourão
Beatriz Bracher
Bel Coelho
Bel Melo
Bela Gil
Belisario dos Santos Junior
Bernard Appy
Beto Vasconcelos
Beto Verissimo
Bia Barbosa
Binho Marques
Braulio Mantovani
Bruno Carazza dos Santos
Bruno Torturra
Cadão Volpato
Caetano Veloso
Caio Magri
Camila Pitanga
Carlos Mello
Carlos Nobre
Carlos Pitchu
Carolina Bueno
Carolina Kotscho
Cazé Pecini
Celia Cruz
Celso Athayde
Celso Lafer
Cesar Callegari
Chico Buarque
Cicero Araujo
Ciro Biderman
Claudia Abreu
Claudia Costin
Cláudio Couto
Clemente Ganz Lucio
Clemir Fernandes
Cléo Regina Todaro Santos de Miranda
Daniel Augusto
Daniel Cerqueira
Daniel De Bonis
Daniel Ganjaman
Daniela Bianchi
Daniela Di Bonito Mônaco de Moraes
Daniela Frozi
Daniela Gleiser
Danilo Miranda
Danilo Santos de Miranda
Dario Guarita Neto
Dario Menezes
Débora Lamm
Denis Mizne
Dira Paes
Doriam Borges
Drauzio Varella
Edson Fernando de Almeida
Eduardo Calil Ohana
Eduardo Marques
Eliane Dias
Eliane Giardini
Elisandro Lotin de Souza
Enrique Diaz
Estevão Ciavatta
Esther Solano
Eugenia Moreyra
Eugenio Bucci
Fabiana Luci de Oliveira
Fabiana Pereira
Fabio Feldman
Felipe Roseno
Fernand Alphen
Fernanda Abreu
Fernanda Thompson
Fernanda Torres
Fernando Abrucio
Fernando Burgos
Fernando Grostein Andrade
Fernando Meirelles
Fernando Morais
Flávia Gusmão Eid
Flávia Lacerda
Flávio Conrado
Flavio Tavares de Lyra
Floriano de Azevedo Marques Neto
Francisco Sandro Rodrigues Holanda
Franklin Feder
Gabriel Feltran
Galeno Amorim
George Avelino Filho
Gerorgiana Goes
Gilberto Dimenstein
Gisele Froes
Glória Kalil
Gregorio Duvivier
Gui Amabis
Guilherme Casarões
Guilherme Leal
Guilherme Werneck
Haroldo Torres
Heitor Dhalia
Helder Vasconcelos
Helio Santos
Helivete Ribeiro
Heloisa Buarque de Holanda
Heloísa Perisse
Henri Philippe Reichstul
Henrique Silveira
Hugo Possolo
Humberto Dantas
Ilona Szábo
Ilza Jorge
Inês Lafer
Ivam Cabral
Ivanir dos Santos
Jailson Silva
Joana Jabace
João Biehl
Joaquim Falcao
Joel Zeferino
Jorge Abrahao
Jorge Hage
Jorge Romano
Jorge Schwartz
José Marcelo Zacchi
Juana Kweitel
Juca Kfouri
Julia Michaels
Juliana Braga de Mattos
Juliana Sakai
Jurandir Freire Costa
Jussara Silveira
Karina Buhr
Karine Carvalho
Katia Maia
Laerte
Lauro Gonzales
Leandra Leal
Leonardo Letelier
Leticia Colin
Lilia Schwarcz
Luana Lobo
Luciana Guimarães
Lucio Maia
Luedji Luna
Luis Bolognesi
Luiz Armando Badin
Luiz Camillo Osorio
Luiz Eduardo Soares
Luiz Felipe de Alencastro
Luiz Nascimento
Luiz Ruffato
Luiza Lima
Lusmarina Campos Garcia
Malak Poppovic
Mano Brown
Manoela Miklos
Marcelo Behar
Marcelo Burgos Santos
Marcelo Furtado
Marcelo Issa
Marcelo Masagão
Marcelo Rubens Paiva
Marcia Pereira das Neves
Márcio Tavares Amaral
Marco Antônio Carvalho Teixeira
Marcos Cavalcanti
Marcos Fernandes
Marcos Flaksman
Marcos Fuchs
Marcos Joaquim Alves
Marcos Rolin
Marcus Vinícius Faustini
Maria Alice Setubal
Maria Arminda do Nascimento Arruda
Maria da Glória Bonelli
Maria de Medicis
Maria Filomena Gregori
Maria Gadu
Maria Ignez Barbosa
Maria Martha Cassiolato
Maria Stella Gregori
Maria Victoria Benevides
Mariana Lacorte Camponez do Brasil
Mariana Pamplona
Marília Librandi
Marina Dias Werneck
Marina Person
Mário Aquino Alves
Mário Monzoni
Marisa Moreira Salles
Mariza Abreu
Marta de Senna
Mary Camargo Neves Lafer
Mel Lisboa
Melina Risso
Michael Haradon
Miguel Lago
Miguel Reale Jr.
Milton Hatoum
Miriam Krenzinger
Monica Almeida
Monica Franco
Monique evelle
Myrian Porto
Naercio Menezes Filho
Natacha Costa
Numa Ciro
Oded Grajew
Oscar Vilhena
Otávio Dias
Pablo Nunes
Pally Siqueira
Paloma Duarte
Patrícia Pilar
Paula Lavigne
Paulinho Moska
Paulo André
Paulo Barreto
Paulo Borges
Paulo Furquim
Paulo Miklos
Pedro Abramovay
Pedro Meira Monteiro
Pedro Mendes da Rocha
Pedro Paulo Poppovic
Pedro Strozenberg
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva
Philip Yang
Pierpaolo Bottini
Pilar Lacerda
Priscila Cruz
Rafael Alcadipani
Rafael Parente
Raul Santiago
Regina Braga
Renata Motta
Renato Janine Ribeiro
Renato Sergio de Lima
Rica Amabis
Ricardo Abramovay
Ricardo Borges Martins
Ricardo Chaves
Ricardo Henriques
Ricardo Lisias
Ricardo Sennes
Ricardo Teperman
Ricardo Young
Roberta Maiorana
Roberta Martinelli
Roberto Andres
Roberto Amorim
Roberto Waack
Rodrigo Martins Constante
Ronaldo Lemos
Rubens Barbosa
Rubens Naves
Rudi Rocha
Ruth Goldberg
Samira Bueno
Sarah Oliveira
Sergio Abranches
Sergio Leitão
Sergio Miletto
Silvia Noronha dos Santos
Silvia Ramos
Silvia Taques Bittencourt
Silvio Eid
Sueli Carneiro
Tadeu Jungle
Tadeu Valadares
Tainá Müller
Talita Todaro Santos de Miranda
Tasso Azevedo
Tati Bernardi
Theo Dias
Thiago Amparo
Thiago Lacerda
To Brandileone
Tulipa Ruiz
Valeria Macedo
Valerie Tomsic
Valmir Ortega
Valter Roberto Silverio
Valter Silvério
Vanessa Elias de Oliveira
Vera Iaconelli
Vítor Marchetti
Vítor Oliveira
Wagner Moura
Walter Casagrande Jr
Walter Salles
Washington Olivetto
Wilson Simoninha
Xis
Xixo Mauricio Piragino
Zeca Camargo
Zuza Homem de Mello


Você pode assinar o manifesto aqui.


domingo, 16 de setembro de 2018

O deslocamento de Lima Barreto (II)


"Além do mais, Lima foi daquelas testemunhas que suportam a solidão de uma responsabilidade e, ao mesmo tempo, assumem a responsabilidade de estar num lugar, no seu caso, muitas vezes repleto de solidão".


Lilia Moritz Schwarcz - Lima Barreto: triste visionário



Grande parte dos manuais e livros didáticos de Literatura classifica Lima Barreto como escritor pré-modernista (bem, falo dos manuais e livros didáticos do meu tempo de aluno do 2º Grau; pode ser diferente hoje em dia, no Ensino Médio). É assim, por exemplo, no título que tenho em mãos neste momento: Língua & Literatura, de Maria da Conceição Castro (volume 3, editora Saraiva), cuja primeira edição é de 1993. Curioso ver que a autora afirma ter sido Lima Barreto "valorizado pelos modernistas da Semana de 22 pela sua capacidade de introduzir na obra literária fatos, situações e linguagem do cotidiano". Há controvérsias, como se verá adiante.

Antes, vale refletir um pouco se o termo Pré-Modernismo é apropriado como designação de um período literário específico.

O prefixo pré-, junto com a acepção de anterioridade, carrega muitas vezes o sentido de "preparatório para algo que virá" - é o caso, por exemplo, em palavras como pré-universitário. O que um curso pré-universitário tenciona é aprontar seus frequentadores para que, futuramente, sejam admitidos ou sintam-se melhor aclimatados numa universidade. 

Pré- também costuma denotar uma espécie de quase. Quando se usava dizer pré-escola, queria-se designar um estabelecimento que é quase uma escola, mas ainda não é. Nesse sentido, a pré-escola seria considerada menos importante do que a escola propriamente dita, pois a primeira só existiria em função da segunda. NOTA: A partir da segunda metade dos anos 1990, o termo pré-escola vai desaparecendo e sendo substituído pelo termo (mais adequado) educação infantil, pois amplia-se a compreensão de que o trabalho com crianças menores de seis anos não é menos educativo do que outros realizados noutras etapas.

Creio que essas acepções do prefixo nos ajudam a entender por que o termo Pré-Modernismo é uma classificação ruim.

Em primeiro lugar, pode nos induzir a considerar o Modernismo como um estágio evolutivo "natural" e superior da produção literária nacional, um ideal estético que se desejava atingir previamente. Aqueles que escreviam antes do advento da Semana de Arte Moderna de 1922 estariam apenas "preparando o terreno" para os que viriam depois - estes, sim, autores inovadores e de talento... Em segundo, denominar um período como pré-modernista acaba, inadvertidamente, esvaziando de importância esse mesmo período, visto somente como um quase (já que a "meta ideal" não teria sido ainda alcançada).

Dito isso, quero deixar registrado que não me oponho às tradicionais classificações de períodos literários para fins didáticos. São válidas e úteis em muitas ocasiões. Mas não nessa.

Voltemos, contudo, ao primeiro parágrafo da postagem de hoje. Teria sido Lima Barreto realmente valorizado pela turma que organizou a Semana de 22?

Em Lima Barreto: triste visionário (Ed. Companhia das Letras, 2017), biografia sobre a qual comecei a escrever na postagem anterior, Lilia Moritz Schwarcz observa que, embora "a nova agenda modernista [tivesse] pontos em comum com aquela de Lima", um episódio "marcaria a sorte" deste com o grupo paulista liderado por Mario e Oswald de Andrade.

Sérgio Buarque de Holanda, colaborador da revista Klaxon, um dos veículos de divulgação dos modernistas de São Paulo, entregou um exemplar da publicação para o escritor carioca. Era comum Lima Barreto tratar de novos autores nas muitas crônicas que produzia para a imprensa do Rio de Janeiro. No caso da Klaxon, nota Schwarcz, ele "reagiu de pronto, revelando seu célebre escárnio. Avaliou que a publicação devia muito ao futurismo italiano e, quem sabe, implicou com 'os rapazes', a quem provavelmente julgou burgueses e muito paulistas".

Ela acrescenta:

"História de 'se' não existe. Ou seja, se Lima tivesse juntado dois mais dois; se tivesse sido capaz de superar sua primeira opinião sobre a capa modernista da publicação dos paulistas; se tivesse conseguido reconhecer nas novas gerações anseios semelhantes, ou ao menos afinados, aos que ele descrevera em seu 'manifesto' de 1921 - intitulado 'O destino da literatura' -, talvez a história fosse outra. Mas não houve tempo, e o que ocorreu lembrou o estrondo e as consequências de uma trombada. 
Lima achou que os 'moços de São Paulo' tinham jeito de bovaristas [nesse contexto, encantados com o que vem do exterior, em detrimento do que se faz no próprio país] e que andavam animados demais com as ideias de Marinetti [o "pai" do Futurismo]. Já eles, na resposta divulgada no número seguinte da publicação, fizeram pouco-caso das avaliações do 'herbolário carioca'. Pensaram que só podia ser coisa de gente da capital [até 1960, o Rio de Janeiro foi o distrito federal]. Se 1922 deu a impressão de que iria se abrir como um ano de encontro, foi ano de fim".

De fato, não houve tempo para desfazer mal-entendidos e aparar arestas. Lima Barreto morreu justamente em 1922 (com apenas 41 anos) e não pôde ler, por exemplo, o Macunaíma, de Mario de Andrade (lançado em 1928), livro em que, acredito, ele identificaria um parentesco com sua concepção de fazer literário. Além do mais, a rusga surgida após o escarnecimento da Klaxon indispôs os modernistas de 22 para com uma obra em muitos aspectos próxima das intenções "anti-academicistas" defendidas pelo grupo de São Paulo.

O que foi dito até agora só reforça o deslocamento de Lima Barreto sobre o qual estamos falando desde a última postagem. Esse deslocamento ocorria tanto no plano pessoal (como espero ter demonstrado no texto anterior), quanto na sua dimensão pública de escritor e intelectual. O autor de Recordações do escrivão Isaías Caminha, mesmo depois de morto, também demorou a encontrar um lugar dentro da crítica e da história literária, em parte por causa do desentendimento mútuo entre ele e os modernistas de 22. A esse respeito, Lilia Schwarcz escreve:

"Lima também passava a ser assumido pela crítica como um autor 'entre': entre gerações, entre gêneros, entre grupos [...]. Se não se adequava aos padrões das gerações que imediatamente lhe antecederam, nem aos daquelas com as quais convivia , tampouco parecia coadunar-se com o estilo das novas vogas literárias, que faziam barulho entre os jovens paulistanos. O autor de Policarpo Quaresma considerava 'os moços de São Paulo' adeptos demais das vogas futuristas e legítimos representantes das novas elites burguesas e industriais. Já os modernistas paulistanos, ao menos nesse primeiro momento, reservavam a Lima o mesmo tipo de aversão que guardavam com relação ao grosso da produção literária que vinha do Rio de Janeiro, e o julgavam conservador demais. Um regressista que não admitia a entrada dos novos costumes, vogas artísticas e literárias ou hábitos urbanos".

Naquele Brasil da Primeira República, "Lima gostava de se definir como 'outro' - afirma a biógrafa -; "outro no jornalismo, outro em suas preferências políticas, outro ainda (e sobretudo) quando se referia ao funcionalismo público". Deslocado, "outro", avesso às pompas que cercavam muitos outros escritores de seu tempo, pobre, alinhado ao anarquismo e ao socialismo (num país em que a desigualdade faz parte do DNA da sociedade), negro (num país extremamente racista, poucas décadas após a Abolição), alcoólatra, duas vezes internado num hospício, o escritor, contudo, não parou de batalhar com os recursos que tinha, mesmo sem acreditar em si. Ou, talvez, acreditasse. No capítulo 11 (Fazendo crônicas, contos e virando Triste fim de Policarpo Quaresma), Lilia Moritz Schwarcz  assinala que:

"Com a publicação de Triste fim, a figura literária de Lima seria ainda mais lapidada. Ele era então caracterizado, e também gostava de se definir desta maneira, como um escritor boêmio, frequentador de botequins, realista por gosto, avesso ao jornalismo burguês e aos formalismos da literatura. Seus problemas na Politécnica [abandonou o curso de Engenharia] viravam virtudes, seu ir e vir nos subúrbios uma forma de existência. A despeito de tanta contraposição, Lima jamais negava seu sonho de viver das letras. Tanto que na mesma entrevista [concedida ao jornal A Época, em 1916], assim resumia sua 'missão': 'O fim da minha vida é as letras. Eu não peço delas senão aquilo que elas me podem dar: Glória! [...] Não quero ser deputado, não quero ser senador, não quero ser mais nada senão literato. Não peço às letras conquistas fáceis [...] peço-lhes coisa sólida e duradoura [...] Eu abandonei tudo por elas; e a minha esperança é que elas me vão dar muita coisa. É o que me faz viver mergulhado nos meus desgostos, nas minhas mágoas [...] Vamos beber cerveja' ".

. . . . . . .

Antes de terminar a postagem, não posso deixar de reconhecer o trabalho monumental feito por Lilia Moritz Schwarcz em Lima Barreto: triste visionário. É um livro de mais de 600 páginas, ressaltando diversos aspectos não só da vida e da obra do escritor, mas também do contexto sócio-histórico. A experiência da biógrafa como historiadora e antropóloga foi vital aqui. E mesmo que a profusão de notas possa retardar o ritmo da leitura em alguns momentos (para o leitor que vai conferi-las pelo menos em parte, como este blogueiro), o ganho informativo é tremendo.

Schwarcz também não se furtou a apresentar o lado antipático do biografado (como sua aversão ao feminismo ou o senso de superioridade evocado diante das outras pessoas de seu meio social, menos cultas do que ele), bem como salientou as ambiguidades que marcaram a sua trajetória pessoal e pública. Vale destacar o reconhecimento da autora ao trabalho de Francisco de Assis Barbosa, que, na década de 1950, não só produziu uma importante biografia, como foi fundamental para renovar o interesse pela obra do escritor, num esforço que incluiu o lançamento de inéditos e a republicação de diversos livros de Lima Barreto.

Na próxima postagem, falarei de um dos meus romances prediletos: O deserto dos tártaros, de Dino Buzzati


BG de Hoje

É meio complicado classificar, de primeira, o tipo de música feita pelo CRIOLO. Isso que é legal no som dele. Tem rap? Principalmente, claro. Mas também tem samba. E uma faixa singularíssima como Bogotá, com sua levada que remete o ouvinte a outras vertentes rítmicas latino-americanas.


sábado, 1 de setembro de 2018

O deslocamento de Lima Barreto (I)


Certas expressões viram moda num curto período de tempo. Passam a ser exaustiva e irritantemente repetidas. E tornam-se, por fim, clichês vazios.

A despeito do que acabei de escrever, vou usar uma dessas expressões. Porque ela, acho, não me soará oca ou desgastada - pelo menos, não nesse caso.

Lima Barreto me representa.

Vai além de nossa comum afrodescendência.

A vida de Lima Barreto foi marcada pelo deslocamento. Essa sensação é bastante familiar para mim. Ele era também alcoólatra - outra característica que compartilhamos.

Na volumosa biografia do escritor carioca lançada no ano passado ¹, Lilia Moritz Schwarcz escreveu:

"Ante os infortúnios, [Lima Barreto] bebia. Bebia por medo, pela falta de amigos, por não encontrar a rapariga certa, para fugir da 'desgraça doméstica', por causa de seu emprego. E bebia porque bebia, porque gostava de beber.

[...]

E justificava o vício: para não se aborrecer, para não ter de enfrentar o descompasso entre suas 'aptidões' e 'boas qualidades', assim como para poder lidar [com] (ou esquecer [de]) seus 'poderosos defeitos' e frustrações. Bebia chope, uísque, cachaça, para afastar o abismo que devia enxergar entre si e os amigos, os colegas de repartição, as mulheres, a família, os vizinhos.

[...]

Por essas e por outras, Lima se sentia e parecia cada vez mais deslocado. A roupa sempre manchada, o sapato desgastado, e placas de suor que lhe marcavam a camisa e colavam o cabelo à cabeça. Sofria com o tédio da repartição, com sua vida literária que não decolava, e com sua situação pessoal: poucos amigos, sem namoradas, e com a família que ele precisava prover. A bebida, para Lima, transformava-se ao mesmo tempo numa espécie de evasão para a sua profissão, que o entediava, e daquele mundo que insistia em não dar certo".

Destacar o alcoolismo do escritor não é tratar de tema supérfluo, nem cometer qualquer tipo de indiscrição perversa: é apresentar um fato relevante na vida de Lima Barreto, cujo impacto ultrapassou a esfera das relações pessoais, atingindo sua obra e a recepção crítica desta. Como qualquer outro ser humano, o autor de Triste fim de Policarpo Quaresma carregava suas inseguranças e (muitos) fracassos. E quando penso que se trata de uma pessoa negra, neto de uma escravizada, buscando, com as poucas armas de que dispunha, reconhecimento literário no início do século passado neste país (que foi, ainda é e, ao que tudo indica, sempre será) arcaico, racista e excludente, digo em pensamento: "É isso aí, Lima, beba. Só nos resta beber..."

"Pode-se dizer" - também escreveu a biógrafa - "que Lima se sentia 'estrangeiro' onde quer que estivesse" Como isso me é igualmente familiar! Schwarcz prossegue:

"Em primeiro lugar, seu grau de formação levava-o a se apartar dos vizinhos de Todos os Santos. O escritor gostava de reconhecer sua educação e dela se gabar, e assim guardava certa quilometragem dos personagens que tão bem descrevia. Em segundo lugar, na sua roda de amigos boêmios conservava uma separação cautelar, ainda mais quando se tratava de 'socializar com as moças'. Conhecia demais aquilo que chamava de 'limitações' trazidas pela cor que estampava em sua pele, ou ao menos mantinha esse tipo de obstáculo bem delineado quando tentava medir-se ou medir os outros".

O(A) eventual leitor(a) talvez se lembre de duas passagens do romance citado linhas acima ². A primeira encontra-se no capítulo 3. Numa pequena reunião festiva, alguns conhecidos de Policarpo Quaresma falam a respeito do major, motivados pela repercussão daquele desastroso requerimento escrito em tupi. A seguir, um trecho do diálogo:

"- Quem é? - perguntou Florêncio.
 - Aquele vizinho, empregado do arsenal, não conhece?
- Um baixo, de pince-nez?
- Esse mesmo - confirmou Caldas.
- Nem se podia esperar outra coisa - disse o doutor Florêncio - Aqueles livros, aquela mania de leitura...
- Pra que ele lia tanto? - indagou Caldas.
- Telha de menos - disse Florêncio.
Genelício atalhou com autoridade:
- Ele não era formado, para que meter-se em livros?
- É verdade - fez Florêncio.
- Isso de livros é bom para os sábios, para os doutores - observou Sigismundo.
- Devia até ser proibido - disse Genelício - a quem não possuísse um título acadêmico ter livros. Evitam-se assim essas desgraças [ele se refere à "loucura" de Quaresma]"

Na outra passagem, logo no capítulo seguinte, Policarpo volta pra casa abatido, após ser suspenso e levar uma descompostura do chefe (mais uma vez, consequência do requerimento em tupi despachado por engano). No bonde, encontra-se com o amigo Ricardo Coração dos Outros. Outro trecho de diálogo:

"- O major, hoje, parece que tem uma ideia, um pensamento muito forte.
- Tenho, filho, não de hoje, mas de há muito tempo.
- É bom pensar, sonhar consola.
- Consola, talvez; mas faz-nos também diferentes dos outros, cava abismos entre os homens..."

Os interessados na obra desse escritor sabem que muitos de seus personagens funcionam como disfarces do próprio autor, inteira ou parcialmente. Policarpo Quaresma - enquanto funcionário público medíocre de baixo escalão, leitor inveterado (mas sem diploma) e sujeito intelectualizado de forma diletante e errática - é Lima Barreto. E este blogueiro se identifica tanto com isso tudo...


Noutro trecho da biografia, Lilia Schwarcz reproduz uma passagem bem significativa do diário íntimo do autor:

"Novamente no seu Diário, em 1908, o sentimento de deslocamento manifesta-se: 'Mas de tudo isso, o que mais me amola é sentir que não sou inteligente. Mulato, desorganizado, incompreensível e incompreendido, era a única coisa que me encheria de satisfação, ser inteligente, muito e muito! A humanidade vive da inteligência, pela inteligência e para a inteligência, e eu, inteligente, entraria por força na humanidade, isto é, na grande Humanidade de que quero fazer parte [...] Abate-me também não ter amigos e ir perdendo os poucos que tinha. Santos está se afastando; Ribeiro e J. Luís também. Eram os melhores. Carneiro (o Otávio), o egoísta e frio Otávio, está fazendo a sua alta vida, a sua reputação, o seu halo grandioso, e é preciso não me preocupar mais. Eu esperava isso tudo; mas não pensei que fosse tão cedo. Resta-me o Pausílipo, este é o único que se parece comigo e que tem o meu fundo, que ele desconhece por completo [...] Eu fico só, só com os meus irmãos e o meu orgulho e as minhas falhas' ".

Não consigo deixar de ficar pasmado com a ingenuidade de Lima Barreto ao acreditar que "a humanidade vive da/pela/para a inteligência" (bem, era o início do século XX, o socialismo parecia alcançável, as duas grandes guerras mundiais ainda não tinham acontecido e mesmo o capitalismo, baseado fortemente na indústria e comércio - pois mal engatinhava a irrefreável especulação financeira transnacional -, apontava uma confiança otimista no engenho humano). O escritor, porém, não cria nele mesmo. Mas como crer, se não havia recompensa alguma?

Na próxima postagem, falo de um outro aspecto do deslocamento de Lima Barreto: a sua inadequação ao sistema literário então vigente.
__________
¹ SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

² BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. 21 ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998, 


BG de Hoje

Trata-se de uma gravação impecável. Tudo soa perfeito. As harmonizações vocais (a principal característica do MPB 4), o arranjo de Luiz Carlos Ramos, o violão de sete cordas imponente, a cuíca discretíssima, a entrada gloriosa do surdo. Mas o ingrediente principal está no tamborim excepcionalmente bem tocado. Não se pode deixar de mencionar a letra do Paulo César Pinheiro para a linda melodia do Miltinho. É por essas e outras que Cicatrizes é uma das faixas de disco mais bonitas que já ouvi.