quinta-feira, 9 de julho de 2020

Falou e disse...

"Não há que se falar em democracia – na ideia de democracia com uma ampla participação popular nas decisões políticas, nos rumos de um país, de uma comunidade – se não há igualdade racial.

A desigualdade racial sempre foi e será um constrangimento a qualquer projeto verdadeiro de democracia que vá além da mera formalidade. Quando há uma desigualdade racial gritante, que se manifesta na desigualdade econômica que atinge as pessoas negras, no tratamento institucional, na violência policial, no encarceramento em massa, na ausência de representatividade política e social, tudo isso vai gerando fissuras no discurso ideológico que diz que vivemos em democracia".

Afirmações feitas pelo professor, jurista e filósofo do direito Silvio ALMEIDA, publicadas em entrevista ao jornal Nexo (Não dá para falar de democracia sem falar da questão racial), em 01/06/2020, disponível aqui.

PS: Por mais que iniciativas individuais sejam necessárias na luta contra a discriminação e o preconceito raciais, é preciso compreender que o racismo é um fenômeno estruturante de nossas sociedades, cuja complexidade exige ações de outra magnitude para ser suprimido definitivamente. A esse respeito, vale a pena ouvir o que diz o próprio Silvio Almeida no vídeo abaixo, explicando o que é racismo estrutural (particularmente esclarecedor a partir do terceiro minuto de exibição).

quinta-feira, 2 de julho de 2020

O julgamento de Zé Bebelo em Grande sertão: veredas (III)


"Valentões assalariados ou camaradas em armas, a jagunçagem, 'estado de lei' em oposição à lei do Governo e do Estado, se rege por seu próprio código de honra e se organiza segundo normas próprias, ditadas pelas necessidades de sobrevivência do grupo, e segundo uma espécie de acordo tácito entre seus membros. Caracteriza-a forte senso de hierarquia, que determina que aos chefes cabe ditar as ordens e aos subordinados, cumpri-las".

Sandra Guardini T. Vasconcelos - Homens provisórios. Coronelismo e jagunçagem em Grande sertão: veredas

"Olhe: jagunço se rege por um modo encoberto, muito custoso de eu poder explicar ao senhor. Assim - sendo uma sabedoria sutil, mas mesmo sem juízo nenhum falável; o quando no meio deles se trança um ajuste calado e certo, com semêlho, mal comparando, com o governo de bando de bichos - caititú, boi, boiada, exemplo."

Riobaldo, no Grande sertão: veredas (João Guimarães Rosa)


Comecei esta série de postagens com a intenção de demonstrar como o julgamento de Zé Bebelo é uma ocorrência inusitada - não obstante, crucial - dentro de Grande sertão: veredas.  Num território impregnado de violência e arbitrariedade, os personagens (eles próprios abusivos e brutais) colocaram em suspensão sua hostilidade e emularam um dispositivo da justiça formal.

Na primeira postagem, o "réu" foi apresentado e ressaltou-se a sua raposice, isto é, a sua astúcia. No segundo texto da série, procurei reforçar junto ao(à) eventual leitor(a) que é de jagunços (ou seja, de bandidos) que estamos tratando (muito embora, graças ao prodigioso poder da ficção literária, consigamos nos sentir próximos deles, humanamente falando). A respeito desse ponto levantado na postagem anterior, considero bem acertada a análise ¹ da professora Sandra Guardini T. Vasconcelos (FFLCH/USP), ao observar que

"Encobertas pela beleza da linguagem e pelo lirismo e dramaticidade do texto, a violência e a brutalidade que pautam as ações e práticas dos jagunços em Grande sertão: veredas parecem ter ocupado uma espécie de segundo plano nas leituras críticas do romance. Com raras exceções - Walnice Nogueira Galvão, em As formas do falso, é a mais notável delas -, poucos foram os leitores de João Guimarães Rosa que se detiveram na questão do coronelismo e jagunçagem no romance"

Hoje, finalmente, trataremos do julgamento propriamente dito.

Desde a captura do chefe rival até o acatamento do veredito imposto por Joca Ramiro, são cerca de 30 páginas. Num lugar chamado É-Já (ah, a obra de Guimarães Rosa e seus topônimos...), Riobaldo e outros jagunços, "sub-comandados" por Hermógenes e (principalmente) Sô Candelário, guardavam o local, presumindo que por ali passaria um grupo de inimigos, liderados por Zé Bebelo - o que acaba acontecendo.

Acuados num amontoado de pedras e em número reduzidíssimo após o tiroteio, Zé Bebelo e seus sequazes seriam facilmente exterminados.

É quando vem à mente de Riobaldo um estratagema ²:

"Digo ao senhor: eu gostava de Zé Bebelo. Redigo - que eu menos atirava do que pensava. Como era possível, assim, com minha ajuda, a morte dele? Um homem daquela qualidade, o corpo dele, a ideia dele, tudo o que eu sabia e conhecia. Nessas coisas eu pensei. Sempre - Zé Bebelo - a gente tinha que pensar. Um homem, coisa fraca em si, macia mesmo, aos pulos de vida e morte, no meio das duras pedras. Senti, em minha goela. Aquela culpa eu carregava? Arresto gritei: - 'Joca Ramiro quer esse homem vivo! Joca Ramiro quer este homem vivo! Joca Ramiro faz questão!...' A que nem não sei como tive o repente de isso dizer - falso, verdadeiro, inventado... 
Firme gritei, repeti".
O ardil dá certo. O líder inimigo é levado vivo à presença de Joca Ramiro, que acabava de chegar com o restante do bando. Riobaldo temia que sua manobra desse errado e Zé Bebelo padecesse torturas. Diante do grande chefe, demonstrando mesmo ser um sujeito estúrdio, Zé Bebelo exige julgamento. E é atendido. Observemos esta passagem:

"Tinha sido aquilo: Joca Ramiro chegando, real, em seu alto cavalo branco, e defrontando Zé Bebelo a pé, rasgado e sujo, sem chapéu nenhum, com as mãos amarradas atrás, e seguro por dois homens. Mas mesmo assim, Zé Bebelo empinou o queixo, inteirou de olhar aquele, cima abaixo. Daí disse: 
- 'Dê respeito, chefe. O senhor está diante de mim, o grande cavaleiro, mas eu sou seu igual. Dê respeito!' 
- 'O senhor se acalme. O senhor está preso...' - Joca Ramiro respondeu, sem levantar a voz. 
Mas, com surpresa de todos, Zé Bebelo também mudou de toada, para debicar, com um engraçado atrevimento: 
- 'Preso? Ah, preso... Estou, pois sei que estou. Mas, então, o que o senhor vê não é o que o senhor vê, compadre: é o que o senhor vai ver...' 
- 'Vejo um homem valente, preso...' - aí o que disse Joca Ramiro, disse com consideração. 
- Isso. Certo. Se estou preso... é outra coisa...' 
- 'O que, mano velho?' 
- '... É, é o mundo à revelia!...' - isso foi o fecho do que Zé Bebelo falou. E todos que ouviram deram risadas".

Esta sentença - "É, é o mundo à revelia!..." - é bastante realçada por estudiosos do Grande sertão: veredas. Como eu a interpreto? A expressão à revelia, claro, faz parte do jargão jurídico: quando  um réu, intimado, não comparece à audiência, torna-se revel (ou rebelde) e o tribunal, portanto, pode tomar decisões à revelia daquele. Mas há também um sentido bem mineiro para a expressão: quando algo estava bagunçadofora de ordem, virado do avesso, alguns de nós, antigamente, diziam que esse algo estava à revelia. Zé Bebelo atribuiu a si a missão de acabar com a jagunçagem (usando, para isso, jagunços!); supunha estar do lado correto, inclusive legalmente. Como poderia aceitar estar preso por aqueles que se colocavam à margem da lei? Isso seria, para ele, fora da ordem normal das coisas! Como se ele próprio não estivesse também à margem da lei... O mundo à revelia é o mundo fora de ordem, onde quem comete crimes prende e julga aquele que o combate. Mas aquele que o combate também está cometendo crimes...

O "réu" é levado então para a Sempre-Verde, propriedade de um aliado (um coronel da localidade). No imenso eirado da fazenda, todos se reuniram. No centro, ficaram Zé Bebelo e Joca Ramiro, tendo a seu lado os "sub-comandantes": Sô Candelário, João Goanhá, Titão Passos, Hermógenes e Ricardão. Circundando os maiorais, o restante da jagunçada. É de se notar que num texto em que pouquíssimos diálogos aparecem - as exceções mais destacadas são as conversas de Riobaldo e Diadorim -, o julgamento permite "ouvir" outras vozes além do narrador.

Joca Ramiro - o "juiz" - pede aos "sub-comandantes" que apresentem suas "alegações". Da parte da acusação, falam Hermógenes e Ricardão; pela defesa, Titão Passos, com intervenções de Sô Candelário e João Goanhá. Hermógenes declara "que se devia de amarrar este cujo, feito porco". Sangrá-lo. Ou atravessá-lo no chão e passar com os cavalos por cima. Zé Bebelo reage de forma escarnecedora a esse e outros rompantes, deixando Hermógenes furioso, disposto a matar o "réu" ali mesmo, naquela hora. É quando Joca Ramiro, evitando o confronto, mostra também ser astuto: " - 'Mas ele [Zé Bebelo] não falou o nome-da-mãe, amigo...' ". Ricardão faz uma acusação mais voltada, digamos, ao mérito da querela. Pede a condenação e execução do "réu": "a misericórdia duma boa bala, de mete-bucha, e a arte está acabada e acertada". A sua exposição - lembrando das baixas provocadas pelo inimigo e do compromisso do bando de Joca Ramiro com coronéis da região - produz grande efeito, inclusive sobre Riobaldo. A fala é então concedida a Titão Passos:

" - 'Ao que aprecio também, Chefe, a distinção minha desta ocasião, de dar meu voto. Não estou contra a razão de companheiro nenhum, nem por contestar. Mas eu cá sei de toda consciência que tenho, a responsabilidade. Sei que estou como debaixo de juramento; sei porque de jurado já servi, uma vez, no júri da Januária... Sem querer ofender ninguém - vou afiançando. O que eu acho é que é o seguinte: que este homem não tem crime constável. Pode ter crime para o Governo, para delegado e juiz-de-direito, para tenente de soldados. Mas a gente é sertanejos, ou não é sertanejos? Ele quis guerrear, veio - achou guerreiros! Nós não somos gente de guerra? Agora ele escopou e perdeu, está aqui, debaixo de julgamento. A bem, se, na hora, a quente a gente tivesse falado fogo nele, e matado, aí estava certo, estava feito. Mas o refrêgo de tudo já se passou. Então, isto aqui é matadouro ou talho?... Ah, eu, não. Matar, não. Suas licenças...' ".
Essa fala condensa, de certa maneira, tudo o quis discutir nesta série de postagens. Por um momento, a ferocidade daqueles sujeitos foi suspensa para produzir algo civilizado e que não fazia parte de seus usos e costumes: um julgamento. Passado o "refrêgo" da batalha, matar por matar pareceria errado, uma vez que o réu não cometeu "crime constável". Na alegação de Titão Passos também vemos que a lei, naquele sertão, não é determinada por nenhuma autoridade governamental ou representante do Estado. Há um regimento muito próprio desses guerreiros. E só este é obedecido por eles.

Caso o(a) eventual leitor(a) já tenha lido o romance, vai se lembrar que Riobaldo também teve direito a voz no julgamento, argumentando que absolver e libertar o réu traria honra a quem o fizesse.

Zé Bebelo acaba absolvido. Joca Ramiro decreta seu banimento de Minas e da Bahia. Diadorim, feliz, pensava que a guerra havia terminado. Porém, o resultado do julgamento desagradou alguns e acontece a traição que leva à nova conflagração armada, o grande conflito que marca toda a narrativa...

Por ser a obra que é, Grande sertão: veredas permite leituras das mais variadas: uma bonita e trágica história de amor, um enorme trabalho de pesquisa linguística, uma "representação alegórica da história brasileira que revela o funcionamento do sistema real de poder no Brasil", de acordo com Willi Bolle - e tantas outras. A leitura que costumo fazer é a seguinte: um magnífico tratamento literário para episódios de violência, com múltiplas causas e justificações, que tem no julgamento de Zé Bebelo o seu mais significativo momento de contraste.

__________
¹ VASCONCELOS, Sandra Guardini T. Homens provisóriosCoronelismo e jagunçagem em Grande sertão: veredas. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 5, n. 10, p. 321-333, 1º sem. 2002. Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/12410>.  Acesso em: 20/06/2020. A autora também aponta que os jagunços rosianos, ainda que guardem semelhanças com o tipo ideal do jagunço, têm suas distinções:


"Nem capangas, como os que se associavam a um chefe de parentela ou a um chefe político, nem cangaceiros, como os que percorreram as caatingas áridas do polígono das secas, os jagunços de Grande sertão: veredas são representados como homens livres que optaram pelo modo de vida provisório e nômade da jagunçagem pelos mais variados motivos. Não recebem soldo, como os primeiros, mas são parte integrante do esquema político que impera no sertão e coloca em choque diferentes grupos e facções. são independentes como os segundos, de quem imitam a organização do bando e certas práticas cotidianas, fruto da vida nômade que abraçam. Recriados a partir de dados da realidade, figuram, portanto, no romance como uma mistura que, combinando traços de um e outro tipo, resulta num tipo compósito que retém caraterísticas dos dois".

² ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006

BG de Hoje

Já perdi a conta de quantas vezes assisti a esse vídeo no Youtube: Thinkin' About Your Body, interpretada por BOBBY McFERRIN