segunda-feira, 10 de agosto de 2020

O artista, King Kong e Kafka


Quando, em março deste ano, li a notícia de que o endividado Cirque du Soleil poderia decretar falência (impossibilitado de se apresentar em virtude da pandemia de COVID-19), senti uma pontada de tristeza, ainda que não tenha nenhum apreço especial pela organização.

Todos sabemos que o Cirque du Soleil é hoje uma grande marca empresarial. De uma trupe de artistas de rua, criada por Guy Laliberté e Gilles Ste-Croix em 1984, na região de Quebec, virou um empreendimento que movimenta muito dinheiro: um fundo de investimentos norte-americano e outro chinês são os atuais proprietários, além da firma público-privada canadense CDPQ. Antes da pandemia, a dívida da companhia chegava a 900 milhões de dólares, mas os credores estavam abertos à negociação. Com o cancelamento ou adiamento das apresentações pelo mundo afora, tudo ficou mais difícil. Cerca de 95% dos funcionários foram demitidos!

Devo dizer que nunca assisti a qualquer de seus espetáculos - um deles, Ovo, passou pela cidade onde vivo (Belo Horizonte) em 2019. Na ocasião, faltou a grana do ingresso, claro, mas também não estava assim tão desejoso para ir. Toda a badalação em torno da companhia, pelo menos em suas turnês pelo Brasil, me parece meio cafona, um provincianismo que vê na aquisição do tíquete para o show uma forma de consumo conspícuo. Enfim, como disse acima, não morro de amores pelo Cirque du Soleil.

Por que, então, lastimei a notícia de sua possível falência?

Ao contrário da maioria das pessoas, sempre considerei os circos espaços de melancolia.

São ambas recordações de infância. Na primeira vez, creio que acompanhado por minha irmã mais velha, fui a um circo modesto, cujas arquibancadas vazias me decepcionaram muito, pois imaginava um local abarrotado de gente, rindo e falando alto. As performances, por outro lado, me agradaram bastante, mas o volume baixo dos aplausos daqueles poucos espectadores soavam doloridos. Na saída, muitas roupas penduradas em varais improvisados, próximos a barracas, me lembraram que muitos ali talvez nunca conseguissem ter uma casa própria... Na segunda ocasião, poucos anos depois, debaixo de uma lona bem maior, muitas pessoas esperavam pelas atrações. Adorei sobretudo os números de trapézio. Ao sair, desta vez, reparei num camelo, colocado em uma jaula. O bicho não participara da apresentação. Solitário entre as grades, apresentava sinais de maus-tratos. Tive pena.

A precariedade do nomadismo, as viagens nem sempre feitas nas melhores condições, a ausência ou indiferença do público, os animais castigados (muito embora estes estejam paulatinamente deixando de ser usados em trabalhos do tipo), tudo isso me faz experimentar certa tristeza ao olhar para a atividade circense.

Há, ainda, a questão da formação do artista.

Quanta dedicação e tempo são necessários para se ter um bom equilibrista, trapezista ou malabarista? Como saber se determinado indivíduo possui as qualidades certas para ser um palhaço ou mágico?

E, depois de formado, que garantias têm essas pessoas de que seu ofício poderá sustentar uma vida digna? Repare, eventual leitor(a), que mesmo uma companhia gigantesca como o Cirque du Solei dispensou milhares de empregados. É certo que a pandemia de COVID-19 prejudicou - e prejudicará - a vida de muitos artistas, principalmente aqueles/as que necessitam da presença in loco do público para exibirem sua arte (e a maioria das demissões no Cirque du Soleil decorre precisamente da crise sanitária). Mas a condição do artista, muito antes do coronavírus, parece ser sempre marcada pela instabilidade, sendo mais desfavorável ainda para aqueles(as) que não gozam de renome ou projeção.

Se uma grande empresa não consegue resistir a adversidades, o que poderão fazer os circos pequenos?

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Ao pensar na condição do artista, lembrei-me do King Kong. Falo da refilmagem lançada em 2005, dirigida por Peter Jackson (e disponível no catálogo da Netflix).

Tive um pouco de má vontade na primeira vez em que assisti ao filme, há alguns anos. Nada contra o diretor: anteriormente, Jackson havia feito algo formidável na trilogia d'O senhor dos anéis. E certamente em virtude desse sucesso, deve ter tido carta branca para realizar o que quisesse. A profusão de efeitos especiais e CGI de ponta, no caso de King Kong, confirmaram que o orçamento não foi problema. Daí minha má vontade. Julguei, apressadamente, que o filme se resumia a um blockbuster medíocre. Ao revê-lo nestes dias de distanciamento social, passei a ter outra opinião, bem mais positiva.

Para o propósito da postagem de hoje, três personagens parecem feitos de encomenda: Carl Denham (vivido por Jack Black, um ator cujo trabalho aprecio muito), Jack Driscoll (interpretado por Adrian Brody) e, claro, Ann Darrow (papel reservado a Naomi Watts). Por isso, é importante ressaltar também o bom trabalho do trio de roteiristas: o próprio Peter Jackson e suas parceiras habituais - a esposa, Fran Walsh, e Philippa Boyens.

Carl Denham é um cineasta ganancioso e quase sem escrúpulos. Se não chega a ser o vilão da história, será aquele que receberá a maior parte da animosidade dos espectadores. Mas é ele quem faz as coisas acontecerem. Para que uma produção artística se realize, não bastam apenas a visão artística, o sonho ou o desejo. É preciso por a mão na massa e, em grande parte dos casos, obter financiamento. A Denham não falta esse senso prático. E, apesar de sua calhordice, não consigo deixar de admirar sua obstinação em manter a câmera ligada e filmando, mesmo em meio a situações mortais. 

Jack Driscoll e Ann Darrow representam o outro lado, o lado imaginativo e até um pouco quimérico. Ele, um dramaturgo e roteirista pouco conhecido, em busca de posição: ela, uma pobre atriz e performer de vaudeville, sem emprego e perspectiva. É bastante significativo que os dois personagens abram mão da possibilidade de fama ao se afastarem do projeto de Denham, quando este consegue levar o gorila gigante para Nova York.

Há uma sequência, ainda na primeira parte do filme, quando Denham e Darrow se conhecem.  Após pagar uma refeição para a faminta atriz, o cineasta tenta convencê-la a participar de seu novo filme. Diz que ela seria perfeita para o papel pois é "a garota mais triste que ele já conheceu" e que ela faria todo o público chorar. Ann, então, diz que ele está equivocado, pois ela "faz as pessoas rirem" (pensando provavelmente nos seus números no vaudeville, que, aliás, têm muito a ver com o circo). 

Denham estava certo. Ann é triste. A tristeza, contudo, resulta principalmente de sua situação e condição de artista. Uma mulher pobre tentando conseguir seu lugar ao sol no volúvel mundo dos espetáculos nas primeiras décadas do século passado. E mesmo que ela possua talento - esse atributo tão necessário a todos os tipos de artistas, mas que escapa a um assentamento objetivo -, não há segurança para nada. 

Se me permite o(a) eventual leitor(a), me afastarei um pouquinho do tópico central da postagem, para um breve comentário. Revendo King Kong, fiquei imaginando toda a dificuldade enfrentada por Naomi Watts, pois como contracenar com um animal de 9 metros de altura que não está lá?!? Olhando fotos dos sets de filmagem, é possível ver a atriz algumas vezes ao lado de Andy Serkis (o ator que interpreta o gorila), "vestido" com os apetrechos usados para a captura de movimento (e Serkis é perito nesse tipo de atuação). Watts disse numa entrevista (infelizmente, não consegui encontrá-la agora na web) que ao menos tinha, em algumas cenas, a possibilidade de olhar nos olhos do outro ator e assim dar seguimento à sua interpretação. De todo modo, não foi fácil.

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A condição do artista finalmente me leva a refletir sobre outro ponto: não há arte (e, portanto, não há artista) se esta não se dá ao olhar de um outro (ou não se oferece à audição de um outro, no caso da música). Mesmo aqueles que dizem fazer arte apenas para si mesmos, exibem publicamente pelo menos parte daquilo que fazem.

Toda vez que leio o conto Um artista da fome, de Franz Kafka - e me lembro de como o próprio escritor tcheco tratou sua produção literária -, é nessa questão que penso em especial.

Em certo momento da narrativa, o artista se vê "abandonado pela multidão ávida por entretenimento, que já se amontoava em outros espetáculos" ¹. Constata sua nova situação: 

"Ele, que tinha encantado milhares de pessoas, não poderia apresentar-se em tendas nas
pequenas feiras, e, para aprender um outro ofício, o artista da fome não era apenas velho demais, mas sobretudo demasiado fanático em relação ao jejum. Então despediu o empresário, seu companheiro nessa carreira ímpar, e arranjou emprego em um grande circo; a fim de poupar sua sensibilidade, nem aos menos leu as cláusulas do contrato".

Por que não podia apresentar-se em espaços menores? Porque, penso, cada artista carrega dentro de si uma volumosa carga de amor-próprio (que pode, não raro, confundir-se com a empáfia) sem a qual, provavelmente, sua arte não seria o que é. E é necessário dedicação: às vezes uma vida inteira de devoção. E, quando se envelhece, caso seja necessário mudar de ofício, como fazê-lo?

Empregando-se no circo, a jaula do artista da fome é colocada no caminho que vai dar nas jaulas dos animais.

"Mas na verdade o artista da fome não perdeu de vista as circunstâncias reais e aceitou como natural que não pusessem sua jaula como atração de destaque no meio do picadeiro, mas que em vez disso o acomodassem ao ar livre em um lugar bem acessível, próximo ao estábulo. Grandes letreiros coloridos rodeavam a jaula e anunciavam o que se podia ver lá dentro. Nos intervalos entre os espetáculos, quando o público se dirigia ao estábulo para ver os animais, era quase inevitável passar pelo artista da fome e lá se deter por alguns instantes; talvez as pessoas ficassem um pouco mais de tempo se naquela estreita passagem, a multidão, incapaz de compreender essa demora no caminho ao estábulo tão desejado, não tornasse impossível uma observação mais calma e atenta. Esse também era o motivo pelo qual o artista da fome, antes das horas de visita, que naturalmente eram a razão de sua vida, sempre começava a tremer. No início ele mal conseguia esperar pelos intervalos; encantado, aguardava a multidão que se aproximava, até se convencer - nem mesmo o mais persistente autoengano, por mais caro que fosse, resistia à experiência - de que a maioria das pessoas sempre, sem exceção, tinha por objetivo visitar o estábulo".

Não obstante seu orgulho e a quase certeza de que não compreendiam o verdadeiro sentido do que fazia, o artista da fome ansiava pela chegada do público (as horas de visita eram "a razão de sua vida"). O público, contudo, acaba dirigindo-se para outros interesses, mesmo que tenha diante de si um artista cuja performance é aguda ao ponto de significar a penúria física de seu próprio corpo.

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Teria mais a dizer sobre o artista, uma das "funções" sociais sobre as quais tenho pensado muito nos últimos dez anos (a outra é o intelectual). Entretanto, deixo para mais adiante.

Na próxima atualização, escreverei sobre o romance Aos 7 e aos 40, do paulista João Anzanello Carrascoza.


[Atualização em 30/08/2020] Repensando sobre o tema desta postagem, percebo que cometi uma grande falta. Vou procurar corrigi-la agora. Muitos artistas não teriam condições de se apresentar se não fosse o trabalho de outros indivíduos: pessoas que trabalham nas bilheterias, na montagem e desmontagem de palcos, cenários e instalações, na maquiagem, na iluminação, na afinação e no cuidado com os instrumentos musicais, entre outros trabalhadores. Creio que a pandemia foi ainda mais severa com esse contingente. É preciso lembrar sempre disso.

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¹ KAFKA, Franz. Um artista da fome seguido de Na colônia penal & outras histórias. Porto Alegre: L&PM, 2011 [Tradução de Guilherme da Silva Braga]


BG de Hoje

Reasons I Drink, de ALANIS MORISSETTE, foi lançada no finalzinho de 2019. Evoca algo dos melhores momentos da cantora/compositora, quando ela surgiu em meados dos anos 1990, com o discaço Jagged Litlle Pill. O clipe da canção reforça uma das boas características de Morissette: a capacidade de fazer troça de si mesma.