terça-feira, 31 de julho de 2012

Ornamentação, terror e uma dose de "bobagem" em Marte

[Atualizada em 06/05/2022]

 
Ray Bradbury, no terreno da ficção científica, posiciona-se em lugar bem diferente daquele ocupado por Isaac Asimov (sobre quem escrevi nas duas postagens anteriores).

A diferença está sobretudo na maneira de narrar. Observemos o primeiro parágrafo de Terceira expedição, uma d 'As crônicas marcianas *:

"A nave chegou do espaço. Veio das estrelas e das velocidades incríveis, dos movimentos brilhantes e dos vazios do espaço. Era uma nave nova;  tinha fogo nas entranhas e homens em suas células de metal. E se movia com um silêncio limpo, fogoso e quente. Era tripulada por dezessete homens, incluindo um capitão. A multidão no campo de lançamento de Ohio tinha gritado e agitado os braços, e o foguete soltara enormes flores da cor do fogo, partindo às pressas em direção ao espaço, na terceira viagem à Marte!"

E este outro trecho, em Os colonizadores, no mesmo livro:

"Os homens da Terra chegaram de Marte.
Foram para lá porque tinham medo ou não, porque eram felizes ou não. Porque se sentiam como Peregrinos ou não. Cada um tinha seu motivo. Estavam deixando para trás más esposas, empregos ruins ou cidades ruins; foram até lá para encontrar algo, abandonar algo, conseguir algo, desencavar algo, enterrar algo ou deixar de lado algo. Chegavam com sonhos pequenos ou sonhos grandes, ou com sonho nenhum".

Bradbury (que faleceu este ano, no mês de junho) procura a frase mais expressiva, sem, contudo, dispensar o ornato. Essa preocupação ornamental não esvazia a prosa do escritor norte-americano: ao contrário, confere a ela uma toque de beleza, beirando às vezes, porém, a pieguice e o kitsch (é oportuno notar que o autor era leitor de - e também escrevia para - revistas pulp fiction).

Há também o recurso ao terror, especialmente bem trabalhado em A terceira expedição e Usher II. Essa última narrativa, a propósito, é uma macabra homenagem à Literatura Fantástica. Há também nesse conto, alguns elementos que serão ampliados e desenvolvidos em Fahrenheit 451, romance magistral de Bradbury publicado em 1953.

A dose de "bobagem" fica por conta do lado "científico" d'As crônicas marcianas. Diferentemente de Isaac Asimov, que era bioquímico, com bom conhecimento das ciências naturais, Ray Bradbury foi "apenas" um talentoso autodidata e poeta. Por isso, muitas vezes o leitor precisa dar um desconto ainda maior quando o escritor escorrega ao tratar da atmosfera de Marte ou ao conceber o modo como as viagens espaciais seriam realizadas, por exemplo. E ter em mente, muitas vezes, a intenção humorística do escritor em determinados contos (As cidades silenciosas, é claramente um destes) e notar o traço de entretenimento que caracteriza a maioria dos textos da coletânea. NOTA: É curioso o que ocorre na ficção científica: trata-se de ficção, logo, invenção, fantasia. Mas para um bom número de leitores (meu caso), a fantasia precisa de alguma proximidade com o discurso científico, logo, pretensamente mais próximo do real, senão o texto  sci-fi  não "funciona" convenientemente.

Transformadas num livro em 1950 (coincidentemente, o mesmo ano de publicação de Eu, robô, de Asimov),  As crônicas marcianas  surgiram antes da chegada do ser humano à Lua e elaboradas em meio ao pavor decorrente de uma possível guerra nuclear que pudesse devastar nosso planeta. Esse medo está presente nalgumas narrativas, assim como a crítica preciosa ao comportamento destrutivo da humanidade, como se lê em Os gafanhotos ("Os foguetes chegavam como gafanhotos, em enxames, formando nuvens de fumaça rosada. E dos foguetes corriam homens com marretas nas mãos, para modelar aquele mundo estranho até um formato conhecido, eliminando toda a estranheza, a boca cheia de pregos, parecidos a animais carnívoros com dentes de aço  [...]).

Apesar da postura místico-religiosa adotada em ... E a lua continua brilhando - que não me agrada - tenho que reconhecer: trata-se de um clássico da ficção científica.  
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* BRADBURY, Ray.  As crônicas marcianas.  São Paulo: Globo, 2005 [Tradução de Ana Ban]

BG de Hoje

98% da música pop atual originou-se da música produzida por negros dezenas de anos atrás. Jazz, Soul, Blues, Reggae, Dance, Funk (além do Rap, obviamente). E também o Rock, ora essa! Mas, ao longo do tempo, o gênero foi sendo dominado pelos brancos, principalmente nas suas vertentes mais pesadas, como é o caso do heavy metal. Entre as poucas bandas dentro deste segmento formadas exclusivamente por negros está o competentíssimo LIVING COLOUR. No vídeo, uma canção (do primeiro disco do grupo, em 1988) cuja letra diz muito sobre este blogueiro: Middle Man.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

"O melhor dos seres humanos"


O título desta postagem foi retirado do conto Evidência, outra das excelentes histórias do livro Eu, robô, de Isaac Asimov*. Faz parte de uma declaração da personagem Susan Calvin. Ela diz: [...] você não pode diferenciar entre um robô e o melhor dos seres humanos".

Mas em que ela se baseia para fazer tal afirmação? Nas famosas "três leis da Robótica" ** , invenção genial do escritor norte-americano (nascido na Rússia) e que sustentam todas as nove narrativas das quais o livro se compõe.

Susan Calvin, que gostava mais dos robôs do que dos seres humanos, explica:

[...] se parar para pensar nelas, as três leis da Robótica são os princípios essenciais que guiam muitos dos sistemas éticos do mundo. É claro que todo ser humano deve ter um instinto de autopreservação. Esta é a lei número três para um robô. Igualmente, todo "bom" ser humano, com uma consciência social e um senso de responsabilidade, vai seguir a autoridade adequada ; ele ouvirá o que diz seu médico, seu chefe, seu governo, seu psicólogo, seu companheiro, ele obedecerá as leis e seguirá as regras, seguindo os costumes, mesmo quando isso interferir no seu conforto ou na sua segurança. Esta é a lei número dois para um robô. E do mesmo modo, todo "bom" ser humano deve amar aos outros como a si mesmo, protegendo seus companheiros, arriscando sua vida para salvar as vidas de outros. Esta é a lei número um para um robô. Resumindo: se Byerley [personagem central da narrativa] seguir todas as leis da robótica, ele poderá ser um robô, mas também poderá ser apenas um homem muito bom".

Vale ressaltar que Isaac Asimov propôs as três leis por não concordar com aquilo que chamava de "síndrome de Frankenstein", isto é, "a crença de que robôs e seres artificiais seriam uma ameaça à humanidade" ***.

Por essa razão, detestei o filme Eu, robô, estrelado por Will Smith (I, robot - direção de Alex Proyas, 2004). Há uma distorção da concepção de Asimov. Além do mais, a personagem da Dra. Susan Calvin (no filme, interpretada pela belíssima atriz Bridget Moynahan) tem papel secundário - completamente diferente do livro.

Se você que está lendo esta postagem só conhece o filme, recomendo a leitura desse livro essencial na história da ficção científica.

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* ASIMOV, Isaac. Eu, robô.  Rio de Janeiro: Ediouro, 2004 [tradução de Jorge Luiz Calife]

** As três leis da Robótica são:
" Primeira Lei: um robô não pode ferir um ser humano ou, através da inação, permitir que um ser humano seja ferido.
Segunda Lei: um robô deve obedecer às ordens dadas por seres humanos exceto se tais ordens entrarem em conflito com a Primeira Lei.
Terceira Lei: um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou a Segunda Lei ".

*** De acordo com o prefácio de Jorge Luiz Calife para a edição de Eu, robô mencionada acima.

BG de Hoje

Outro dia estava lendo uma breve nota sobre Lars Ulrich, o baterista do METALLICA. O músico dizia que "regrediu". Será? Bem, Ulrich não é mais um garoto e talvez não tenha mais a mesma velocidade e energia de antes. Mas ainda o considero um ótimo baterista. Confira em Disposable Heroes, canção do discaço Master of Puppets (1986), numa apresentação registrada há três anos.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Religião robótica


Um dos melhores contos de Eu, robô * - clássico da ficção científica escrito por Isaac Asimov em 1950 - chama-se Razão.

É uma narrativa bem-humorada na qual QT-1, robô montado para controlar uma Estação Solar e curioso em relação à sua existência, conclui ter sido escolhido pelo "Mestre" (na verdade, o Conversor de Energia da estação) para ser seu profeta.

O que torna o conto ainda mais fascinante é o modo como o robô chegou a tal conclusão.

QT-1 é um racionalista puro (em determinado momento um dos personagens humanos da narrativa, Gregory Powell, diz: "Por Júpiter, um robô Descartes!"). Para se ter uma ideia, quando questionado a respeito das evidências percebidas através dos telescópios que observava, QT-1 reage: "Desde quando a evidência de seus sentidos compara-se à luz clara do raciocínio rígido?". O robô não tem dúvida de que a cadeia de raciocínios que o levou ao "Mestre" é a correta.

Asimov faz questão de ressaltar essa estranha armadilha da lógica. "Você pode provar o que quiser através do frio raciocínio lógico, desde que escolha os postulados adequados", observa o personagem Powell, e acrescenta: "Postulados são baseados em conjecturas e aceitos pela fé. Nada no universo poderá abalá-los".

Importante observar que a palavra , utilizada no excerto acima citado, não foi uma boa escolha (por parte do autor ou, talvez, do tradutor - não sei dizer); melhor teria sido crença, menos carregada de conotação religiosa. E Isaac Asimov não tinha nenhuma simpatia pelas religiões. Daí o lado irônico da narrativa.

Uma das passagens mais divertidas do conto se dá quando QT-1, "olhando para cima devotamente", afirma que "existem coisas que não devem ser investigadas por nós". O profeta robótico, mesmo considerando-se um "ser racional, capaz de deduzir a Verdade a partir das Causas" - mas que não considera os livros "uma fonte válida de informações"  - adota a mesma postura obscurantista e anti-intelectualista da maioria dos adeptos das religiões humanas.
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* ASIMOV, Isaac. Eu, robô.  Rio de Janeiro: Ediouro, 2004 [tradução de Jorge Luiz Calife]

BG de Hoje

Um clipe infantilmente sádico. Mas eu acho muito engraçado. Ah, e a canção também é ótima: Drunk girls, com o LCD SOUNDSYSTEM

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Trânsito e sociedade (III)


O livro Fé em Deus e pé na tábua*, que foi o assunto desta série de postagens, passa ao largo de uma investigação sobre os deslocamentos viários urbanos, em suas dimensões econômicas e numéricas. Segundo o autor (o antropólogo Roberto DaMatta), "o presente estudo tem como traço distintivo o fato de que deseja expor uma visão geral da sociabilidade brasileira".

Somos (nós, brasileiros), de acordo do DaMatta, marcados por uma "mentalidade hierárquica, que induz a graduar pessoas, objetos e  espaços  verticalmente  ordenados  - entre superiores  e  inferiores".  Essa mentalidade, consequência de um aristocratismo ainda presente em nosso cotidiano, choca-se com o conceito de igualdade, fundamental para a vida republicana moderna, inclusive no trânsito. A pesquisa - da qual o livro é resultado -

"revela que tais comportamentos  [agressivos e enlouquecedores] resultam menos de questões de obras e melhorias materiais do ambiente do trânsito que do fato de que todos, no fundo de suas consciências, se sentem especiais, superiores e com direitos a regalias e prioridades. A imprudência, o descaso e a mais chocante e irreconhecível incivilidade brasileira no trânsito decorrem da ausência de uma visão igualitária de mundo, justamente num espaço inevitavelmente marcado e desenhado pela igualdade mais absoluta entre seus usuários, como ocorre com as ruas e avenidas, as estradas e viadutos".

Para o antropólogo, "o fato concreto é que o cidadão brasileiro, seja pedestre, ciclista, motociclista, motorista ou até mesmo carroceiro, tem uma dificuldade atávica no que  diz  respeito a obedecer à lei" e acrescenta, justificando o título de seu livro:

"A pesquisa aponta para um dado que tem passado despercebido nos inquéritos sobre trânsito no país e no resto do mundo. Trata-se de um fato óbvio, exemplificado pelo corriqueiro pé na tábua - aquela parte do adágio nacional que modela o ato de conduzir um veículo expresso no fé em Deus. Realmente, se fé em Deus se aplica a todos os atores do espaço público, pois não há quem dela não dependa, o pé na tábua diz respeito somente a quem possui ou pilota um veículo motorizado. Mas o adágio, como as peças de propaganda, nos faz perder de vista sua profunda realidade. Que realidade é essa? Ora, é a que nos revela o óbvio ululante e escondido: o motorista (confiante no pé na tábua) que desrespeita a lei, e eventualmente causa o acidente, nada mais é do que o pedestre que jamais foi treinado para obedecer aos regulamentos de sua sociedade. Quem tem fé em Deus é aquele mesmo sujeito que, sem dó ou piedade, enfia o pé na tábua. Para tanto, basta - e essa é uma revelação importante do inquérito - com que pedestre e motorista troquem de lugar".

Falta ao cidadão brasileiro "uma visão democrática" que enfatize o respeito e a obediência à lei tendo em vista os outros cidadãos com os quais o espaço público - no caso, o trânsito - é partilhado. Só que aquele que procura seguir os regulamentos "é sempre o boboca, o palhaço, o paspalho ou o inferior. No Brasil, quem cede igualitariamente a vez está errado e é sempre admoestado por buzinadas e xingamentos de todos os motoristas".

Como tentar resolver, então, os problemas relacionados ao trânsito?

Roberto DaMatta vê alguns desafios. Entre estes:

1) "[...]para o gerenciador público é a construção de uma relação positiva, efetiva e legítima entre o que os outros motoristas fazem no trânsito, o que eles dizem que fazem e o que gostariam que o Estado fizesse".

2) "Qualquer programa de atuação nesta área [...] terá que primeiramente reverter e extinguir a ideia de impunidade como hábito, solução e tradição".

3) Os brasileiros têm dificuldade para "internalizar limites impostos por normas impessoais".

Qualquer solução para os problemas da mobilidade urbana, acredita o autor, passa pelo reconhecimento do trânsito como um sistema que deve ser visto como um todo (um fato social total, diria Marcel Mauss) e depende de formas de conscientizar a população para "suas responsabilidades perante os outros no cenário de uma sistema complexo e dinâmico que reúne pessoas, animais e máquinas, bem como sinais e demarcações impessoais ", além de desenvolver " políticas públicas que sejam capazes de extinguir uma enraizada e costumeira crença na impunidade".

Como se vê, esforço nada simples de ser empreendido.
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* DaMATTA, Roberto. Fé em Deus e pé na tábua ou Como e por que o trânsito enlouquece no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2010 [como colaboração de João Gualberto M. Vasconcellos e Ricardo Pandolfi]

BG de Hoje

Ouvi um dia desses na MTV e fiquei chapado na hora: ALABAMA SHAKESHold on. O primeiro (e, até agora, único) disco da banda -  Boys & Girls  - ainda não chegou na minha loja preferida aqui em BH (a Discoplay ). Mas já vou encomendar. Sonzaço!

terça-feira, 17 de julho de 2012

Trânsito e sociedade (II)

 Em Fé em Deus e pé na tábua * , o antropólogo Roberto DaMatta, entre  outros temas, discute  as " formas verticalizadas de relacionamento "  que caracterizam nosso sistema social, enfocando, obviamente, o modo como essas formas manifestam-se no trânsito.

O trânsito, em condições ideiais, deveria ser o espaço da obediência à lei e à norma, do tratamento e do reconhecimento igualitário entre seus diversos participantes. Ou seja, não deveria ocorrer o uso pessoal   (personalista) das vias. Atentemos, entretanto, para este trecho do livro de DaMatta:

" Não existe motorista (nem cidadão-pedestre brasileiro) que não tenha ficado raivoso, impaciente, irritado ou até mesmo tenha entrado em surto neurótico com o automóvel da frente, de trás ou do lado, tomando-o como um adversário, jamais como parceiro ; que não tenha deliberadamente ultrapassado com alto risco um sinal, em nome de alguma tarefa urgente ou superior ; que não tenha demorado para sair de uma vaga com a intenção de perturbar ou sacanear, como falamos coloquialmente, aquele carinha - o outro motorista que, impaciente, espera por sua vez ; e que não tenha, como um bárbaro assassino em potencial, indignado e ofendido, enfiado o pé na tábua ao ver um pedestre aflito deslocando-se alguns metros à sua frente. A menos que um contato visual, acompanhado de um gesto adequado, indicativos de deferência ou reconhecimento pessoal, atenue essas atitudes tradicionais e esperadas de hostilidade e distanciamento, a alteridade negativa predomina em todos os tipos de interação social realizados em ambientes marcados pelo anonimato e pela impessoalidade na sociedade brasileira. Em outras palavras, o motorista ao lado é um inimigo - um outro absoluto - até que ele ou nós façamos um gesto que nos permita reconhecê-lo e transformá-lo numa pessoa. Aí ele instantaneamente perde sua desumanidade, deixa de  ser  imbecil ou  panaca  sujeito a agressão, e passa a ser cocidadão digno de respeito e de consideração ".

Bem antes da leitura deste livro já adotava, como estratégia preventiva, o contato visual e gestual ao atravessar as ruas apinhadas de carros da cidade em que moro ; já desconfiava de que a maioria dos motoristas deseja que nós, pedestres, demonstremos deferência para com eles.

O trânsito brasileiro é personalista. Pior: como demonstra Roberto DaMatta ao longo do livro, reproduz comportamentos aristocráticos arraigados em nossa sociedade e que comprometem qualquer tentativa de regulação e ordenação do espaço público (no caso, as ruas e avenidas dos grandes centros urbanos). Continuo na próxima postagem.

* DaMATTA, Roberto. Fé em Deus e pé na tábua ou Como e por que o trânsito enlouquece no Brasil.  Rio de Janeiro: Rocco, 2010 [colaboram João Gualberto M. Vasconcellos e Ricardo Pandolfi]

BG de Hoje

Não quer dizer que por ouvir rock pesado a maior parte do tempo eu não aprecie outros modos de ser fazer música: não sou um "xiita do heavy metal". Por isso, o BG de hoje traz o samba Nada de rock rock, bem bolada crítica à invasão de música estrangeira que começava a acontecer no Brasil na década de 1950, composta por HEITOR DOS PRAZERES.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Trânsito e sociedade (I)


Quando ouvi falar, há alguns anos, da disciplina "Sociologia do Trânsito", fiquei pensando:  "que bobagem! Os problemas de trânsito podem ser solucionados com leis específicas e decisões de natureza técnica" . Por aí se vê como eu já fui bem mais besta quadrada... A circulação de veículos e a mobilidade urbana são, atualmente, dois dos maiores problemas SOCIAIS das grandes cidades.

O trânsito, além de me irritar (e olha que só exerço nele o papel de pedestre), assusta e intimida.

Ontem, consegui comprar um livro que desejava ler desde o seu lançamento, dois anos atrás, justamente para tentar entender melhor as causas de toda essa falta de civilidade, fúria e insegurança nas ruas. Estou falando de Fé em Deus e pé na tábua ou Como e por que o trânsito enlouquece no Brasil , cujo autor é o antropólogo Roberto DaMatta (Editora Rocco, 2010).

No prefácio, o pesquisador esclarece que

" [...] o ponto de partida é o de que a rua é um perigo. Ela pode ser o nosso túmulo, e nela devemos esperar pelo pior, pois que pertence aos veículos, jamais aos pedestres - essa maioria. Quer dizer :  na rua, a democracia e o bom-senso ali requeridos se invertem, e a maioria descobre, sob pena de ser sistematicamente agredida ou perder a vida, que aquele espaço pertence aos que estão dentro de seus respectivos veículos ou montados em suas motos. A minoria forte e protegida, explosivamente embrutecida por seus motores (e, muitas vezes, por seus revólveres e suas barras de ferro), torna-se opressora da maioria, que, tentando seguir para o trabalho, para a escola ou simplesmente ir para casa, vê-se forçada a tentar sobreviver. E, eis o mais alarmante, o cenário é tido como normal e  natural  (ou constitutivo)  do mundo moderno. Aceitamos a loucura, a injustiça e a crueldade porque, mesmo num espaço igualitário, jamais discutimos a hierarquia do mais forte e do mais poderoso como rotina que permeia a construção do espaço público no Brasil ".

Devo terminar a leitura neste fim de semana. Na próxima postagem, comento a respeito.

BG de Hoje

Tá certo: os Beatles são a maior banda de todos os tempos e blá-blá-blá , blá-blá-blá... Mas foram os ROLLING STONES que trouxeram para o rock uma dose de sujeira, de imperfeição que, até hoje, representa o lado de  que mais gosto nesse gênero de música. A banda completou 50 anos de atividades ontem ; nada mais justo que homenageá-la hoje, Dia Mundial do Rock. A canção - Honk Tonk Woman , um clássico - é deliciosamente preguiçosa, mas nem por isso menos acachapante.

terça-feira, 10 de julho de 2012

TV Bola? Só falta essa...

 Detesto futebol. Como entretenimento, geralmente é chato. Como fenômeno sociocultural brasileiro, aí então é insuportável para os pobres coitados como eu que não têm a menor paciência para o tal "ludopédio". Nas últimas semanas o assunto saiu dos nichos "esportivos" (mas que só falam de futebol) e invadiu o restante do noticiário, por causa da final da Libertadores. Só se falava em Corinthians, Corinthians, Corinthians...

Foi aí que me lembrei de uma crônica sensacional do José Roberto Torero, chamada TV Bola *. Na abertura, o cronista fala do "espaço gigantesco no imaginário da sociedade" ocupado pelo futebol ; acredita que o fanatismo em torno dessa atividade aumentou graças à televisão e prevê que "logo teremos canais especializados num só time".

Num canal desse tipo, a programação conteria atrações como  " ' O gol nosso de cada dia '. Missa onde se reza pela boa sorte do clube"  ou  " ' Segredos de mulher '. Uma Maria Chuteira explica como fazer para agarrar seu jogador : truques de beleza, lugares onde encontrá-los e como saber se ele está bem de vida ou não".  As famigeradas  telenovelas não seriam dispensadas:  haveria " ' A goleira Isaura ' [...] A história de uma jogadora que luta para receber o passe livre ' e, às 21h, seria exibida " ' O Direito de Torcer ' [...] O personagem Albertinho Limonta luta para realizar seu grande sonho: ser centroavante do clube ' ".  De reality shows  a programas de culinária, tudo na TV Bola  giraria em torno do futebol.

Torero termina dizendo: "Uma TV assim pode parecer uma piada, mas daqui a algum tempo talvez seja coisa séria. Infelizmente".

. . . . . . . 

Ah, aproveitar para elogiar a ótima iniciativa da editora Objetiva/ Fontanar que organizou a coleção Para ler na escola, que conta com textos de autores como Roseana Murray, Ruy Castro, Ignácio de Loyola Brandão, Moacyr Scliar, João Cabral de Melo Neto, Luis Fernando Veríssimo, João Ubaldo Ribeiro, entre outros.

Só lamento que as edições não indicam a primeira publicação dos textos selecionados. Ainda assim, um produto editorial muito bom (até mesmo para presentear).

* TORERO, José Roberto. Crônicas para ler na escola. Rio de Janeiro: Fontanar, 2011. p. 67-68

BG de Hoje

Quanto mais feio, do quarteto carioca MATANZA. Pau na máquina!

quinta-feira, 5 de julho de 2012

"Sempre é possível triunfar"... Sobre o quê?



No primeiro episódio da série de animação Futurama (criada por Matt Groening) há uma cena muito engraçada, quando Fry conhece o robô Bender, de forma involuntária, dentro de uma cabine de suicídio, na qual o rapaz havia entrado por engano (veja a cena aqui). No futuro imaginado pelos roteiristas da série, suicidar-se será tão simples e corriqueiro quanto fazer uma ligação telefônica.

Lembrei-me dessa cena ao ler a matéria de capa da penúltima edição da revista Época*. A reportagem, assinada por Felipe Pontes, entrevistou quatro brasileiros inscritos na organização Dignitas, que pratica o chamado suicídio assistido, na Suiça.

A primeira dos entrevistados (que sofre de ateromatose) diz: “Não me sinto uma suicida, jamais pularia da janela. Apenas quero morrer dormindo”. A segunda, uma ex-atleta, tetraplégica após acidente durante um mergulho, fala de como os outros não entendem a sua decisão: “As pessoas são egoístas, só pensam quanto elas sofrerão se eu for embora. Não conseguem ter ideia do meu sofrimento”. Um terceiro considera ser “nobre oferecer ajuda a quem está sofrendo” e o último dos entrevistados, mais pragmático, é direto: “As pessoas não fazem seguro de vida? Vejo o que fiz como um seguro de morte”.

O que se pode depreender a partir dessas declarações? 1) Suicidar-se, mesmo que seja para evitar um sofrimento maior é, em si, um ato muito sofrido (daí o desejo de morrer dormindo) ; 2) ninguém – a não ser o sofrente – tem a exata noção do que é conviver com o sofrimento intenso e prolongado ; 3) não se deve “condenar ao fogo do inferno” quem auxilia aquele que deseja morrer ; 4) e o tema suicídio assistido deveria ser discutido com menos passionalidade.

Pessoalmente, sou favorável ao suicídio assistido. Digo mais: acho que a sociedade deveria parar de ser tutelada pelas opiniões religiosas, que condenam invariavelmente o suicídio, e começar a pensar e discutir esse ato extremo sob outros vieses (e quem sabe até inventando, no futuro, uma cabine de suicídio).

Aliás, a matéria da Época não fugiu ao expediente típico (e preguiçoso) desse tipo de reportagem: ouviu apenas o que tinham a dizer as “autoridades” religiosas. Não se consultou nem um jurista, nem um psicólogo, nem um filósofo. Ah, o físico Stephen Hawking foi ouvido... para corroborar a intenção da matéria (que não teve equilíbrio algum, pendendo para o lado que considera a prática um pecado). Reproduziu-se na capa da revista, omitindo um trecho importante, a seguinte declaração do cientista: “Encerrar a própria vida é um erro. Sempre é possível triunfar”. Mas no texto da matéria lê-se [grifos meus]: Acho que as pessoas têm o direito de encerrar a própria vida, mas seria um erro [...]”.

E há aqui ainda outro ponto a ser discutido. O verbo triunfar, de fato, é intransitivo na maioria de suas acepções e usos; mas numa delas, de acordo com o “Houaiss” - “livrar-se de dificuldade; obter bom resultado” - é transitivo. Se a morte pode ser considerada uma dificuldade (inevitável e invencível), o que significaria então sempre é possível triunfar? Triunfar sobre o que, exatamente?

* Ajuda-me a morrer. Época, São Paulo, n. 736, 25 jun. 2012, p. 82-91

BG de Hoje

Das bandas mais inteligentes e inventivas da história do rock. Estou falando do TALKING HEADS (aqui num de seus maiores hits: Wild wild life).

terça-feira, 3 de julho de 2012

Álvaro de Campos, o terrível




Há um belíssimo poema de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos* cujo tema (um deles) remete àquela sensação que, acredito, todas as pessoas experimentam, experimentaram ou vão experimentar ao longo da vida: o arrependimento por ter agido (ou deixado de agir) de tal ou qual maneira. Eis:

Na noite terrível, substância natural de todas as noites,
Na noite de insónia, substância natural de todas as minhas noites,
Relembro, velando em modorra incómoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.
Relembro, e uma angústia
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.
O irreparável do meu passado – esse é que é o cadáver.
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures.
Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.

Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido -
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso – e foi afinal o melhor de mim – é que nem os Deuses fazem viver...

Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono elaboro -
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensìvelmente levado a ser outro também.

Mas não virei para o lado irreparàvelmente perdido,
Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.

O que falhei deveras não tem esperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todas as conversas,

Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p'ra mim”.

O melhor de mim foi o que deveria ter feito, não o que fiz efetivamente; é duro viver com essa sensação. De maneira amarga, noutro poema (Canção à inglesa), o poeta escreve: “Falhei no que fui, falhei no que quis, falhei no que soube./ Não tenho já alma que a luz me desperte ou a treva me roube,/ Não sou senão náusea, não sou senão cisma, não sou senão ânsia,/ Sinto em ânsia que fui a uma grande distância/ E vou, só porque o meu ser é imundo e profundo,/ Colado como um escarro a uma das rodas do mundo”.

Como é terrível – e isso é positivo – ler Fernando Pessoa/Álvaro de Campos!
__________
* PESSOA, Fernando. Poemas de Álvaro de Campos: obra poética IV. Porto Alegre: L&PM, 2006


BG de Hoje

Algumas das melhores canções dos DOORS são variações em torno de um blues, que serve como linha melódica. É o caso de Riders on the storm. O teclado de Ray Manzarek e os efeitos sonoros, simulando uma tempestade, tornam a gravação inesquecível.