segunda-feira, 29 de abril de 2013

Falou e disse...

"A importância da Literatura não é o método ou teoria com a qual a estudamos, mas é a própria Literatura. Porque ela nos fala de nós mesmos, da condição humana, da nossa sociedade. Ela nos permite compreender melhor o mundo. Quando lemos um livro, está lá o que é mais importante. Quando leio As flores do mal, de Baudelaire, a importância não é a metáfora nem as figuras retóricas, e sim o motivo pelo qual continuamos a ler esse poema. É a imagem que nos dá do mundo e de nós mesmos. A Literatura nos ajuda a viver por um enriquecimento de nosso mundo interior"*.

* Tzvetan Todorov, em entrevista (na íntegra, disponível aqui) para a Revista de História da Biblioteca Nacional, em janeiro de 2013 (ano 8, número 88, p. 46-51)


quinta-feira, 25 de abril de 2013

Adaptação e facilitação no mundo das HQs



Em busca do tempo perdido - que nunca li, a propósito - é um dos grandes monumentos da Literatura. Uma daquelas obras que atrai ou intimida os leitores.

Disse jamais ter lido a obra de Proust, mas talvez não seja bem assim, porque conheço a adaptação feita por Stéphane Heuet (Editora Jorge Zahar, 2004; tradução e notas de André Telles). Então, li ou não li Proust?

De primeira, é fácil responder. E a resposta é negativa. Como mencionei, trata-se de uma adaptação: não estive diante do texto/obra original*. Há, porém, uma peculiaridade no trabalho de Heuet: muitos e muitos blocos de texto, ao lado (ou ocupando o espaço) dos desenhos, como se fossem uma narração em off.

A narrativa quadrinística, como se sabe, lança mão do texto, a maior parte do tempo (mas não exclusivamente), para reproduzir diálogos ou pensamentos dos personagens nos balões. No trabalho do quadrinista francês, os blocos de texto (com a cor de fundo amarela) reproduzem, suponho, passagens mais ou menos fiéis ou literais da escrita de Marcel Proust. Se assim não fosse, aquilo que os especialistas e críticos enaltecem no romance - o discurso e não a trama/enredo - se perderia na adaptação, acho. Cabe observar, contudo, que, justamente por isso, não me agradou essa versão de Em busca do tempo perdido (acho até que esse livro não é "quadrinhável").

Adaptações de clássicos da Literatura para os quadrinhos são bastante comuns. Algumas muito boas, como as realizadas, por exemplo, pela Farol Literário, que inclui Alice no país das maravilhas, Moby Dick, A ilha do tesouro... Outras "forçam a barra" porque seu objetivo, me parece, é apenas facilitar - com a desculpa de tornar mais "atrativa" - a leitura de certos livros que exigem maior esforço da parte de quem lê.

Há quem argumente que tais adaptações têm seu valor, pois, de outra forma, grande número de pessoas jamais se aproximaria de obras normalmente associadas à elite cultural.

Talvez seja esse o caso da adaptação feita por Stéphane Heuet. De qualquer modo, se consideramos aceitável que o teatro e o cinema façam adaptações de romances, por qual motivo não estenderíamos a mesma aceitação aos quadrinhos?

* E mesmo a expressão texto/obra original não é pacífica. Não compreendo francês e, portanto, caso me interessasse, teria que ler a tradução de Em busca do tempo perdido. Mas em que medida a tradução modifica um texto/obra original desse tipo? Quase nada? Pouco? Muito? Discussão vasta, além do alcance deste blogueiro, porém.

BG de Hoje

Havia muita pabulagem em torno do L7. Diziam, por exemplo, que as integrantes da banda chegaram a arremessar absorventes íntimos  (usados) na plateia, em algumas apresentações. Deve ser lorota, mas não duvido muito não... Aqui no Brasil, o máximo que fizeram foi abaixar as calças na janela do ônibus na saída do show (isso foi no Hollywood Rock, em 1993). Bricks are heavy, terceiro disco do grupo, foi um dos CD's que mais ouvi na minha vida. Gosto de várias faixas, mas destaco Everglade.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

"Historinha"?... Faça-me o favor!



Cheguei a mencionar rapidamente, na penúltima postagem, meu interesse pelos quadrinhos. Hoje escreverei de forma mais detida sobre o assunto.

Não fui diferente de outros garotos aficionados por HQs de super-heróis. Colecionei durante muito tempo  (e juntava moeda por moeda para comprar) revistas da editora Abril repletas dos principais personagens da Marvel e da DC Comics - empresas, aliás, que dominavam (e ainda dominam) comercialmente o setor. Não vou mentir: quando lia uma história dos X-Men, por exemplo, ou do Conan* estava só atrás de entretenimento. Porém, mesmo a indústria cultural - representada pelas companhias norte-americanas já citadas - acabou percebendo que os leitores de quadrinhos não eram (e não são) os acéfalos que se costuma supor e passaram a lançar obras mais sofisticadas. Foi o caso das graphic novels. Algum(a) eventual leitor(a) talvez se lembre das obras-primas lançadas na segunda metade da década de 1980, como Batman, o cavaleiro das trevas, de Frank Miller e Watchmen, escrita pelo genial Alan Moore e desenhada por Dave Gibbons. Sem falar no fabuloso - e assustador -  mundo onírico criado por Neil Gaiman**.

Fiz todo esse preâmbulo para dizer uma obviedade (pelo menos no momento atual): a produção quadrinística não se restringe a revistinhas de super-heróis. E, claro, vai além da ideia infantilizada do gibi. Também não se resume às tirinhas eventualmente publicadas nos jornais. Certo, certo: tudo isso permanece sendo quadrinho. Há, entretanto, muito mais sendo feito.

Vejamos o caso do mangá Na prisão, de Kazuichi Hanawa*** Em 1994, o quadrinista japonês foi preso, acusado de porte ilegal de armas. Ao sair da cadeia, decidiu narrar sua experiência. Estamos diante de uma obra com muitas características do documentário, embora conserve atributos da ficção. Hanawa é meticuloso ao descrever as refeições servidas, os uniformes e a composição das celas, bem como a rotina altamente controlada do presídio.

Muitos que leram Na prisão ressaltaram "a total ausência do tom de denúncia", como observou o crítico literário Tomohide Kure (no prefácio da edição de que disponho). Não se trata de um elogio à detenção, mas tampouco o autor nos apresenta aquelas cenas típicas dos relatos da vida prisional, cheias de violência e crueldade.

É quase impossível ler o livro sem comparar a cadeia japonesa lá retratada com os inumanos presídios brasileiros. Ainda assim, a rigidez de comportamento lá exigida da parte dos prisioneiros chega a exasperar. A esse respeito, vale ler o capítulo A barreira do "por favor". Os detentos trabalham numa fábrica dentro da penitenciária. Não podem olhar para os lados, conversar ou deixar o posto sem autorização de um oficial (até para ir ao banheiro). Há regras expressas de como se deslocar pelos corredores e que posturas assumir diante dos carcereiros. Qualquer descumprimento implica punições. Para dirigir-se aos oficiais, o detento precisa sempre dizer "por favor" - que significa reconhecimento da autoridade, mais do que gesto de gentileza  - até para apanhar uma borracha que caiu no chão acidentalmente. Apesar do relativo conforto da cadeia japonesa, prisões nunca vão deixar de ser lugares opressivos.

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Até hoje, por incrível que pareça, encontramos pessoas que se referem aos quadrinhos, no geral, como "aquelas historinhas" para "a garotada", num tom depreciativo, como se estes fossem a mais rematada bobagem. "Historinha"?... Faça-me o favor! Trabalhos como Na prisão, de Kazuichi Hanawa são tão valiosos como outras narrativas - literárias ou cinematográficas - que já trataram desse tema.

Na próxima postagem, escrevo sobre a adaptação para quadrinhos de Em busca do tempo perdido.

* Conan é uma criação do escritor Robert E. Howard nos anos 1930. Posteriormente, o personagem foi revivido em novas histórias  produzidas por roteiristas e desenhistas da Marvel.

** Para quem não conhece esse autor, é bom esclarecer que as histórias publicadas em Sandman - trabalho mais conhecido de Neil Gaiman - não focalizavam super-heróis, embora ele também tenha trabalhos nessa linha.

*** HANAWA, Kazuichi. Na prisão. São Paulo: Conrad, 2005 [tradução de Drik Sada]

BG de Hoje

Num país com tantas cantoras talentosas fica difícil, às vezes, ouvir com a devida atenção algumas delas. CÉU é das artistas que tenho ouvido com o maior cuidado, em meio a tanta gente boa. Visgo de jaca, presente - como faixa-bônus - no segundo disco dela (Vagarosa, 2009), é uma das minhas preferidas. OBS: Essa canção já havia sido gravada pelo Martinho da Vila tempos atrás. Nada contra o sambista de Vila Isabel, mas a versão da cantora paulistana ficou muito melhor.

terça-feira, 16 de abril de 2013

...4, 5, 6, 7...


Finalmente volto a escrever sobre o gênero literário que me é mais próximo (pois, por circunstâncias profissionais, é aquele com que lido quase diariamente): a Literatura Infantojuvenil. Destaco, nesta postagem, quatro títulos voltados mais para crianças, sobretudo as de menor idade. NOTA: O título desta postagem, eventual leitor(a), está ligado a outra já publicada - cujo título era 1, 2, 3... . Cada vez que tratar dessa temática, mencionando mais de um livro, seguirei essa sequência/enumeração. 

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4) Gosto do trabalho de Luiz Raul Machado desde que li Fulustreca, há mais de 10 anos. Cartão-Postal (Editora DCL, 2010) é um de seus melhores textos. Uma observação: este livro já havia sido publicado em 1996 pela Formato. Mas as ilustrações de André Neves e o projeto gráfico da nova edição são maravilhosos. Aliás, Neves vem se tornando um dos nomes mais destacados da ilustração brasileira. Mas falemos da história. Prosa com pitadas de poesia, lança mão da intertextualidade como poucas. Uma história que trata, a seu modo, do nosso desejo e necessidade de comunicação e do quanto é bom ter alguém que queira nos ouvir. De um lado, o menino que podia "contar suas grandes tristezas e pequenas alegrias. Contava coisas de estudo, coisas de soldadinho de chumbo e índios, coisas que a fada sabia de cor e salteado, mas escutava com prazer"; e do outro, a fada, que "podia contar as tristezas e alegrias dela. Contava coisas de peixes, de pedras e plantas, tudo o que o menino conhecia de sobra, mas ouvia com prazer". Cartão-Postal é um livro muito bonito.

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5) Um sujeito sem qualidades, escrito e ilustrado por Jean-Claude R. Alphen (Editora Scipione, 2010) é um livro esquisito, achei. E isso não é um defeito. Debocha das pessoas que se julgam sensíveis e com "alma de artista" (ou seja, nós mesmos, os leitores) valendo-se de um monstro solitário, preguiçoso e chato, chamado Arnaldo. Por que acho o livro esquisito? Não sei explicar. Mas é muito bom.

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6) Um dos melhores livros de imagem que conheço é Ribit, do artista plástico mexicano Juan Gedovius (Editora Comboio de Corda, 2009). A ausência de cenário - todos os personagens aparecem num fundo branco - ajudam a destacar as reações de cada um ao trocar seus pertences com a rã vermelha do título. Os leitores têm de ficar atentos ao traço vigoroso de Gedovius, pois cada reação do personagem diz muito sobre este, mesmo na ausência da palavra escrita (é o caso da bruxa carrancuda que ganha uma pena e cede um gato desmilinguido). NOTA: Outro livro sensacional desse mesmo artista é O mais gigante, mas, nesse caso, é um texto escrito e ilustrado.
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7) A Literatura Infantil deve evitar certos temas? Não, parece ser a resposta da escritora e ilustradora belga Kitty Crowther em Meu amigo Jim (Editora Cosac Naify, 2007). Não é difícil perceber nos personagens centrais a homoafetividade. Jim, gaivota branca, conhece Jack, um melro negro (e, de certo modo, a autora também tematiza a discriminação racial); os dois têm dificuldade para serem aceitos no grupo em que decidem viver. A narrativa é muito bem conduzida e a representação alegórica, valendo-se de animais - praxe desse gênero literário - não sai tão forçada.

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A propósito, como falei sobre leitura nas postagens anteriores,  penso que vale recomendar o poema Antes de ler, de Marcos Nunes, que sugere a postura desarmada àquele que se coloca diante de um livro.

BG de Hoje

Indo para o trabalho, desanimado por saber que "enfrentaria" uma turma de estudantes terríveis, fui surpreendido positivamente pela programação insossa e repetitiva das emissoras de rádio aqui de BH, ao ouvir numa delas a bela canção Tomara, de ALCEU VALENÇA.


quinta-feira, 11 de abril de 2013

O que se esconde num pedido de sugestão de leitura?

Raramente - muito raramente - sugiro a leitura de um livro a alguém. Isso é estranho (ou, pior, talvez revele um desleixo) porque trabalho em bibliotecas. Escolares, mais precisamente. Acho que devo me explicar.

Quando opto por apresentar aos estudantes histórias ou obras pré-selecionadas durante a "hora do conto", estou, obviamente, sugerindo materiais de leitura específicos. Da mesma maneira, quando deixo em evidência ou exponho no espaço da biblioteca certos títulos ao invés de outros, forneço indicações aos leitores. Ora, este blog acaba  também sugerindo livros porque geralmente registro aqui impressões de leitura a partir de publicações que me interessam. E, frequentemente, nas conversas que mantenho com outras pessoas, dentro e fora do trabalho, menciono ou cito textos - um outro modo de fazer sugestões.

Ao dizer que poucas vezes indico um livro a alguém, estou me referindo apenas àquelas situações, bastante comuns, nas quais o sujeito - criança, jovem ou adulto - me solicita, diretamente:

A) Um "bom" livro
B) Um livro "legal"
C) Um livro "interessante"

Nesses momentos, vejo-me como um atendente de lanchonete fast food, diante de um freguês sem fome, mas que decidiu enganar o estômago e quer opções. De preferência, apetecíveis e a bom preço. Quanto ao valor nutritivo...

No caso (A), buscam-se enredos mirabolantes - mas não desafiadores a ponto de serem considerados "complexos" - que "prendam" o leitor (como se  diz por aí); em (B), o que se quer é um passatempo ligeiro, passagens cômicas ou trivialidades de almanaque; por último, o livro "interessante" de (C) será aquele (geralmente não ficção) destinado a incrementar o bate-papo no boteco ou no almoço de família do fim de semana. Nos três pedidos, o solicitante está atrás de entretenimento. Sem mais. NOTA: Muito raramente há pedidos por livros de poesia. Isso será assunto noutra postagem.

Nada tenho contra a leitura com fins de entretenimento, vale salientar. Durante toda a minha infância e início da adolescência, fui consumidor voraz de histórias em quadrinhos, com pouquíssimas incursões ao terreno das publicações literárias propriamente ditas*. Os indivíduos, sempre que possível, devem buscar os materiais de leitura que atendam ao seu desejo e às suas expectativas nos momentos específicos de sua formação como leitor. Isso é um direito. Ponto.

Entretanto, para alguns militantes da leitura - sobretudo da leitura  literária, como é meu caso - os textos a serem recomendados ou sugeridos, ainda mais no ambiente escolar, são aqueles em que se pode reconhecer uma intencionalidade artística** que vá além do mero entretenimento. A Literatura, não custa lembrar, é também uma forma de saber. E se queremos nos tornar progressivamente menos ignorantes, não é recomendável permanecermos circunscritos ao universo dos nossos desejos e interesses imediatos. Não pretendo indicar textos que nada exijam de quem os lê (se não for assim, pra que escola?). Seria profissionalmente depreciativo, mesmo trabalhando em unidades públicas de educação básica (com todas as carências e problemas acumulados dos quais já estamos carecas de saber).

Hoje não sou apenas aquele leitor de quadrinhos. Meu repertório de textos se modificou e se ampliou, como acontece com todos os que se dedicam à atividade da leitura. Se alguém me pede uma sugestão de livro, ainda mais dentro das situações anteriormente mencionadas, prefiro dizer que só leio "coisas chatas" hoje em dia (o que é verdade a maior parte do tempo) e não tenho nada agradável a indicar. Porém, encontro outros expedientes para "fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero", como escreve Manuel Bandeira***. Poucas vezes funcionam, mas insisto mesmo assim. Continuo pensando que não nos tornamos leitores melhores se permanecermos somente entretidos.

* É claro que os quadrinhos conquistaram, legitimamente, o status de manifestação artística, como a fotografia e o cinema. Entretanto, durante bastante tempo, foram malvistos por muita gente (inclusive no meio escolar). Naquela época de garoto, os quadrinhos tinham para mim só o caráter de diversão. Ainda tem, mas tornaram-se mais do que isso, claro.

** A expressão intencionalidade artística, reconheço, é vaga e carece de  formulação mais clara. É cabível perguntar: o que é isso? Quem atribui a intenção: o autor ou o leitor? Quais são os elementos do texto - supostamente literário - passíveis de permitir o reconhecimento de tal coisa? Como quero voltar a esse tema noutra oportunidade, deixo a definição para outra postagem.

*** BANDEIRA, Manuel. Nova poética: In: ____________. Estrela da vida inteira. 20 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. p. 205 [Este poema foi originalmente publicado em 1948, integrando o livro Belo Belo, dentro das Poesias completas lançadas naquele ano].

BG de Hoje

Tem dia em que você pensa 126 vezes antes de se levantar da cama e encarar o leão que está lá fora. Algumas canções ajudam a tomar a coragem necessária. Uma delas, sem dúvida, é o clássico Baba O'Riley, do WHO.


quarta-feira, 3 de abril de 2013

Formar leitores está longe de ser uma missão fácil



O último número da revista Pátio (ensino médio, profissional e tecnológico), em seus artigos principais e na entrevista, destacou a relação do jovem com a leitura. O texto que mais me chamou atenção foi o de Luiz Percival Leme Britto, atualmente professor na Universidade Federal do Oeste do Pará, articulista cujos pontos de vista costumam me interessar pois escapam da arenga habitual do "pedagogês".

Em A liberdade, a crítica e a criatividade na formação do leitor *, Leme Britto trata de algo que o "incomoda sobremaneira": a vagueza com que se empregam os termos livre, autônomo, crítico e criativo nas tentativas de definir o tipo de leitor que, supostamente, cabe à escola formar.

Para o articulista,

"A escola é lugar próprio de aprender, e de aprender aquilo que não se aprende no trato da vida cotidiana, assim como ler e escrever. Está bem que se pode aprender a ler e escrever fora da escola, mas é na escola que esses conhecimentos e outros, próprios da produção intelectual organizada, encontram espaço para expandir-se e sistematizar-se, principalmente quando se enfrentam temas e conteúdos que transcendam o senso comum".

Por isso, ainda segundo Leme Britto, deveria existir na escola "um processo distinto de trabalho, uma maneira mais disciplinada de pensar, analisar, avaliar". Mas é isso que percebemos cotidianamente no espaço escolar?

Na mesma edição da Pátio, mais à frente, o psicólogo português José Morais diz na entrevista** que

"Se a escola ' mata ' o gosto pela leitura, não é porque propõe leituras distanciadas da realidade do jovem. É porque não há, prévia ou paralelamente, o esforço necessário para mostrar-lhe que a realidade que não é ainda a dele merece ser conhecida. A ideia de se ater àquilo que é a realidade já familiar é a própria negação do espírito de educação e de descoberta".

Permita-me uma digressão. Penso que, a partir dos anos 1990, graças às modas pedagógicas que frequentemente se sucedem como epidemias no meio educacional, visões reducionistas do construtivismo (oriundo da epistemologia genética de J. Piaget) e do sociointeracionismo (derivado, principalmente, da obra de L. S. Vygotsky) superdimensionaram o peso que caberia à "realidade do estudante" no modo como a escola deve funcionar em sua condição de repositório do conhecimento historicamente acumulado (sem falar nas abordagens ingênuas, em tom quase hagiolátrico, do pensamento de Paulo Freire, que vêm desde os anos 1960...). Essas visões superficiais e ingênuas são partilhadas por acadêmicos nos cursos de Pedagogia e, por incrível que pareça, por alguns ocupantes de cargos nas estruturas das Secretarias de Educação por aí afora. Em nome da defesa da "realidade do estudante" barateou-se a composição dos currículos e solapou-se ainda mais a combalida autoridade dos professores***. Para piorar, o ethos do esforço parece não mais fazer parte das "competências" a serem inculcadas nos estudantes, nem estes têm o costume de manifestá-lo.

Retornemos, entretanto, ao artigo citado no início da postagem. Leme Britto procura demonstrar que valores tais como liberdade, autonomia, crítica e criatividade não são "algo que se tem por decreto"; não são pontos de partida, mas de chegada. Devem ser conquistados e isso só é possível por meio da(s) experiência(s) vivenciada(s) pelo leitor/estudante. E como a escola participa (ou deveria participar) no desenvolvimento da(s) experiência(s) do leitor/estudante?

"Uma maneira concreta de formar o leitor crítico" - sugere Leme Britto - "de modo que tenha significado a afirmação de que o ' sentido da leitura ' resulta da experiência do leitor, é investir em situações em que aflore a necessidade de criar, buscar, criticar. O desafio da educação escolar está exatamente em ampliar as possibilidades de experiência, desafiando o aluno a ' parar para pensar ', ' a suspender o automatismo da ação ', a reconhecer-se e assumir-se como sujeito da ação. Esse movimento de afastamento do imediato e de recusa do deixar-se ir tampouco é algo que se manifesta espontaneamente".


Dizer que é uma maneira concreta não quer dizer que é simples de ser feito. "Parar para pensar" significa ser capaz de descolar-se, durante a reflexão, da realidade mais imediata em que se está imerso. Entretanto, as escolas (principalmente públicas) não estão conseguindo contribuir para a "suspensão do automatismo da ação", pois estão presas e imobilizadas na tal "realidade do estudante" e estão abandonando "a produção intelectual organizada", preferindo submergir na reprodução do senso comum.

A prática social da leitura é cada vez mais restrita (não estou falando da leitura vapt-vupt nas telas de celular e computadores). Pensando no desafio apontado por Luiz Percival Leme Britto, fica ainda mais evidente que formar leitores - verdadeiramente livres, autônomos, críticos e criativos - está muito longe de ser uma missão fácil. E duvido que a escola (pública básica) possa dar conta dela.
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* BRITTO, Luiz Percival Leme. A liberdade, a crítica e a criatividade na formação do leitor. Pátio - ensino médio, profissional e tecnológico, Porto Alegre, ano IV, n. 15, dez. 2012/fev. 2013. p. 14-17

** A missão de despertar o interesse pela leitura. Pátio - ensino médio, profissional e tecnológico, Porto Alegre, ano IV, n.15, dez. 2012/fev. 2013. p. 18-21

*** É bom esclarecer que estou usando a palavra autoridade num sentido mais próximo daquele empregado por Hannah Arendt em Entre o passado e o futuro, em que o termo não se define por associação a noções como mando ou coerção. mas que, além de estar ligada às qualificações específicas da profissão, "se assenta na responsabilidade que ele [professor] assume por este mundo. Face à criança, é como se ele fosse um representante de todos os habitantes adultos, apontando os detalhes e dizendo à criança - Isso é o nosso mundo".


BG de Hoje

Entre as bandas que apareceram no boom do rock brasileiro nos anos 1980, o CAMISA DE VÊNUS foi uma das menos badaladas. É certo que a postura frequentemente arrogante do frontman Marcelo Nova gerava certa antipatia e a opção do conjunto por um som mais rockabilly e punk não estava no cardápio dos obtusos programadores. Mesmo que o grupo baiano não tivesse feito nenhuma outra coisa (e eles fizeram muito), já mereceria um lugar de honra em nossa música por ter gravado a excelente Deus, me dê grana.