segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Por que assistir Mr. Robot?


Na opinião de muita gente, junto com o novo milênio, inaugurou-se a Era de Ouro das séries de TV. 


Cabe uma digressão.

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No mês passado, disse aqui que as revistas e os jornais impressos foram engolidos pela internet. Pode-se mesmo considerá-los um tipo de mídia ultrapassada, diferentemente, porém, do rádio e dos livros de papel, os quais, se dependesse de alguns apressadinhos (pós)modernosos,  também já estariam condenados à lata de lixo da obsolescência. Mas e quanto à televisão?

Os constantes engarrafamentos do tráfego nas cidades talvez sejam suficientes para demonstrar que o rádio ainda tem seu lugar no mundo da comunicação: grande parte de seus ouvintes está preso no trânsito, indo ou voltando do trabalho. O rádio também é bastante apreciado pelos milhões de indivíduos que moram sozinhos (como este blogueiro); às vezes, sintonizamos em determinada estação apenas para ouvir outra voz humana enquanto preparamos uma refeição, lavamos roupa, etc. Além disso, mesmo nos últimos tempos, quando a programação musical deixou de ser o carro-chefe das emissoras, o rádio sempre funcionou como um repositório de boas dicas e sugestões, um lugar de aprendizado inclusive. As grandes empresas do setor, claro, só reproduzem a hit parade internacional, os artistas jabazeiros e o rebotalho da massificação sonora. Mas persistem redutos interessados na qualidade e, dessa maneira, não estupidificam a audiência (nesses casos, a web é uma benção, pois possibilita iniciativas esplêndidas, como a Rádio Vozes, comandada pela incansável jornalista Patrícia Palumbo).

Os livros de papel, por sua vez, mantêm-se (pelo menos por enquanto) distantes da ameaça de extinção - chegou-se a cogitar que eles seriam rapidamente desbancados por suas versões eletrônicas. Após rápido crescimento, superando inclusive, no valor total das vendas, seus similares tradicionais em 2011, o segmento de e-books, contudo, começou a estagnar a partir de 2015. Livros de papel continuam respondendo pela maior fatia do mercado editorial (por quanto tempo, porém, não se sabe). Isso acontece porque muitos leitores (este blogueiro, inclusive) continuam a preferi-los - por variados motivos, desde o amigável formato e familiar manuseio até um certo apego fetichista e nostálgico. No caso dos livros, entretanto, é forçoso reconhecer que eles não são um produto tão desejado. Mas isso tem muito menos a ver com sua materialidade e mais com o tipo de sociedade imbecilizada na qual vivemos.

A televisão também parecia uma mídia irremediavelmente condenada, uma vez que a web - acessada através de dispositivos móveis, sempre à mão - pode fornecer uma variedade de conteúdos imensamente mais ampla que o cardápio insalubre oferecido em boa parte dos canais (tanto abertos quanto por assinatura) ¹. Talvez como estratégia para responder às baixas audiências, os executivos e produtores deixaram um pouco de lado o investimento no quanto-pior-ou-mais-degradante-melhor - ainda dominante, infelizmente, no modelo broadcast - e procuraram sofisticar os produtos exibidos, seduzindo parcelas de espectadores mais exigentes que evitavam esse veículo. Talvez também seja essa uma das explicações possíveis para o atual boom dos (bons) seriados televisivos. NOTA ²: Embora a Netflix - empresa-chave do entretenimento na atualidade - opere online, por meio de streaming, sem depender de um quadro de horários fixos (como na TV convencional), a indução ao consumo proposta por ela é do tipo televisivo tal como estamos acostumados (até porque muitos de seus clientes assistem os programas de seu catálogo em telas grandes - e não num laptop ou tablet -, pachorrentamente aboletados no sofá, horas e horas a fio, graças aos muitos aparelhos  de TV disponíveis hoje com acesso à internet).

Voltemos agora ao assunto principal da postagem.

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Entre tantas excelentes séries, o(a) eventual leitor(a) provavelmente tem alguma preferida. No caso deste blogueiro, das mais recentes, a minha favorita é, de longe, Mr. Robot.

Exibida nos EUA pela USA Network e no Brasil pelo canal pago Space, Mr. Robot, segundo matéria publicada na revista Rolling Stone em julho deste ano, "came out of nowhere to dazzle the world last summer" ("Mr. Robot apareceu do nada para fascinar o mundo no verão passado")

Sam Esmail, criador da série e diretor de todos os episódios na segunda temporada,  disse, numa entrevista para a mesma publicação, ter tentado vender seu trabalho para as grandes emissoras de TV a cabo, mas ele suspeita que "executives were put off by the show's darkness and interiority (the main character is a mentally unstable, morphine-addicted loner who often cries himself to sleep), along the fact that  - as he heard more than once - 'people on keyboards aren't interesting' " ².

É curioso que os executivos tenham dito que "pessoas num teclado não são interessantes" - afinal, muitos indivíduos nesses tempos digitais não fazem outra coisa a não ser ficar longos períodos teclando e teclando... Mas é realmente surpreendente que alguém tão perturbado como Elliot Alderson, o personagem principal, possa ser tão eletrizante. Falemos sobre isso.

Interpretado brilhantemente pelo ator Rami Malek (que, merecidamente, venceu o Emmy como melhor ator de drama em 2016, além de ser indicado ao Golden Globe de melhor ator em série dramática nos dois últimos anos), Elliot Alderson sofre de depressão, transtorno de ansiedade social (conhecida como fobia social) e transtorno dissociativo de identidade (antigamente chamada de "dupla personalidade"). Na primeira temporada, vemo-lo trabalhando numa empresa de segurança cibernética, mas para nós o que importa é sua extraordinária atuação como hacker. Nos vários episódios de Mr. Robot, sempre ouvimos a voz de Elliot em off, às vezes falando consigo mesmo, noutras com seu alter-ego ou até dirigindo-se diretamente a nós, espectadores. Entre os pontos altos da série estão os monólogos do personagem central. Dois deles já entraram para os melhores momentos da narrativa televisiva em todos os tempos, na minha opinião.

Num destes, logo no primeiro episódio da primeira temporada, Elliot é perguntado (por sua psiquiatra, Krista): "What is it about society that disappoints you so much?" ("O que há com a sociedade que te desaponta tanto?"). A resposta é sublime (embora só os espectadores, e não a terapeuta, ouçam-na):

"Oh I don't know. Is it that we collectively thought Steve Jobs was a great man even when we knew he made billions off the backs of children? Or maybe it's that it feels like all our heroes are counterfeit; the world itself's just one big hoax? Spamming each other with our burning commentary of bullshit masquerading as insight, our social media faking as intimacy. Or is it that we voted for this? Not with our rigged elections, but with our things, our property, our money. I'm not saying anything new. We all know why we do this, not because Hunger Games books make us happy but because we wanna be sedated. Because it's painful not to pretend, because we're cowards. 
Fuck Society." ³
(pode-se encontrar essa cena no Youtube: https://youtu.be/rNfzbPAD8FE)

Noutro, agora no segundo episódio da segunda temporada, Elliot detona com a religião, num desses grupos de ajuda (que não ajudam em nada):

"Is that what God does? He helps? Tell me, why didn’t God help my innocent friend who died for no reason while the guilty ran free? Okay. Fine. Forget the one-offs. How about the countless wars declared in His name? Okay. Fine. Let’s skip the random, meaningless murder for a second, shall we? How about the racist, sexist, phobia soup we’ve all been drowning in because of Him? And I’m not just talking about Jesus. I’m talking about all organized religion. Exclusive groups created to manage control. A dealer getting people hooked on the drug of hope. His followers, nothing but addicts who want their hit of bullshit to keep their dopamine of ignorance. Addicts. Afraid to believe the truth. That there’s no order. There’s no power. That all religions are just metastasizing mind worms, meant to divide us so it’s easier to rule us by the charlatans that wanna run us. All we are to them are paying fanboys of their poorly-written sci-fi franchise. If I don’t listen to my imaginary friend, why the fuck should I listen to yours? People think their worship is some key to happiness. That’s just how He owns you. Even I’m not crazy enough to believe that distortion of reality.


So fuck God. He’s not a good enough scapegoat for me".

(pode-se encontrar também essa cena no Youtube: https://youtu.be/UwDrc2YIRQo)

Há um pouco de inconformismo adolescente na série (meio ingênuo e bobo às vezes, tenho que admitir), mas não é fácil transformar em atração de TV uma história com forte mensagem anarquista e - sob certo ângulo - anticapitalista sem fazer algumas concessões ao público médio. Mr. Robot nos lembra o tempo todo que os grandes inimigos da humanidade não são aliens assustadores, zumbis asquerosos ou supervilões mutantes: neste momento, nosso planeta é ameaçado pelas megacorporações e sua voracidade interminável por lucro e poder. Além disso, a série nos dá uma representação bem realista da ação dos hackers e como somos vulneráveis em nosso uso rotineiro da web. Talvez por isso, o ex-analista da CIA/NSA, Edward Snowden, tenha elogiado a atração.

Todavia, por mais elementos sensacionais contidos na série - da trilha sonora cheia de canções legais aos roteiros inteligentes, dos enquadramentos de câmera incomuns para um programa de televisão às muitas citações cinematográficas empregadas na composição (Clube da Luta, Matrix, V de Vingança, Taxi Driver, entre outros filmes) -, Mr. Robot, mais do que as questões e problemas relacionados com a tecnologia, é brilhante por tematizar um dos grandes males contemporâneos: a solidão. Na matéria da revista Rolling Stone mencionada acima (Mr. Robot: How TV's hit hack drama keeps getting better), o jornalista Rob Sheffield escreve:

"Ultimately, Mr. Robot isn't really a fable about technology — it's about solitude, a drug that can play hideous tricks on the brain. Elliott knows there's a gap between what he thinks and what really exists out there in the world — it is the drama that happens in the no man's land between the two zones. For Elliott, computer code is a language he's mastered to insulate himself from other people, and it served him well up to a point; the question for him is whether he can get beyond that point or whether he's doomed to remain a wounded adolescent, trapped inside his own head forever. All the high-tech splendors of the modern world are just another seductive reason for him to stay home and zone out alone — which is where he gets into trouble. And the reason Mr. Robot hits home is that it's hardly just one guy's problem. There's a little Mr. Robot in everyone".

A misantropia de Elliot Anderson (a ponto de dominar os códigos da linguagem computacional para não ter que interagir com pessoas de carne e osso), sua permanente sensação de não pertencer a lugar nenhum, sua fragilidade emocional, tudo isso faz dele um sujeito facilmente encontrável nos dias atuais. Ele é o (anti) herói que mais combina com nossos tempos.


O blog entra em recesso a partir de hoje e retornará, espero, no dia 02/02/2017. Apesar de não receber retorno algum - neste ano apenas duas pessoas contataram-me por e-mail dispostas a discutir algumas das postagens e nem mesmo meus conhecidos ou familiares acompanham essa joça - o Besta Quadrada é uma das poucas coisas que ainda me dão prazer. Por isso insistirei com ele enquanto for possível. Ao(à) eventual leitor(a), desejo boas festas e um 2017 que seja pelo menos suportável. Ah, antes que me esqueça: FORA TEMER!

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¹ Se as pessoas, em geral, estão fazendo ou não um uso proveitoso do seu acesso à internet já é uma outra discussão...

² [tradução aproximada: "executivos relutaram por causa da escuridão e interioridade do programa (o personagem principal é um solitário viciado em morfina, mentalmente instável, que frequentemente chora até pegar no sono), junto com o fato de que - como ele ouviu mais de uma vez - 'pessoas num teclado não são interessantes' "]

³ [tradução aproximada: "Oh, eu não sei. [Será por que] nós, coletivamente, pensamos que Steve Jobs foi um grande homem quando nós sabemos que ele ganhou bilhões explorando [o trabalho de] crianças? Ou talvez [por que] sente-se como se todos os nossos heróis fossem falsificados; o próprio mundo é apenas uma grande farsa? Entupindo-nos uns aos outros com nossos comentários incendiários de bobagem, mascarando[-os] como introspecção, nossa mídia social passando[-se] por intimidade. Ou [será porque] nós votamos nisso? Não com nossas eleições arranjadas, mas com nossas coisas, nossa propriedade, nosso dinheiro. Não estou dizendo nada novo. Nós todos sabemos porque fazemos isso. Não porque livros como Jogos Vorazes nos fazem felizes, mas porque queremos estar sedados, porque é doloroso não fingir, porque nós somos covardes. Foda-se a sociedade".]

[tradução aproximada: "É isso que Deus faz? Ele ajuda? Diga-me, por que Deus não ajudou meu amigo inocente que morreu sem motivo enquanto o culpado escapou livre? OK. Tudo bem. Esqueça os casos isolados. E quanto as inúmeras guerras declaradas em nome Dele? OK. Tudo bem. Vamos pular o assassinato sem sentido e aleatório por um instante, podemos? Que tal toda a sopa de fobia, racismo e machismo na qual estamos nos afogando por causa Dele? E não estou falando apenas de Jesus. Estou falando sobre toda a religião organizada. Grupos exclusivos criados para manter o controle. Um traficante mantendo as pessoas fisgadas numa droga de esperança. Seus seguidores, nada mais do que viciados que querem sua dose de dopamina da ignorância. Viciados. Com medo de acreditar na verdade. Que não há ordem. Não há poder. Que todas as religiões são apenas vermes espalhando um câncer na mente, destinadas a nos dividir, pois é mais fácil para nos controlar através de charlatães que querem mandar em nós. Tudo o que somos para eles é apenas tietes pagantes da sua franquia de ficção científica mal escrita. Se eu não escuto o meu amigo imaginário, por que deveria escutar a porra do seu? As pessoas pensam que a adoração é alguma chave para a felicidade. Isso é apenas o modo como Ele torna-se seu dono. Mesmo eu não estou tão louco assim para acreditar nessa distorção da realidade. Então, Deus que se foda. Ele não é um bode expiatório bom o suficiente pra mim"]

[tradução aproximada: "Por fim, Mr. Robot não é realmente uma fábula sobre tecnologia - é sobre solidão, uma droga que pode fazer horríveis truques no cérebro. Elliot sabe que há uma distância entre o que ele pensa e o que existe lá fora no mundo - é o drama que acontece na terra de ninguém entre duas zonas. Para Elliot, o código de computador é uma linguagem que ele dominou para isolar-se das outras pessoas, e ela serviu bem a ele até certo ponto: a questão é se ele consegue ir além desse ponto ou se ele está condenado a ser um adolescente ferido, preso dentro da sua própria cabeça para sempre. Todo o esplendor high-tech do mundo moderno é apenas outro motivo para ele ficar em casa, esquecido e só - que é onde ele se encrenca. E o motivo de Mr. Robot causar tanto efeito é que isso dificilmente é problema de apenas um cara. Há um pequeno Mr. Robot em cada um".]

BG de Hoje

Aqui no blog não costumo seguir critérios para escolher os BGs. Boa parte das vezes a canção incluída não tem nada a ver com o que foi escrito na postagem: é só uma música de que gosto muito ou, por acaso, ouvi pela manhã antes de sair pro trabalho, lembrei dela por um motivo qualquer, etc. No caso de hoje, porém, Are you lost in the world like me?, do MOBY, acompanhada dessa animação sensacional do STEVE CUTTS (o blog do desenhista e artista gráfico está entre os recomendados aqui da casa) é perfeita para estar junto a um texto sobre Mr. Robot.
 

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

O desaparecimento da esfera pública: lendo A condição humana, de Hannah Arendt (III)


"É da natureza do início que se comece algo novo, algo que não se poderia esperar de coisa alguma que tenha ocorrido antes. Esse caráter de surpreendente impresciência é inerente a todo início e a toda origem. Assim, a origem da vida a partir da matéria inorgânica é uma infinita improbabilidade dos processos inorgânicos, como o é o surgimento da Terra, do ponto de vista dos processos do universo, ou a evolução da vida humana a partir da vida animal. O novo sempre acontece em oposição à esmagadora possibilidade das leis estatísticas e à probabilidade que, para todos os fins práticos e cotidianos, equivale à certeza: assim, o novo sempre aparece na forma de um milagre. O fato de o homem ser capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável"

Hannah Arendt - A condição humana

 
Até agora, nas duas postagens referentes ao livro de Hannah Arendt (disponíveis aqui e aqui), vimos que, a partir da distinção entre trabalho, obra e ação, a autora situa a condição de possibilidade da liberdade na última (os membros das sociedades modernas, todavia, encontram-se quase que inteiramente absorvidos pelo primeiro e conformam-se, na maioria dos casos, apenas com o desfrute dos objetos fabricados graças à segunda). Vimos também que a hipertrofia do trabalho fez com que a vida privada dos indivíduos sobrepujasse o domínio público, tornando-nos menos responsáveis e comprometidos com o mundo comum do qual todos somos parte. Uma vez que os ideais de conforto e saciedade (apenas para mim e para aqueles pertencentes a meu círculo privado, bem entendido) passaram a ser a única meta buscada pelos indivíduos em sociedade, terminei o último texto perguntado-me de onde poderiam vir outros ideais, orientadores de gestos e atitudes não-privativas, relacionados com o bem público e com a política para além de seu sentido ordinário (concebida em sentido mais amplo, a política não se reduz às tecnicalidades da administração estatal ou ao preenchimento de cargos na burocracia governamental através de eleições periódicas, como estamos bovinamente acostumados; a política deveria "inspirar os homens a ousarem o extraordinário", diria a pensadora alemã)

A condição humana não fornece uma resposta direta a esse questionamento, mas indica de quem se poderia esperar a modelagem desses outros ideais: os novos seres humanos a nascer.

Segundo Hannah Arendt ¹, "cada homem é único, de sorte que a cada nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo". Cada indivíduo, ao ingressar na humanidade, procurará, em sua trajetória de vida, responder a pergunta fundamental: quem é você?. Para Arendt,  "essa revelação de quem alguém é está implícita tanto em suas palavras quanto em seus feitos", Nessa procura, os seres humanos agem: colocam-se (inclusive fisicamente, posicionando seus corpos) no espaço público, dão-se a ver, buscam ser reconhecidos como pertencentes e merecedores de ocupar o mesmo domínio comum a todos e, desse modo, possibilitar a formação do espaço-entre - intangível, mas não irreal - da teia das relações humanas. Tais ações, porém (e isso é importantíssimo), pouco significariam se ocorressem na ausência discursiva. Como afirma a filósofa,

"desacompanhada do discurso, a ação perderia não só o seu caráter revelador, como, e pelo mesmo motivo, o seu sujeito, por assim dizer: em lugar de homens que agem teríamos robôs executores a realizar coisas que permaneceriam humanamente incompreensíveis. A ação muda deixaria de ser ação, pois não haveria mais um ator; e o ator, realizador de feitos, só é possível se for, ao mesmo tempo, o pronunciador de palavras. A ação que ele inicia é humanamente revelada pela palavra, e embora seu ato possa ser percebido em seu aparecimento físico bruto, sem acompanhamento verbal, só se torna relevante por meio da palavra na qual ele se identifica como o ator, anuncia o que faz, fez e pretende fazer".

É na esfera pública, no espaço-entre, que os seres humanos vivenciam suas estórias (a autora usa em seu texto o termo inglês story, diferente de history). Para o ator - ou seja, o indivíduo empenhado em determinada ação - a significação completa de seus atos (e, portanto, das estórias em que figura) lhe escapa. O resultado das grandes ações políticas, já dissemos, são imprevisíveis. "A ação só se revela plenamente para o contador da estória [storyteller], ou seja, para o olhar retrospectivo do historiador, que realmente sempre soube melhor o que aconteceu do que os próprios participantes", escreve ela.

Porém, como o significado da ação e do discurso - "as mais altas atividades do domínio público", nas palavras de Arendt - reside em seu "próprio cometimento, e não em sua motivação ou em seu resultado", as sociedades modernas foram progressivamente desistindo da política em favor dos benefícios (materializados, pode-se dizer) provenientes do trabalho e da obra,

"Preocupada desde cedo com produtos tangíveis e lucros demonstráveis, e mais tarde obcecada com o funcionamento suave e com a sociabilidade, a idade moderna não foi a primeira a denunciar a ociosidade da ação e do discurso, em particular, e da política em geral. O exaspero ante a tripla frustração da ação - a imprevisibilidade dos resultados, a irreversibilidade do processo e o anonimato dos autores - é quase tão antigo quanto a história escrita [...] Essa tentativa de substituir a ação pela fabricação é visível em todos os argumentos contra a 'democracia', os quais, por mais consistentes e razoáveis que sejam, sempre se transformam em argumentos contra os elementos essenciais da política".
Se houver alguma maneira de resgatar o valor da politica, é nos seres humanos vindouros que se deve apostar.

Num artigo publicado na revista Filosofia Ciência e Vida ², Vitor Bartoletti Sartori  nos lembra que Hannah Arendt, ao longo de seu livro,

"destaca que vivemos em um mundo em que a todo momento são acrescidas novas possibilidades em virtude do simples fato de novos indivíduos, sem vínculos com o mundo presente, serem trazidos ao convívio social. Nesse sentido, em diálogo com Agostinho de Hipona (354- 430), a autora de A condição humana aponta que, pelo simples fato de diariamente haver nascimentos de indivíduos únicos, existe a possibilidade do advento de algo extraordinário. 
Nesse sentido, eles não devem, assim, se voltar às suas potencialidades mais autênticas no ser-para-a-morte de Martin Heidegger (1889-1976) - devem mirar cada nascimento com admiração única. Se o autor de Ser e tempo enfatiza a finitude da vida e dos indivíduos configurados enquanto uma existência concreta, um ser-aí, que se conforma enquanto ser-no-mundo, a autora alemã [...] liga a vida humana finita ao dom da vida, ao dom de poder trazer à realidade efetiva do mundo um novo ente de características únicas, que poderiam, no limite, dar ensejo à mudança, a algo como um novo começo para a humanidade".

E Sartori acrescenta mais adiante:

"Arendt liga o nascimento ao extraordinário, defendendo que cada nascimento é, em verdade, um grande 'acontecimento' (termo que apropria de Heidegger, diga-se de passagem), ao contrário do que se daria em seu mestre, que liga a autenticidade, com as devidas mediações, à morte, e não ao nascimento".

O(a) eventual leitor(a) talvez se lembre de que, na primeira postagem desta série sobre A condição humana, registrei que há constantes referências a Jesus Cristo no livro da pensadora alemã. Apesar da perspectiva secular assumida pela autora neste trabalho, entende-se, dada a influência do cristianismo na formação das sociedades ocidentais, o porquê das menções à figura basilar dessa religião. E que mito seria mais adequado do que o nascimento de Jesus para ilustrar o quanto a natalidade pode ser extraordinária?

Não se tem garantia alguma de que novos indivíduos serão capazes de estabelecer um domínio público do mundo, significativo e aberto a todos os seres humanos. Para ser sincero, não ponho confiança alguma nisso. A humanidade, entretanto, sempre pode surpreender - para o pior, mas também para o melhor.

Em Entre o passado e o futuro ³, livro publicado antes de A condição humana, Arendt  já escrevera:

"A história, em contraposição com a natureza, é repleta de eventos; aqui, o milagre do acidente e da infinita improbabilidade ocorre com tanta frequência que parece estranho até mesmo falar de milagres. Mas o motivo dessa frequência está simplesmente no fato de que os processos históricos são criados e constantemente interrompidos pela iniciativa humana, pelo initium que é o homem enquanto ser que age. Não é, pois, nem um pouco supersticioso, e até mesmo um aviso de realismo, procurar pelo imprevisível e pelo impredizível, estar preparado para quando vierem e esperar 'milagres' na dimensão da política. E, com quanto mais força penderem os pratos da balança em favor do desastre, mais miraculoso parecerá o ato que resulta na liberdade, pois é o desastre e não a salvação que acontece sempre automaticamente e que parece sempre portanto irresistível. 
Objetivamente, isto é, vendo do lado de fora e sem levar em conta que o homem é um início e um inciador, as possibilidades de que o amanhã seja como o hoje são sempre esmagadoras. Não tão esmagadoras, é verdade, mas quase tanto como as possibilidades de que não surgisse nunca uma Terra dentre as ocorrências cósmicas, de que nenhuma vida se desenvolvesse a partir de processos inorgânicos, e de que não emergisse homem algum da evolução da vida animal. A diferença decisiva entre as 'infinitas improbabilidades' sobre as quais se baseia a realidade de nossa vida terrena e o caráter miraculoso inerente aos eventos que estabelecem a realidade histórica está em que, na dimensão humana, conhecemos o autor dos 'milagres'. São homens que os realizam - homens que, por terem recebido o dúplice dom da liberdade e da ação, podem estabelecer uma realidade que lhes pertence de direito".

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Penso que não seria adequado encerrar esta série sem pelos menos apresentar uma crítica à Hannah Arendt.

Como já havia dito na primeira postagem, a autora alemã ataca vários pontos do pensamento marxista, entre estes a paradoxal ausência de uma reflexão mais aprofundada, na obra de Marx, sobre como se formariam comunidades políticas dentro do comunismo. O ensaísta e crítico literário Marshall Berman, no excepcional livro Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade , faz o seguinte comentário a esse respeito:

"Essa crítica a Marx levanta um autêntico e urgente problema humano. Entretanto, Arendt não obtém resultados melhores que os de Marx na sua tentativa de resolvê-lo. Aqui [n'A condição humana], como em muitos de seus livros, tece uma esplêndida retórica em torno da vida e ação públicas, mas não deixa claro em que consistem essa vida e essa ação - salvo a ideia de que a vida política não inclui as atividades cotidianas das pessoas, seu trabalho e suas relações de produção. (Essas são atribuídas aos 'cuidados domésticos', um âmbito subpolítico, que Arendt considera como desprovido da capacidade de criar valores humanos). Ela nunca esclarece o que homens e mulheres modernos podem partilhar, além de retórica sublime. Arendt tem razão em afirmar que Marx jamais desenvolveu uma teoria da comunidade política e que isso é um problema sério. Porém, a questão é que, dado o impulso niilista do moderno desenvolvimento pessoal e social, não está claro que fronteiras políticas o homem moderno pode criar".

Berman também afirma que o século XX produziu um "desolador achatamento do pensamento social". A análise teórica da vida moderna, segundo ele, dividiu-se em "duas antíteses estéreis": de um lado a " 'modernolatria' " e, do outro, o " 'desespero cultural' " - no qual, junto com Ezra Pound, José Ortega & Gasset, Michel Foucault e Herbert Marcuse (entre outros) estaria Hannah Arendt. Para esses pensadores, "toda a vida moderna parece oca, estéril, rasa, 'unidimensional', vazia de possibilidades humanas: tudo o que se assemelha a liberdade ou beleza é na verdade um engodo, destinado a produzir escravização e horror ainda mais profundos". Não sei se concordo inteiramente com o ensaísta nessa passagem; afinal, consigo perceber traços de esperança em A condição humana - ainda que seja uma esperança lançada para as gerações futuras.

Na próxima semana - última postagem do ano - escreverei sobre a série televisiva Mr. Robot

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¹ ARENDT, Hannah. A condição humana. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013 [Tradução de Roberto Raposo]

² SARTORI, Vitor Bartoletti. Questão de gênero. Filosofia Ciência e Vida, São Paulo, ano VII, n. 94, mai. 2014. p. 15-23

³ ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 7 ed. São Paulo: Perspectiva, 2011 [Tradução de Mauro W. Barbosa]

BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986 [Tradução de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioruitti]


BG de Hoje

Cruzada - linda, lindíssima canção resultante da parceria entre TAVINHO MOURA e Márcio Borges - foi gravada originalmente, por Beto Guedes, se não me engano. Zizi Possi (uma cantora que eu adoro) também colocou-a num disco seu. Mas nenhuma versão, penso, ficou tão perfeita quanto a do BOCA LIVRE. No vídeo abaixo, o cantor Renato Braz encaixa-se como uma luva na apresentação.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Falou e disse...

"Trabalhos realizados entre nós [da área médica] mostram que as demências são mais prevalentes entre os analfabetos e naqueles com baixa escolaridade. Por estimular diversas áreas cerebrais ao mesmo tempo, a leitura cria conexões mais firmes entre os neurônios dos centros que armazenam as memórias. A relação entre leitura e escolaridade não é direta. No Brasil, não são poucos os que cursaram a universidade, mas fogem dos livros como o diabo da cruz". *

* Observação do cancerologista Drauzio VARELLA, em sua coluna na revista Carta Capital, publicada em 07/12/2016, cujo título é Demência e Intelectualidade 

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

O desaparecimento da esfera pública: lendo A condição humana, de Hannah Arendt (II)


"O que torna a sociedade de massas tão difícil de ser suportada não é o número de pessoas envolvido, ou ao menos não fundamentalmente, mas o fato de que o mundo entre elas perdeu seu poder de congregá-las, relacioná-las e separá-las. A estranheza de tal situação assemelha-se a uma sessão espírita na qual determinado número de pessoas, reunidas em torno de uma mesa, vissem subitamente, por algum truque mágico, desaparecer a mesa entre elas, de sorte que duas pessoas sentadas em frente uma à outra já não estariam separadas, mas tampouco teriam qualquer relação entre si por meio de algo tangível".


Hannah Arendt - A condição humana



A professora Maria Cristina Müller, da Universidade Estadual de Londrina, numa entrevista publicada em abril de 2013 na revista Filosofia Ciência e Vida*, considera que

"As sociedades deixam de ser livres quando esquecem que a diversidade de opiniões e de pontos de vista representa uma das garantias da existência do próprio domínio político do mundo; qualquer tentativa de uniformização e de eliminação da dimensão da pluralidade pode levar à fatal perda da liberdade e à consequente dominação. Considero, portanto, a maior contribuição de Hannah Arendt à Política contemporânea o resgate do sentido da política para um mundo que desacreditou da própria capacidade humana de um mundo comum e da Política".

Em ordem cronológica de publicação, A condição humana é posterior As origens do totalitarismo, trabalho no qual Hannah Arendt se perguntava como foi possível a implementação de regimes tão iníquos quanto o nazismo e o stalinismo. Embora A condição humana tenha sua motivação própria, não seria descabido dizer que as reflexões ali apresentadas funcionam também como uma advertência para tentarmos não seguir os rumos que nos conduziram aos terríveis eventos tratados em As origens do totalitarismo. Como observou Maria Cristina Müller na passagem acima, a pluralidade inerente à condição humana, caracterizada pela diversidade de opiniões e de pontos de vista, é essencial para o exercício da liberdade. O nazismo e o stalinismo, além das atrocidades cometidas, visaram a uniformização da opinião e impediram a espontaneidade própria da ação política. Como experiências que marcaram profundamente o século XX - e com adeptos fanáticos ainda no século XXI - , esses regimes totalitários encontraram no descrédito e no esvaziamento da política o ambiente propício para se disseminar. A condição humana leva-nos a pensar no valor das coisas que deveriam dizer respeito a todos nós, o espaço público que deveríamos construir (tendo em conta a pluralidade), o domínio político do mundo ao qual deveríamos acorrer.

Na mesma entrevista, a professora da Universidade Estadual de Londrina assevera que

"A importância do domínio público se apresenta por ser o espaço mundano do aparecimento dos homens, o espaço onde a espontaneidade é possível e onde a Política - o espaço entre-os-homens - floresce. Portanto, Política e liberdade se identificam. A pluralidade humana faz com que os indivíduos sintam-se pertencentes à humanidade, coadjuvantes no mundo do qual também fazem parte. A pluralidade não permite que a solidão domine e destrua a capacidade humana de sentir-se pertencente a um mundo que agrega singularidade e pluralidade. Talvez seja isso que concede a cada indivíduo a responsabilidade para com o outro e para com o mundo".

É no domínio público que os seres humanos podem realmente aparecer, no sentido fenomenológico; podem ser percebidos, vistos e ouvidos por outros sujeitos dotados de consciência. Só no domínio público, no espaço entre-os-homens, podemos nos sentir pertencentes a algo mais relevante do que a trivialidade de nossas vidinhas domésticas e mais significativo do que a frivolidade de nossas ambições particulares. Quando conseguimos construir esse espaço entre-os-homens (e não é fácil), quando conseguimos vislumbrar um mundo comum do qual fazemos parte e pelo qual somos, sob variados aspectos, responsáveis, a Política (em seu sentido maior) e a liberdade podem ter lugar.

Na postagem anterior, entretanto, escrevera que os seres humanos hoje não parecem interessados na construção de um mundo comum e me perguntei como isso aconteceu. Há algo que possamos fazer a respeito?

Antes, porém, um pouco de ficção científica.

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A Netflix, no dia 25 de novembro, lançou a série brasileira 3%. No futuro ali imaginado, o país se divide entre o Continente (onde vivem os milhões e milhões de pobres e miseráveis) e o Mar Alto (lar dos endinheirados). A porcentagem do título refere-se àqueles que, através de uma competição brutal, conseguem sair do Continente e alcançar o Mar Alto. Ainda não tive oportunidade de assistir ao programa.

Essa história me lembra o filme norte-americano Elysium (direção de Neill Bloomkamp, 2013), cujo elenco, aliás, conta com atores brasileiros (Alice Braga e Wagner Moura). Também uma distopia futurística (a narrativa se passa no ano de 2159), Elysium apresenta-nos um habitat bastante confortável, construído por e para os ricaços, localizado na órbita de nosso planeta, com tudo o que de melhor a tecnologia avançada pode oferecer. Enquanto isso, na Terra, permanecem os bilhões de "não-privilegiados", comendo o pão que o diabo amassou. Como havia gostado muito de Distrito 9 - outro trabalho (muito bom, por sinal) do diretor sul-africano Neill Bloomkamp -, esperava um pouco mais de Elysium. Embora não tenha ficado plenamente satisfeito, é um filme acima da média.

Presente nos dois mundos do futuro retratados ficcionalmente, tanto em 3% quanto em Elysium, o abismo de desigualdade socioeconômica não é algo estranho para nós, habitantes do mundo real do presente.
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Pensemos, por exemplo, no que impulsionou protestos como o Occupy Wall Street (#OWS). Nascido no Zuccotti Park, em Manhattan (NY), o movimento ramificou-se noutras partes do planeta, opondo-se, sobretudo, à influência e ao poder desproporcional das corporações empresariais (o que enfraquece a autoridade do Estado e a soberania dos governos), ao compromisso apenas com os lucros, demonstrado pelos investidores no mercado financeiro e pelo setor bancário, além de denunciar a (cada vez mais gritante) desigualdade econômica e social. Quanto a este último ponto, basta saber que a riqueza detida pelos 62 bilionários mais ricos da Terra equivale a tudo o que possui a metade mais pobre da população mundial para admitir que esses manifestantes não estão vendo chifre em cabeça de cavalo.

A abissal fratura entre a riqueza e a pobreza globais (tema, convém ressaltar, nem mesmo mencionado de passagem em A condição humana) revela-nos que as tentativas de atingir um entendimento mínimo, comunal, sobre como conduzirmos esse planeta (pelo menos para que ele não se deteriore de vez e se torne inabitável) talvez nunca ultrapassem a dimensão da utopia e cheguem ao plano da realidade. Acrescido a tudo isso, testemunhamos a hipertrofia da esfera privada da existência, ao mesmo tempo em que constatamos o amesquinhamento  do domínio público, comprometendo ainda mais o valor da ação política. Sobre este último ponto, Hannah Arendt tem muito a dizer.

Peço a atenção (e a paciência) do(a) eventual leitor(a) para o seguinte excerto de A condição humana. É longo, mas julgo-o importante para nossa discussão posterior:

"A verdade bastante incômoda de tudo isso é que o triunfo do mundo moderno sobre a necessidade se deve à emancipação do trabalho, isto é, ao fato de que o animal laborans foi admitido no domínio público; e, no entanto, enquanto o animal laborans continuar de posse dele, não poderá existir um verdadeiro domínio público, mas apenas atividades privadas exibidas à luz do dia. O resultado é aquilo que eufemisticamente é chamado de cultura de massas; e o seu arraigado problema é uma infelicidade universal, devida, de um lado, ao problemático equilíbrio entre o trabalho e o consumo e, de outro, à persistente demanda do animal laborans de obtenção de uma felicidade que só pode ser alcançada quando os processos vitais de exaustão e de regeneração, de dor e de alijamento da dor, atingem um perfeito equilíbrio. A universal demanda de felicidade e a infelicidade extensamente disseminada em nossa sociedade (e que são apenas os dois lados da mesma moeda) são alguns dos mais persuasivos sintomas de que já começamos a viver em uma sociedade de trabalho que não tem suficiente trabalho para mantê-la contente. Pois somente o animal laborans, e não o artífice e nem o homem de ação, sempre demandou ser 'feliz' ou pensou que homens mortais pudessem ser felizes.
[...]
Quanto mais fácil se tornar a vida em sociedade de consumidores ou trabalhadores, mais difícil será preservar a consciência das exigências da necessidade que a compele, mesmo quando a dor e o esforço, as manifestações externas da necessidade, são quase imperceptíveis. O perigo é que tal sociedade, deslumbrada pela abundância de sua crescente fertilidade e presa ao suave funcionamento do processo interminável, já não seria capaz de reconhecer a sua própria futilidade - a futilidade de uma vida que 'não se fixa nem se realiza em assunto algum que seja permanente, que continue a existir depois de terminado [seu] trabalho' ".

Tenhamos em mente que a filósofa escreveu isso na década de 1950, pensando no modelo de organização social existente na Europa ocidental e nos EUA (para onde imigrou antes do início da 2ª Guerra Mundial). Ainda assim, considero válidas suas reflexões pois, mesmo em países situados na periferia do capitalismo, como o Brasil, nota-se, ainda que não em todo o conjunto da população, essa ausência de percepção da dor e do esforço dentro da necessidade que caracteriza o trabalho contemporâneo, bem como avistam-se alguns traços dessa "abundância" e do "suave funcionamento" mencionados por Arendt.

O termo em latim (animal laborans) usado pela autora não é gratuito. Contraposto a outra expressão latina - homo faber, com a qual ela designa o lado humano envolvido com a obra e o artifício necessários para a fabricação dos objetos de nosso mundo -, animal laborans representa todos nós, submersos no (e reduzidos ao) ciclo do trabalho. Não podemos abrir mão dele (morreríamos); muitas das decisões - vitais - que tomamos são baseadas nele (inclusive porque grande parte destas depende do alcance da renda proporcionada por ele). Queremos a "felicidade". Como não a encontramos no espaço público (não é esse o seu propósito), terreno agonístico da política, tentamos alcançá-la voltando-nos cada vez mais para a "segurança" de nossa intimidade, protegendo-nos nas pequenas alegrias domésticas e familiares, alimentadas pelo consumo de coisas, produtos e serviços, com o que pensamos estar melhorando nossa "qualidade de vida" (e, no atual contexto digital, em que, equivocadamente, penso eu, acreditamos haver mais interconexão entre os indivíduos, fazemos questão de esfregar na cara do outro o quanto estamos "seguros" e "felizes", postando milhares e milhares de fotos de nossa vida privada nas ditas redes sociais). Quanto ao mundo exterior, o mundo comunal sobre o qual deveríamos demonstrar alguma responsabilidade, não é da nossa conta! Que se exploda!

É claro que nós, humanos, necessitamos de um território nosso, um refúgio do mundo público, até mesmo para que o ciclo metabólico exigido pelo trabalho possa ocorrer em paz e nossa participação política seja potencializada. Entretanto, hoje contentamo-nos apenas com a satisfação imediata decorrente das "recompensas" do trabalho. Como bem observou o professor Adriano Correia, da Universidade Federal de Goiás,***,

"Não há espaço para a política onde não há uma dimensão de grandeza que transcenda o mero estar vivo e os deleites que ele envolve, onde a liberdade não se sobreponha à saciedade. Os ideais de abundância de vida confortável e da saciedade se afirmaram em face de todos os outros na modernidade. Com a vitória do animal laborans, é a existência do próprio mundo, como obra do homem, que está em questão, sob a permanente ameaça de ser tragado pelos processos mobilizados para a satisfação das necessidades, sempre pululantes e fonte de intensa experiência prazerosa do mero estar vivo".

Estamos, urgentemente, precisando forjar novos ideais. Mas de onde viriam eles?

Encerro esta série de textos sobre A condição humana na próxima segunda-feira.
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* Arendt extraordinária. Filosofia Ciência e Vida, São Paulo, ano VI, n. 81, abr. 2013. p. 5-13

** ARENDT, Hannah. A condição humana. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013 [Tradução de Roberto Barroso]

*** O professor Adriano Correia realizou a revisão técnica de A condição humana acima referenciada. É dele também a Apresentação do livro: provém desta a observação citada na postagem.

BG de Hoje

A banda 4 NON BLONDES teve (com o perdão do clichê) uma carreira meteórica. Seu primeiro - e único - disco, Bigger, Better, Faster, More! (1992), vendeu horrores, puxado, claro, pelo hipermegahit What's Up. A vocalista, líder e principal compositora do grupo, Linda Perry, partiu para um trabalho solo, não muito bem sucedido, infelizmente (sua carreira como compositora e produtora musical, no entanto, decolou). Seu modo de cantar, unindo entusiasmo, vigor e uma dose de ironia, me lembra muito a falecida (e saudosa) cantora brasileira Cássia Eller. Comprei Bigger, Better, Faster, More! na época do lançamento. Tem muita coisa boa ali (acabei perdendo o vinil numa dessas malditas festas avacalhadas da minha juventude e, até hoje, não achei a versão em CD para comprar). Outra canção daquele álbum que fez um relativo sucesso radiofônico foi a belíssima Spaceman. Caso o(a) eventual leitor(a) tenha lido o prólogo de A condição humana irá perceber que o tema da ida ao espaço sideral, como modo de fugir da Terra e seus problemas, está presente, tanto neste trecho do livro de Hannah Arendt quanto na letra de Spaceman. E eu, que não sonho em viajar pelo universo, também me pergunto, agora já sem esperança: "Is there a better life for me?"