segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Religião: um outro nome para controle e busca de poder (e um risco para a democracia)


[Postagem atualizada em 04/07/2020]

Um dos personagens mais odiosos de todos os filmes a que já assisti é a Mrs. Carmody, de O nevoeiro (The Mist - direção de Frank Darabont, 2007), baseado no conto homônimo de Stephen King ¹. Uma parte de minha ojeriza por Mrs. Carmody deve-se, claro, ao magnífico desempenho da (pouco badalada) atriz Marcia Gay Harden (vale mencionar que em 2001 ela já havia sido premiada com um Oscar de coadjuvante por sua atuação em Pollock e indicada a outro, na mesma categoria, por seu papel em Sobre meninos e lobos, de 2003). Mais uma vez, aquela regra não-escrita do cinema e da dramaturgia prevaleceu: quando possível, o papel de vilão/vilã deve sempre ser dado ao/à melhor ator/atriz do elenco.

A outra parte - maior - de minha antipatia provém, contudo, daquilo que a personagem é: uma delirante e hidrófoba religiosa fanática.

Na narrativa escrita por King, a Sra. Carmody, dona de uma lojinha cheia de animais empalhados e objetos excêntricos, mistura seu fanatismo religioso ao curandeirismo e é descrita, sem qualquer sutileza, como uma bruxa (inclusive na aparência estereotipada):

"À claridade mortiça e lúgubre, ela parecia uma bruxa naquelas berrantes calças amarelas, na espalhafatosa blusa, com os braços pesados de chacoalhantes pulseiras de quinquilharia - cobre, casco de tartaruga, adamantina - e sua enorme bolsa. Seu rosto enrugado aparecia sulcado por fortes linhas verticais. O crespo cabelo grisalho se achatava sobre o couro cabeludo, amarrado por três prendedores e torcido na nuca. Sua boca era uma corda franzida".

No filme, a personagem tornou-se uma mulher de meia-idade, com vestes discretas - mas manteve a inseparável bolsa a tiracolo. Não há diferença significativa, contudo, entre as falas de Carmody no conto e na adaptação cinematográfica. E - o que mais importa para esta postagem - tanto o filme quanto o texto original conseguiram evidenciar bem os efeitos políticos causados por uma tal presença.

Uma fortíssima tempestade atinge uma região interiorana do estado do Maine. Após a tormenta, surge um insondável nevoeiro. Pessoas vão a um supermercado local em busca de suprimentos. E lá permanecem, aterrorizadas, pois da bruma misteriosa surgem criaturas horripilantes. Essa é a sinopse da história escrita por Stephen King em 1976, que afirmou gostar "do quê de filme B do conto".

Na bastasse toda a adversidade decorrente do aparecimento de seres medonhos vindos de outra dimensão, o grupo refugiado no supermercado ainda se depara com Mrs. Carmody...

"Não existe defesa contra a vontade de Deus!" - grita ela, em determinado momento - "Isto estava para vir. Eu vi os sinais. Aqui há gente que eu avisei, porém ninguém é mais cego do que aqueles que não querem ver."

É quando outro personagem, Mike Hatlen, vereador da cidade, intervém: "Afinal, o que quer dizer? O que você propõe?"

Ao que a religiosa tresloucada replica: "Propor? Propor? Ora estou propondo que se prepare para encontrar o seu Deus, Michael Hatlen - virou-se e olhou para todos nós - Preparem-se para o encontro com seu Deus!" 

Essa breve cena é particularmente significativa (está também no filme, com pequenas alterações). Mike Hatlen (como boa parte de nós, suficientemente habituado à convivência democrática contemporânea) acredita que, para resolver os problemas dentro de uma coletividade, o melhor método é apresentar propostas e discuti-las - mesmo que os problemas possuam tentáculos monstruosos. Mrs. Carmody, por sua vez, está pouco se lixando para os ritos democráticos. Mais do que isso: ela encarna a própria antipolítica.

. . . . . . .

Em Deus não é grande: como a religião envenena tudo ², o jornalista e ensaísta Christopher Hitchens observou que

"O nível de intensidade flutua de acordo com o momento e o lugar, mas pode-se afirmar como verdade que a religião não se contenta, e no longo prazo não pode se contentar, com suas próprias alegações maravilhosas e sublimes garantias. Ela precisa tentar interferir na vida dos descrentes, ou hereges, ou adeptos de outros credos. Ela pode falar sobre a bem-aventurança do mundo vindouro, mas quer poder neste mundo aqui. E é de esperar que seja assim. Afinal, ela é totalmente criada pelo homem. E não tem a confiança sequer nas suas diversas pregações para permitir a coexistência entre diferentes credos [ou a coexistência com a ausência de credo, acrescento eu]".

Convido o(a) eventual leitor(a) a fazer uma reflexão simples junto comigo. Suponhamos que se acredite numa divindade com todos os predicados geralmente atribuídos ao deus abraâmico - onipotência, onipresença, onisciência. Suponhamos também que se acredite que essa divindade recompensa o bom agir do fiel, ainda que seja após a morte, e pune as más condutas (sem contar que a divindade pode, se for de sua vontade, interceder de pronto, a qualquer momento, diretamente, produzindo um milagre). Aceitando, portanto, essas "alegações maravilhosas e sublimes garantias", por que o crente ³ deveria se preocupar com infiéis ou com aqueles não tão fiéis assim? Basta que prossiga no bom agir e a divindade (repito: onipotente, onipresente, onisciente, que premia o bem, pune o mal e ainda realiza milagres vez ou outra) irá favorecê-lo. Pode-se seguir em paz e, principalmente, deixar os outros em paz, não?

Não.

Porque, sendo uma invenção humana (portanto, sujeita a erros), a religião não consegue mais ser tão persuasiva (já não são tantos os países onde esta possa ser imposta à força); mostra dificuldade para disfarçar suas (muitas) incongruências e contradições, cada vez mais gritantes à medida que suas justificações, promessas e supostas recompensas são confrontadas por uma outra práxis e por outros discursos (principalmente o científico), cujas explicações e soluções para os problemas reais a nossa volta costumam ser melhores do que as fornecidas pela prédica religiosa. Escusado dizer que a ciência também tem seus limites e comete sua própria cota de equívocos (mas que tipo de ser humano, em pleno século XXI, está disposto a negá-la in totum e tomar decisões sem qualquer lastro científico?). Dizendo de outro modo: a religião apresenta rachaduras em sua hegemonia; seu poder se enfraquece. E, por esse motivo, muitos de seus adeptos reagem, constrangendo e forçando o restante da sociedade a continuar conformado aos seus ditames, à sua cosmovisão. Então, já não se trata de enaltecer os bem-aventurados, mas de dominação e controle, seja por meio da jihad islâmica, seja repetindo sem parar "a Bíblia diz".

Antes de prosseguir, convém esclarecer a que estou me referindo quando uso o termo religião.

Chamo de religião não só os sistemas religiosos propriamente ditos, com suas doutrinas, rituais, locais de culto etc., mas também toda e qualquer crença em forças divinas, criadoras intencionais de tudo o que existe e preocupadas com a conduta dos indivíduos, merecendo por isso algum tipo de reverência, quando não adoração, louvor e obediência (ou temor). Também classifico como sendo de caráter religioso aquelas convicções baseadas na sensação de que existiria uma "energia" ou "princípio ordenador" inacessível ao escrutínio racional mas alcançável, talvez, através da contemplação mística ou outro meio "espiritual". Noutras palavras, o sujeito pode não seguir um sistema religioso ou frequentar uma igreja específica, mas se ele acredita num "ser superior", numa entidade sobrenatural responsável pelo arranjo do universo, essa crença (poupando, a meu ver, uma dispensável questão terminológica) deve ser chamada, simplesmente, de religiosa.  NOTA (1): Desde já este blogueiro declara que, a despeito de seu ateísmo, defende intransigentemente o direito das pessoas acreditarem naquilo que quiserem. A problemática surge, porém, quando, dentro de um regime democrático e numa república ciente de seu dever para com a laicidade do Estado, certo ideário religioso faz de tudo para impor-se, como estamos vendo acontecer neste momento, no Brasil. Esse ponto será retomado mais adiante.

Na sua coluna no jornal Folha de S. Paulo, publicada no último 23 de novembro, Vladimir Safatle não coloca panos quentes ao tratar da relação entre religião e política: "Nunca é demais lembrar como a democracia ocidental nasceu, entre outros, por meio do combate à religião". Segundo o filósofo e professor da USP, a democracia ocidental

"foi impulsionada pela criação de um espaço político no interior do qual a justificação do poder não seria mais alimentada por qualquer forma de crença em escolhas divinas, na qual o amparo produzido pelo discurso religioso não desempenharia mais papel nos modos de produção da coesão social. A democracia moderna, como gostava de acreditar Max Weber, seria assim solidária de um processo de desencantamento do mundo vindo da perda do poder unificador dos mitos teológico-religiosos na fundamentação das esferas sociais de valores (cultura, arte, política, economia, ciência, entre outros). Hoje, não é difícil perceber como esse projeto nunca foi completamente realizado. Há várias formas de regressão social periódica a assombrar o que conhecemos até hoje por democracia e uma delas é a regressão religiosa fundamentalista, independentemente de ela ocorrer na Turquia muçulmana, na Polônia católica ou no Brasil com seus evangélicos”.

Para o colunista, vários países (entre estes, o Brasil) falharam em "dar, a largas parcelas da população, algum sentido substantivo para a experiência de serem cidadãs e cidadãos de um estado laico". Esse contingente enorme de pessoas, ao contrário, ficou perdido entre a violência estatal e a exploração econômica. Tal cenário de desalento foi o terreno fértil para a proliferação religiosa de viés mais retrógrado. Na conclusão de seu texto, intitulado República fundamentalista, Safatle escreve:

"No começo dos anos 1970, o psicanalista Jacques Lacan podia dizer: ‘vocês ainda não têm ideia do que será o retorno da religião’. Ele podia dar declarações dessa natureza por perceber como a política moderna mobilizava os mesmos afetos do discurso religioso, como o desejo de amparo e a produção contínua do medo. Contra a religião, só haveria uma saída, mas ela não seria utilizada pelo discurso político. Pois, do ponto de vista da circulação dos afetos, só se quebra a força da religião pela afirmação do desamparo, ou seja, por meio da afirmação da recusa a todo amparo vindo de um Outro, como se do desamparo pudesse nascer uma certa coragem cuja consequência política maior seria a produção de sujeitos que não querem mais ser governados. Sujeitos que sabem que sua ausência de lugar natural não é uma falha que deve ser superada, mas uma condição para a produtividade da liberdade. Sujeitos que afirmam a contingência de sua existência e de seus caminhos. Mas sempre haverá um poder político a se alimentar dos nossos afetos mais regressivos e amedrontados”.

Voltemos rapidamente a O nevoeiro, de Stephen King.

À certa altura, após tantas horas de horror dentro e fora do supermercado, o narrador da história nota como um dos personagens tem o semblante envelhecido e infeliz.

"Ocorreu-me que a maioria de nós devia ter tal aparência. Menos a Sra. Carmody. Ela parecia de algum modo mais jovem e revitalizada. Era como se ela tivesse se encontrado... Aliás, era como se já tivesse conseguido. Como se... estivesse alimentado-se daquilo".

Aquela situação, cheia de pânico e medo, beneficiava justamente o fanatismo e o desvario religiosos. Outros dentro do estabelecimento passaram a dar ouvidos à Sra. Carmody (para eles, tornara-se impossível a "afirmação do desamparo", como diria Safatle). É quando o narrador pensa: "Bastava tornar aquela gente a única e maior força política no supermercado [e ficaria impossível dividir o mesmo espaço]. A ideia de que o maior e único grupo em nosso fechado sistema estava ouvindo sua arenga sobre os abismos do inferno e os sete frascos sendo abertos [referência ao livro do Apocalipse, cap. 15; vers. 7] produzia em mim uma terrível sensação de claustrofobia".

Para a religião (sobretudo para as igrejas e para os sistemas religiosos organizados), não basta a fé como escolha pessoal e direito individual. Mais cedo ou mais tarde - principalmente em períodos e lugares em que o medo e a aflição passam a ser preponderantes entre a população -, a religião buscará controlar e coagir todo o corpo social, tentando fazer com que seus despautérios (no caso do conto de Stephen King, sacrifícios humanos para acalmar a ira de Deus, representada pelos monstros do nevoeiro, como acreditava a Sra. Carmody) tornem-se as normas gerais.

OK, OK, O nevoeiro é uma narrativa ficcional, uma fantasia de terror, e (pelo menos no Ocidente) não temos visto por aí nenhuma liderança religiosa fazendo exigências como as da Sra. Carmody.

Pensemos, contudo, no incansável movimento criacionista nos EUA, pressionando para que a história mítica do Gênesis divida, no ambiente escolar, o mesmo espaço com a teoria da evolução por seleção natural (e, portanto, tenham a mesma validade explicativa). Ou na defesa da segregação (e mesmo perseguição) de determinadas pessoas (LGBTQs, por exemplo) porque "a Bíblia os condena". Ou, falando especificamente do nosso país, consideremos o possível retrocesso da legislação, representado pelo projeto de lei que visa a criação do Estatuto do Nascituro (defendido pela futura ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos), que passaria a considerar criminosas as mulheres que decidissem interromper uma gravidez decorrente de um estupro, além de não resguardar outras tantas do risco de morrerem durante o parto. NOTA (2): O caso dos direitos sexuais e reprodutivos (entre estes, o direito ao aborto) é um tema particularmente elucidativo do quanto a mentalidade religiosa costuma ser prejudicial para as democracias. Por ser um assunto que necessita ser abordado detidamente, deixarei-o para uma postagem a ser publicada mais adiante. 

As religiões estão sempre a postos para impor o modo como todos devem agir e pensar (e não só os seus seguidores). Talvez o(a) eventual leitor(a) não considere os exemplos citados no parágrafo anterior suficientemente absurdos. Mas julgo não estar sendo receoso em excesso quando digo que a absurdez poderá, rapidamente, chegar a níveis ainda mais insuportáveis para muitos de nós (e não falo só dos ateus). Basta tornar essa gente a única e maior força política (vide as teocracias espalhadas pelo mundo, em especial nos países muçulmanos).

E já que mencionamos o Brasil, convém refletir um pouco sobre a situação com a qual temos de lidar por aqui.

. . . . . . .

Um bom retrato do atual cenário político, contaminado pela hipertrofia religiosa, está no livro Em nome de quem? A bancada evangélica e seu projeto de poder, de Andrea Dip .

Publicado este ano, Em nome de quem? é resultado de uma extensa reportagem (a autora integra a equipe da Agência Pública), acrescida de entrevistas e depoimentos. E foi num destes, o do professor e psicanalista Marco Fernandes, que encontrei uma boa explicação para o crescimento e a força das igrejas neopentecostais entre a população de baixa renda:

"O Pentecostalismo surge na favela" - diz ele - "e já nasce com uma tecnologia religiosa que funciona para as classes populares. As pessoas encontram ali um pronto-socorro de saúde mental. Quantas vezes eu ouvi: 'Ah, eu estava mal, entrei na igrejinha da esquina e melhorei!' [Na sociedade atual] Você não tem espaço para ser acolhido, para ter um suporte, escuta, alegria, beleza. E mais: a vida está tão caótica, precarizada, que é impossível as pessoas não terem desejo de ter uma ordem na vida. Algo que centralize, que organize, que ordene. Evidentemente, com isso vem um pacote de conservadorismos. Mas eu costumo dizer que essas igrejas instituem um 'micro-Estado precário de bem-estar social' ".

Embora, a meu ver, esses "pronto-socorros de saúde mental" acabarão, no médio e longo prazos, comprometendo a capacidade de pensar dos indivíduos e a "ordem" defendida pela fé costuma ser tão ou mais hipócrita e ilusória do que outros modelos de "ordem", consigo ver claramente como ir à(s) igreja(s) evangélica(s) local(is) - bem mais "dinâmica(s)", sem aquele ritmo fossilizado do catolicismo - torna-se quase irresistível para o pobre. E isto é crucial: os frequentadores desses espaços, de fato (como a maioria das pessoas, crentes ou não, deve-se admitir), buscam alguém que os escute (e não serei maldoso dizendo que, para isso, basta que eles não se esqueçam de colocar o dinheiro na sacolinha...)

Fernandes também

"acredita que outros fatores entrem nessa equação, como a falta de espaços de cultura e lazer nas comunidades: 'Certa vez, uma amiga disse que a irmã passou a frequentar a Igreja Universal perto da casa delas. Indignada, ela foi perguntar à irmã por que estava indo naquele lugar; disse que eram pilantras, enganavam as pessoas, tiravam dinheiro do povo. A irmã então respondeu: você acha que não sei disso? Mas aqui, aos domingos, não tem nada para fazer. Eu não aguento mais ficar em casa assistindo ao Faustão. Na igreja, eu encontro gente, canto, faço amizade, é uma festa! Lá ainda tem as irmãs que olham meu filho, eu vou mesmo!' Você imagina a quantidade de gente que vai pela primeira vez à igreja por causa disso?"

Contudo, o trabalho desses estabelecimentos e de seus líderes e acólitos não se restringe a fornecer (questionáveis) apoio e entretenimento espirituais.

"No Congresso Nacional brasileiro" - escreve Andrea Dip -, "a tendência seguiu esse aumento [de evangélicos entre a população]: a antropóloga da UFF Christina Vital diz que existem hoje entre oitenta e noventa parlamentares evangélicos vinculados à FPE [Frente Parlamentar Evangélica] (o número varia devido aos suplentes), mais do que o dobro de quando foi criada em 2003. O número de pastores candidatos também cresceu: 'Nós tivemos uma situação singular nesse pleito, com 40% mais pastores se candidatando em 2014', aponta".

Quando atualizamos pelo menos um desses dados (uma vez que o livro foi publicado antes do resultado das eleições deste ano), vemos que a defasagem é insignificante: após outubro, a Frente Parlamentar Evangélica chegou a 91 integrantes (a chamada Bancada Evangélica ou Bancada da Bíblia é ainda mais numerosa, pois inclui outros deputados e senadores não vinculados formalmente à FPE, mas que quase sempre defendem a mesma agenda). Isso sem mencionar o grande número de vereadores em centenas de municípios, além de titulares do executivo (bem como seus secretários/ministros), alçados aos respectivos cargos públicos graças, parcial ou inteiramente, a ostensiva exibição de suas crenças religiosas (genuínas ou postiças, vale acrescentar) percebidas como "as corretas" pelo eleitorado que as compartilha.  Não tenho dúvida de que se trata de um projeto de poder.

Alguém pode perguntar: Mas qual o problema de haver representantes desse segmento religioso na política institucional, já que, afinal de contas, de acordo com dados do último censo do IBGE, os evangélicos são quase 1/4 da população brasileira? Foram eleitos democraticamente, não seriam legítimos?

Apresento, então, duas objeções à atuação dessa categoria de políticos: o menosprezo deles em relação ao princípio da laicidade do Estado e a incapacidade deles de compreender que a democracia, se autêntica, deve procurar conjugar, da melhor forma possível, os interesses da maioria com as reivindicações das minorias.

O princípio do Estado laico é basilar para o regime democrático (clique aqui para uma definição bem didática do conceito de Estado laico). Muitas pessoas religiosas não entendem que só a defesa desse princípio proporciona a liberdade de credo religioso para todos (e, claro, a liberdade de não ter credo algum). Se a laicidade fosse levada a sério por aqui, praticantes do candomblé e umbandistas, por exemplo, poderiam ser atendidos com respeito pelas autoridades policiais quando fossem denunciar a destruição de seus terreiros e de seus objetos sagrados por parte de bandidos alegadamente evangélicos. Caso o Estado brasileiro prezasse a laicidade, o incitamento ao ódio pelas religiões de matriz africana promovidos frequentemente nos programas religiosos evangélicos que inundam a TV aberta seria coibido, por exemplo. Por falar nisso, os canais de TV, bem como as estações de rádio, são concessões públicas e, pelo menos em parte, deveriam atender os interesses da população. Em que sentido as várias horas diárias de proselitismo evangélico em algumas emissoras atendem a esses interesses? A democracia também sofre um abalo tremendo quando a pauta religiosa, ignorando o dever do agente público com a manutenção da laicidade, atenta contra direitos individuais. Portanto, sem meias-palavras, oponho-me a presença de indivíduos que, no legislativo e no executivo, concedem maior importância às suas crenças religiosas particulares do que ao princípio do Estado laico.

O entendimento de que uma democracia digna desse nome não pode permitir o atropelamento de demandas das minorias em razão da suposta vontade da maioria é outro preceito fundamental para relações políticas civilizadas (a esse respeito, recomendo a leitura do ótimo artigo da professora Maíra Zapater). Mas a quase totalidade dos parlamentares alinhados na Bancada da Bíblia não dão a mínima para isso. Sua visão arraigadamente fundamentalista inviabiliza até mesmo o simples debate de propostas. E fico me perguntando onde vamos parar.

Na introdução de Em nome de quem?, a jornalista Andrea Dip observa que uma onda reacionária vem se alastrando pelo mundo, ameaçando "direitos, pensamento crítico e pluralidade de ideias", com os discursos de ódio sendo despudoradamente despejados no espaço público. Para Dip, essa onda reacionária adquire "características próprias" no Brasil:

"Uma delas vem da aproximação entre uma direita orgulhosa de si e a Igreja Evangélica, unidas pelo medo de um inimigo que vem para 'destruir a família tradicional', os 'valores cristãos', o status quo e que, por vezes, sem lastro na realidade, toma rosto no comunismo, no feminismo, no movimento negro, na comunidade LGBTQ e em qualquer participação social que peça por igualdade de direitos e por discussão mais profunda sobre seus papéis na sociedade".
Numa democracia saudável, devemos nos esforçar pelo entendimento, pela tentativa de construção de pactos e do estabelecimento de acordos. Mas se o reacionarismo avançar, é preciso contra-atacar. Sem pestanejar. Por mais conformista e frouxo que seja, não estou disposto a aceitar quietamente as ações cada vez mais escancaradas de controle e dominação política efetuadas por religiosos, até porque, caso seu projeto de poder seja bem-sucedido, pode colocar em risco o tipo de existência que defendo.

É como aquela frase vista por aí em alguns muros e perfis das mídias sociais: "Se fere minha existência, serei resistência".
__________
¹ KING, Stephen. O nevoeiro. In: ___________. Tripulação de esqueletos. 2 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013. p. 20-167

² HITCHENS, Chistopher. Deus não é grande: como a religião envenena tudo. 2 ed. São Paulo: Globo Livros, 2016 [Tradução de George Schlesinger]

³ Mais uma vez, reproduzo aqui a mesma explicação dada em outras postagens, para evitar mal-entendidos:  quando uso o termo crente tenho em mente o seguinte significado: "aquele que acredita  em uma (ou várias) divindade(s)", em oposição ao termo descrente ou, simplesmente, ateu ("aquele que não acredita em nenhuma"). Assim, crente, neste contexto, designa todos os que acreditam em Deus, independentemente da denominação religiosa pela qual têm afinidade ou da qual fazem parte.

DIP, Andrea. Em nome de quem? A bancada evangélica e seu projeto de poder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

BG de Hoje

Os veteranos do FAITH NO MORE provando por que nunca deixaram de ser uma das bandas mais bacanas das últimas três décadas: Separation Anxiety.

sábado, 1 de dezembro de 2018

Entrevistas com escritores


No pequeno texto que serve de prefácio a um livro organizado por Fabrício Marques - Dez conversas: diálogos com poetas contemporâneos ¹ -, Joca Reiners Terron notou que:

"Em uma de suas numerosas blagues o escritor guatemalteco Augusto Monterroso defendeu a entrevista como o único gênero inventado pela Modernidade. Uma provocação, sem dúvida, mas com inquestionável e verdadeiro sentido. Afinal, o que seria da moderna compreensão do singular ofício de escritor sem as legendárias entrevistas publicadas por George Plimpton na não menos mítica Paris Review? Com um meticuloso sistema de perguntas procurando deslindar preocupações estéticas e técnicas de alguns dos maiores autores do século vinte, os múltiplos entrevistadores daquela publicação estabeleceram um padrão incontornável para entrevistas com escritores, um sistema de investigação digno de 'agentes do FBI', como salientou Malcom Cowley na introdução à primeira coletânea de entrevistados pela revista".

Entrevistas tornaram-se peças-chave para um melhor entendimento de diversos fenômenos, inclusive a criação literária, como observa Terron no excerto acima. Pessoalmente, procuro ler o maior número possível delas, sobretudo quando se trata de escritores/escritoras, leitura essa facilitada tremendamente, claro, pela internet. E mesmo antes da popularização da web buscava por este tipo de trabalho jornalístico onde pudesse encontrá-lo. E, acredite ou não, eventual leitor(a), uma das melhores fontes foi a Playboy. Lembro particularmente de três entrevistados, escritores, cujo teor da conversa publicada na revista criada por Hugh Hefner me interessou bastante: Luis Fernando Veríssimo, Isabel Allende e José Saramago (o romancista português, por exemplo, confirmou que maioria dos seus livros nasceu primeiro do título imaginado).

Joca Reiners Terron também tem razão ao apontar a Paris Review como a publicação que fixou o modus faciendi das entrevistas com escritores(as). Direcionadas mais para a feitura da obra do que para a vida particular dos(as) autores(as), as matérias da Paris Review tornaram-se valiosos recursos para os estudos literários (este blogueiro mesmo recorreu a uma delas na elaboração de uma postagem, dois anos atrás, sobre a escritora norte-americana Toni Morrison).

E por falar na Paris Review, li há pouco 17 entrevistas publicadas por lá reunidas num livro essencial, que completou 30 anos de lançamento em 2018 ².

Destaco três delas:

✰ William Faulkner (1897-1962)

A entrevista do escritor norte-americano ocorreu em 1956. Apesar de não ser rude nas respostas, não escondia que detestava falar de sua própria obra (ou de si). A certa altura, ele disse:

"Minha obra tem que me agradar, e, se o faz, não preciso falar a respeito dela com ninguém. Se não me agrada, falar disso não vai melhorar coisa alguma, já que a única coisa que pode melhorar é trabalhar nela um pouco mais. Não sou um literato, apenas um escritor. Não sinto prazer algum em falar a respeito do meu trabalho".

Eis que estamos, mais uma vez, diante daquela velha questão:  A) o artista deve criar visando apenas sua satisfação/sentimento pessoal de realização, sem se preocupar com as possíveis reações/opiniões de outrem; ou B) deve levar em conta o leitor/espectador/ouvinte em potencial (isto é, as possíveis expectativas deste, até mesmo sua capacidade de entendimento) durante o processo de elaboração artística? Faulkner, como é fácil averiguar, adotou A) como diretriz.

Respondendo a uma pergunta anterior, já havia afirmado que

"A única responsabilidade do escritor é para com sua arte. Será inteiramente desapiedado se for um bom escritor. Tem um sonho. Isso o angustia tanto que ele tem que se livrar dele. Não tem paz até então. O resto vai por água abaixo: honra, orgulho, decência, segurança, felicidade, tudo, para que o livro seja escrito. Se um escritor tiver que roubar a sua mãe, não hesitará [...]"

O artista - "uma criatura arrastada por demônios", segundo William Faulkner -, enquanto individualidade, "não tem importância. Só o que ele cria é importante, já que não há nada de novo a ser dito", considerava ele, acrescentando: "Shakespeare, Balzac, Homero, todos escreveram a respeito das mesmas coisas, e, se tivessem vivido mais mil ou dois mil anos, os editores não teriam precisado de mais ninguém desde então".

Em duas passagens da conversa, o romancista, surpreendentemente, afirma ter descoberto (pelo menos no início da carreira) que escrever era "divertido", embora um romance em particular - O som e a fúria (já postei sobre ele aqui) - tenha sido o trabalho que lhe causou "mais dor e angústia", tendo sido reescrito cinco vezes, em épocas diferentes.

O entrevistado é execravelmente machista ao fazer a seguinte comparação: "O sucesso é feminino e como uma mulher; se você se curva diante dela, ela passa por cima de você. Então o jeito de tratá-la é dar-lhe as costas da mão. Aí, talvez, ela venha a rastejar".

Mas consegue ser espirituoso e até engraçado quando diz: "Saiba que, se eu reencarnasse, gostaria de voltar como um urubu. Ninguém o odeia ou inveja nem o quer ou precisa dele. Ele nunca se vê importunado ou em perigo, e pode comer qualquer coisa".

Não poderia deixar de mencionar sua crítica à rotina de trabalho regular e semicompulsório que caracteriza nossas sociedades (crítica, aliás, com a qual concordo inteiramente):

"Sou um vagabundo e um andarilho por temperamento. Não desejo o dinheiro tanto assim a ponto de trabalhar por ele. Na minha opinião, é uma vergonha que a única coisa que um homem pode fazer oito horas por dia, dia após dia, é trabalhar. Não se pode comer oito horas por dia, nem beber oito horas por dia, nem fazer amor oito horas - tudo o que se pode fazer durante oito horas é trabalhar. É esse o motivo pelo qual o homem torna, a si e a todos os demais, infelizes e miseráveis".



✰ Jorge Luis Borges (1899-1986)

A entrevista do contista e poeta argentino é aquela com mais sinais de espontaneidade (convém informar que na Paris Review, após a primeira gravação/registro da conversa, ela geralmente passa por uma revisão feita pelo próprio entrevistado). Concedida em 1966, quando o autor d'O livro de areia era diretor da Biblioteca Nacional, em Buenos Aires, a entrevista foi interrompida três vezes pela secretária de Borges, avisando que um certo Sr. Campbell o aguardava. Sua reação é bem-humorada.

Assim como Faulkner, Jorge Luis Borges acreditava que "as coisas que são ditas em literatura são sempre as mesmas": o importante é "a maneira como são ditas". Diferentemente do norte-americano, contudo, Borges não mantinha o potencial leitor fora da sua equação. "As pessoas devem ser capazes de ler fluentemente, mesmo que você esteja escrevendo metafísica ou filosofia, ou o que quer que seja", disse ele.

No começo de sua carreira, o escritor "achava que tudo tinha de ser definido e que nenhum volteio de frase comum deveria ser usado. Eu nunca teria dito: 'Fulaninho de Tal entrou e sentou', porque isso era simples e fácil demais. Achava que tinha que descobrir alguma forma extravagante de dizer isso". Entretanto, mudou à medida que amadurecia:

"Agora percebo que essas coisas são geralmente aborrecimentos para o leitor. Mas penso que toda a raiz do problema está no fato de que, quando um escritor é jovem, ele de algum modo sente que o que vai dizer é bastante tolo, óbvio ou lugar comum, e então tenta ocultá-lo sob uma ornamentação barroca, por trás de palavras tiradas dos escritores do século XVII; ou, senão, se ele se empenha em ser moderno, então faz o contrário: fica inventando palavras o tempo todo, ou aludindo a aviões, trens ou o telégrafo e o telefone porque está se esforçando ao máximo para ser moderno. Depois, à medida que o tempo passa, sente-se que as ideias que se tem, boas ou más, devem ser expressas claramente, porque, se você tem uma ideia, tem que tentar passar essa ideia ou essa emoção ou essa atmosfera para a mente do leitor"

Tendo em vista o efeito que o texto busca produzir no leitor, Borges acreditava que o escritor "deveria ser julgado pelo prazer que proporciona e pelas emoções que se obtém. Quanto a ideias [políticas], afinal de contas não é muito importante se um escritor tem esta ou aquela opinião política, porque uma obra se sairá bem apesar delas [...]". Essa observação é sob medida para o próprio entrevistado (já postei aqui sobre os tenebrosos posicionamentos sociopolíticos de Borges).

Essa consideração pelo leitor, contudo, em nada diminui a qualidade e a sofisticação do contista argentino (basta ler algumas de suas narrativas para constatá-lo). Sua literatura é sempre cheia de citações, comentários implícitos, menções a outros textos. Tudo fazendo parte de um jogo nem sempre percebido por quem o lê. A esse respeito, Borges disse que "a maior parte dessas alusões e referências são postas lá [na sua obra] simplesmente como uma espécie de brincadeira íntima". E completou: "Uma brincadeira que não precisa ser necessariamente compartilhada com outras pessoas. Quero dizer, se elas a compartilham, tanto melhor; mas, se não, não me importo nem um pouco com isso".



Nadine Gordimer (1923-2014)

Muito por iniciativa da própria escritora sul-africana, a entrevista da autora de O falecido mundo burguês tornou-se a mais "pessoal" do livro inteiro, na qual se falou muito de sua vida familiar e doméstica. A conversa começou a ser registrada no outono de 1979 (nos EUA) e retomada na primavera de 1980 (no Reino Unido) .

Geralmente classificada como escritora política, Gordimer disse:

"Eu não sou por natureza uma criatura política, e mesmo agora há muitas coisas que não gosto na política e nos políticos - embora admire tremendamente pessoas que são politicamente ativas - há tanto mentir para si mesmo, auto-ilusão, tem que haver - você não se torna um bom ativista político a menos que possa fingir que os calos não estão ali".

Para ela, escrever é uma das "maneiras de amarrar a experiência". Escrever é

"tentar entender a vida. Você trabalha a sua vida inteira e talvez tenha conseguido entender um pedaço bem pequeninho [...] Penso que isso é o que a literatura é, penso que isso é o que a pintura é. É procurar esse fio de ordem e lógica na desordem, e o caráter de incrível desperdício e maravilhosa prodigalidade da vida. O que todos os artistas estão tentando fazer é compreender a vida"

Sobre o modo como pensa a estrutura de seus livros, Nadine Gordimer respondeu:

"Para mim, outra vez, muito pouco da construção é objetivamente concebido. Ela é orgânica, instintiva e subconsciente. Não sei lhe dizer como cheguei a ela. Embora, a cada livro, eu atravesse um longo período em que sei o que quero fazer mas me sinto refreada, confusa e abatida, porque não sei, antes de escrever, como vou fazer, e sempre receio não ser capaz de fazê-lo".

A cada texto, é preciso encontrar a forma narrativa mais eficaz, às vezes até adotando um estilo não experimentado antes. É arriscado:

"É claro que você corre um risco tremendo com esse estilo narrativo, e quando consegue ser bem-sucedido, creio que é o ideal. Quando não, é claro, você irrita o leitor ou deixa confuso. Pessoalmente, como leitora, não me importo de ficar confusa. Talvez o(a) escritor(a) não saiba das consequências implícitas em seus livros, porque há uma escolha de explicações; e como leitora, eu aprecio isso. Para mim, é uma parte fundamental do excitante negócio de ler um livro, de ser instigada, e ter uma mente própria para pensar. E então, como escritora, tomo a liberdade de fazer isso"

Na condição de leitora de literatura, aliás, Gordimer faz a seguinte observação:

"Muitos escritores dizem que não leem outros escritores, os contemporâneos. Se é verdade, é uma grande pena. Imagine se você tivesse vivido no século XIX e não tivesse lido os escritores aos quais hoje retornamos tão amorosamente, ou mesmo que você tenha vivido no século XX e não tenha lido Lawrence ou Hemingway, Virginia Woolf e assim por diante".

Para comparação, pensemos na resposta negativa de Faulkner quando perguntado se lia seus contemporâneos. Ele disse que lia apenas os livros que conheceu "quando era moço e aos quais volto como se volta aos velhos amigos". Faulkner complementou: "Já li esses livros tantas vezes que nem sempre começo na primeira página ou leio até o fim. Leio apenas uma cena ou o tocante a uma personagem, assim como você encontra e conversa com um amigo por alguns minutos". Lembro-me agora que João Ubaldo Ribeiro disse algo parecido à revista Playboy.

Voltando a Nadine Gordimer, a autora apresentou um ponto de vista inusitado: ela defende que todos os escritores são "seres andróginos":

"[...] não creio que importe nem um pouco de que sexo é o escritor, desde que sua obra seja a de um verdadeiro escritor. Penso que existe de fato tal coisa como uma 'escrita da mulher', por exemplo, uma literatura feminina; existem 'autoras' e 'poetisas'. E há homens, como Hemingway, cuja excessiva 'masculinidade' é uma parte concomitante de sua literatura. Mas com muitos dos escritores de sexo masculino que admiro, isso não importa tanto".

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Antes de encerrar, gostaria de comentar uma resposta dada por Gore Vidal na sua entrevista publicada no livro de que estamos falando (a conversa ocorreu em 1974).

Perguntado se escrever era fácil e se gostava de fazê-lo, Vidal respondeu que sim, gostava de escrever, dizendo que seus romances eram escritos a mão, mas as peças de teatro e os ensaios, à máquina.

"Uma curiosidade:" - disse ele -"nunca releio um texto até terminar a primeira versão. Senão, é muito desencorajador. Também porque quando você tem a coisa toda ali na frente, pela primeira vez, já esqueceu a maior parte e vê tudo como se fosse novidade. Reescrever, no entanto, é um negócio vagaroso, penoso. Para mim, o principal prazer de ter dinheiro é poder pagar por quantas versões redatilografadas eu quiser. Quando eu era jovem e pobre, tinha que datilografar eu mesmo, por isso raramente fazia mais que duas versões. Agora, passo por quatro, cinco, seis. Quanto mais, melhor, já que o meu estilo é muito o de pensar duas vezes".

Estamos tão acostumados com os computadores pessoais (e as impressoras residenciais) que às vezes esquecemos o quanto isso facilitou a vida dos(as) escritores(as). Poder consertar e refazer um texto quantas vezes quiser antes de lançá-lo publicamente, apenas clicando/digitando aqui e ali, sem todo o trabalho mecânico de manuscrever ou datilografar, aborrecimento que sempre acompanhara os artistas e profissionais da escrita, é algo verdadeiramente transformador. Por outro lado, os pesquisadores e estudiosos de Literatura talvez, em breve, não terão à disposição as versões preliminares de algumas narrativas, nem aquelas folhas onde se podia ver as hesitações, mudanças de ideia, reformulações dos(as) criadores(as), sinalizadas pelos rabiscos, linhas sublinhadas e anotações nos cantos das páginas.
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¹ TERRON, Joca Reiners. A entrevista: o gênero literário da modernidade. In: OLIVEIRA, Fabrício Marques. Dez conversas: diálogos com poetas contemporâneos. Belo Horizonte: Gutenberg, 2004. 

² OS ESCRITORES: as históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo: Companhia das Letras, 1988 (Seleção de Marcos Maffei) [Tradução de Alexandre Martins e Beth Vieira]. Um segundo volume de entrevistas foi publicado, com o mesmo título e pela mesma editora, no ano ulterior, 1989.

BG de Hoje

No somatório geral, gosto do trabalho de NANDO REIS, embora reconheça que existam altos e baixos. Sem dúvida, porém, Diariamente, gravada por MARISA MONTE e lançada no disco Mais, de 1991, é um ponto altíssimo da sua carreira. Ah, e o videoclipe feito por Fábio Yamaji conseguiu ajustar-se muito bem à encantadora simplicidade da canção.