quarta-feira, 18 de maio de 2016

Amada, de Toni Morrison: quando o "fato histórico se torna pessoas com nomes"



 
No romance Amada* somos imediatamente lançados dentro do mundo da casa identificada pelo número 124, advertidos de que o lugar “era rancoroso. Cheio de um veneno de bebê”. É a principal ambiência onde transcorre a narrativa. Uma de suas habitantes é Sethe. A certa altura, após a personagem rememorar, com o auxílio de outra, mais um doloroso episódio ocorrido em sua vida, lemos a seguinte passagem:

Balançou a cabeça de um lado para outro, conformada com seu cérebro rebelde. Por que não havia nada que seu cérebro recusasse? Nenhuma miséria, nenhuma tristeza, nenhuma imagem odiosa detestável demais de se aceitar? Igual uma criança gananciosa, seu cérebro agarrava tudo. Uma vez só não poderia dizer: não, obrigada? Detestei e não quero mais, não?”

Páginas antes, a narradora já observara que, “para Sethe, o futuro era uma questão de manter o passado à distância”. Pensar no futuro era uma tarefa dificílima, quase impossível para ela: “cheia de passado e com fome demais, não havia espaço para imaginar, quanto menos planejar o dia seguinte”. O leitor, angustiado, se pergunta então: como é possível prosseguir com tanto sofrimento acumulado dentro de si (e à sua volta)?

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Noutra oportunidade, escrevi aqui que não se sai das duzentas e poucas páginas de O olho mais azul [o primeiro livro de Toni Morrison, discutido naquela ocasião] com a alma aliviada. O mesmo se pode dizer após as mais de trezentas e cinquenta que compõem Amada – com um acréscimo ainda maior de dor (se isso é possível). A escritora não saberia produzir sua ficção de outra forma. Em longa entrevista concedida em 1993 a Elissa Shappell, para a Paris Review (disponível na integra aqui), Morrison diz: “It's not possible for me to be unaware of the incredible violence, the willful ignorance, the hunger for other people's pain. I'm always conscious of that though I am less aware of it under certain circumstances – good friends at dinner, other books”.**

Os horrores da escravidão na América – um dos temas de Amada, ainda que a história se passe em 1873, ou seja, 10 anos após a abolição nos EUA – estão cheios de “incrível violência, ignorância deliberada e ânsia pela dor de outras pessoas”. A autora, na preparação do romance, pesquisou relatos e outros documentos históricos.

So while I looked at the documents” – diz Toni Morrison na entrevista citada“and felt familiar with slavery and overwhelmed by it, I wanted it to be truly felt. I wanted to translate the historical into the personal. I spent a long time trying to figure out what it was about slavery that made it so repugnant, so personal, so indifferent, so intimate, and yet so public”.***

Uma instituição tão cruel (e de tão longa duração) como foi a escravidão colonial e pós-colonial não pode ser facilmente assimilada, sequer superada sem mais nem menos. Os envolvidos nela (tanto as vítimas quanto os algozes) fizeram daquilo algo complexo - ao mesmo tempo “tão repugnante, tão pessoal, tão indiferente, tão íntimo e ainda assim, tão público”. Explicá-la, tentar entendê-la, não é tarefa simples. Toni Morrison desejava, por meio de seu livro, que o horror da escravidão fosse “verdadeiramente sentido” pelo leitor. Ela quis “traduzir o histórico para o pessoal”.

Na mesma passagem, aludida no começo da postagem, em que Sethe relembra um dos momentos dolorosos de sua vida, outro personagem, Paul D, menciona um instrumento de castigo/tortura com o qual fora punido uma vez – o freio. Sobre isso, a autora diz:

I make other references to the desire of spit, to sucking iron, and so on; but it seemed to me that describing what it looked like would distract the reader from what I wanted him or her to experience, wich was what it felt like. The kind of information you can find between the lines of history. It's sort of falls off the page, or it's a glance and a reference. It's right there in the intersection where an institution becomes personal, where the historical becomes people with names”. ****

"O histórico se torna pessoas com nomes": eis aí, na minha opinião, o grande valor de Amada. A monstruosidade escravagista é apresentada ao leitor sem o distanciamento analítico presente nos estudos históricos. No livro, como não podia deixar de ser, o que predomina são os expedientes próprios da Literatura: a interioridade psicológica dos personagens, a seleção e escolha calculada das cenas a serem descritas, as alterações no foco narrativo, o cuidado no arranjo das palavras, garantindo ao livro a perspectiva humanizadora característica das grandes obras de ficção.

Há ainda outro ponto.

A presença fantasmagórica na narrativa levou algumas pessoas a arrolar esse trabalho de Toni Morrison na categoria dos romances realistas-fantásticos. Creio que isso não é muito acertado. No prefácio - em que a autora, além de explicar as motivações e reflexões anteriores à sua composição, "entrega", sem qualquer cerimônia, que o infanticídio é o ápice dramático do livro - Morrison conta que

"Na tentativa de tornar a experiência do escravo íntima, eu esperava que a sensação de as coisas estarem ao mesmo tempo controladas e fora de controle fosse convincente de início ao fim; que a ordem e quietude da vida cotidiana fosse violentamente dilacerada pelo caos dos mortos carentes; que o esforço hercúleo de esquecer fosse ameaçado pela lembrança desesperada para continuar viva. Para mostrar a escravatura como uma experiência pessoal, a língua não podia atrapalhar".

O fantasma presente na obra é, sem dúvida, elemento estruturante desta; parece-me, contudo, ter sido incluído mais como o "fiador" (no caso, a fiadora) que permitirá a escritora não ser atrapalhada por determinadas convenções da escrita de romances realistas. Sua tentativa foi arriscadísima, devo dizer; entretanto, o resultado comprovou seu acerto (o prêmio Pulitzer obtido com a publicação não me deixa mentir).

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Antes de terminar, acho oportuno discutir brevemente uma "acusação" frequentemente dirigida a Toni Morrison: a de que ela é uma escritora limitada. Ano passado, numa entrevista ao jornal britânico The Guardian (disponível aqui), ela deu uma resposta excelente a esse respeito:

"I'm writing for black people in the same way that Tolstoy was not writing for me, a 14-year-old coloured girl from Lorain, Ohio. I don't have to apologise or consider myself limited because I don't [write about white people] - which is not absolutely true, there are lots of white people in my books. The point is not having the white critic sit on your shoulder and approve it" *****

Não, Toni Morrison, de fato, você não tem que se desculpar por seus livros. Nós, leitores, é que devemos agradecer por eles, apesar da dor que nos provocam.
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* MORRISON, Toni. Amada. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 [Tradução de José Rubens Siqueira] 

** [tradução aproximada] “Não me é possível ficar indiferente à incrível violência, à ignorância deliberada, à ânsia pela dor dos outros. Estou sempre consciente disso, embora esteja menos sob certas circunstâncias – bons amigos para o jantar, outros livros”.

*** [tradução aproximada] “Então, enquanto eu olhava os documentos e me sentia familiarizada com a escravidão e sobrecarregada por ela, eu queria que ela fosse verdadeiramente sentida. Eu queria traduzir o histórico para o pessoal. Eu passei um longo tempo tentando descobrir o que havia na escravidão que a fazia tão repugnante, tão pessoal, tão indiferente, tão íntima e, ainda assim, tão pública”.


**** [tradução aproximada] “Eu faço outras referências ao desejo de cuspir, ao chupar ferro, e por aí vai: mas pareceu-me que descrever como aquilo se parecia distrairia o leitor do que eu queria que ele ou ela experimentasse, que era como senti-lo. O tipo de informação que você pode encontrar nas entrelinhas da história. Meio que cai fora da página, ou é [apenas] uma olhadela e uma nota [de rodapé].  Está bem ali na interseção em que a instituição torna-se pessoal, em que o[ fato] histórico se torna pessoas com nomes”.

***** [tradução aproximada] "Estou escrevendo para pessoas negras do mesmo modo que Tolstói não estava escrevendo para mim, uma garota de cor de 14 anos de Lorain, Ohio. Eu não tenho que me desculpar ou me considerar limitada porque não [escrevo sobre pessoas brancas] - o que não é absolutamente verdade, há muitas pessoas brancas em meus livros. O negócio é não ter um crítico branco sentado no seu ombro e aprovar isso".

BG de Hoje

Um grande clássico do blues: Born under a bad sign, interpretado por ALBERT KING. Na apresentação abaixo, King está em companhia do inigualável STEVIE RAY VAUGHAN, um dos meus guitarristas preferidos. P. S. Essa canção já foi cantada por ninguém menos que Homer Simpson (na verdade, claro, o ator que lhe dá voz, Dan Castellaneta) no disco The Simpsons sing the blues, com direito a B. B. King na gravação (já tive esse álbum em vinil e CD; infelizmente, não tenho a menor ideia de onde estejam hoje).