sexta-feira, 6 de maio de 2016

Afinal, o que é transcendental?: uma leitura de Kant





Dia desses estava cantarolando Trilhos urbanos, de Caetano Veloso. Num dos últimos versos aparece o título do disco em que a canção está contida, lançado em 1979, um dos melhores na carreira do artista baiano:

"Cinema transcendental 
trilhos urbanos Gal
cantando o balancê
como eu sei lembrar de você"


Por que Cinema transcendental? A referência ao cinema não nos parece fora de lugar; o compositor ligou-se ao universo fílmico noutros trabalhos. Já se disse muitas vezes, aliás, que a própria poética de Caetano Veloso recorre frequentemente à técnica da montagem cinematográfica (a canção da qual estamos falando é um bom exemplo). E o que se pode dizer a respeito do transcendental?

Bem, não posso afirmar peremptoriamente que o artista empregou o adjetivo no rigoroso sentido circunscrito por Immanuel Kant há mais de dois séculos. Desconfio, contudo, que o hábil letrista fez uma breve alusão, intencional, nessa direção. É uma bizantinice, admito, mas acho que vale a pena escrever sobre o assunto (quando menos, para evitar ambiguidades e equívocos terminológicos no trato com o pensamento do filósofo alemão).

Na Crítica da razão pura*, Kant escreveu:

"Denomino transcendental todo conhecimento que em geral se ocupa não tanto com objetos, mas com nosso modo de conhecimento de objetos na medida em que este deve ser possível a priori. Um sistema de tais conceitos denominar-se-ia filosofia transcendental".

Farei agora um esboço (apenas um esboço, enfatizo) bem simplificado de alguns aspectos do kantismo para que possamos compreender melhor essa definição.

Antes, porém, é justo perguntar: pra que se deter em Kant? Sua epistemologia já não foi jogada pra escanteio, graças, por um lado, à Teoria da Relatividade e, por outro, aos avanços da Psicofisiologia e da Neurociência?

Para responder a isso, recorro ao pesquisador brasileiro Daniel Omar Perez que, numa entrevista** anos atrás, disse magistralmente:

"O exercício da Filosofia é um exercício sistemático, mas não porque oferece sistemas como edifícios, mas porque se pergunta sistematicamente, porque leva o pensamento até seu próprio limite. Alguns saberes pensam os fenômenos, as coisas, os fatos. A Filosofia deve poder pensar o próprio pensamento que pensa esses fenômenos, coisas ou fatos. Kant é um filósofo porque nos obriga a nos interrogarmos radicalmente até onde o pensamento pode ser pensado. Contra uma determinada tradição filosófica, Kant mostra que o pensamento tem os limites da própria finitude a partir da qual se produz. Por isso, podemos dizer que todos os problemas que podemos formular são problemas que demandam resolução. Porém, a resolução desses problemas, nos limites daquilo que pode ser pensado, depende das condições de possibilidade de sua formulação. Essa é a pergunta sistemática que Kant encontra: a pergunta pelas condições de possibilidade".
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O conhecimento transcendental, segundo Immanuel Kant, é um conhecimento apriorístico: "portanto" - escreve ele - "conhecimentos a priori entenderemos não os que ocorrem de modo independente desta ou daquela experiência, mas absolutamente independente de toda a experiência". Esses conhecimentos fazem parte do kit básico racional dos indivíduos e - importante - "nada de empírico está mesclado" a eles. O que os torna tão especiais? "Necessidade e universalidade rigorosa são, portanto, seguras características de um conhecimento a priori e também pertencem inseparavelmente uma a outra", diz o filósofo.

O que Kant buscava, por meio da filosofia transcendental, era "a ideia de uma ciência para a qual a Crítica da razão pura deverá projetar o plano completo, arquitetonicamente, isto é, a partir de princípios, com plena garantia da completude e segurança de todas as partes que perfazem este edifício".

A imagem arquitetônica reaparece em outros pontos da obra de Kant. Movido pelo mesmo anseio encontrado lá em Platão e Aristóteles, mas que também acometeu Descartes, Locke e Hume (para ficar só nestes) - qual seja, estabelecer as bases do conhecimento racional -, o filósofo alemão tencionou fixar em seu principal livro os fundamentos do edifício chamado Razão, algo imprescindível antes de se fazer qualquer outra tentativa de conhecer os objetos espalhados pelo mundo. Daí dizer-se razão pura, ou seja, não "contaminada" com as contingências da experiência. É um plano ambicioso? Of course it is! Apesar de simular modéstia, Kant sabia bem qual o alcance da tarefa que ele mesmo colocou diante de si:

"Não podemos denominá-la propriamente doutrina, mas somente crítica transcendental, pois tem como propósito não a ampliação dos próprios conhecimentos, mas apenas sua retificação, devendo fornecer a pedra de toque que decide sobre o valor ou desvalor de todos os conhecimentos a priori".

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João de Fernandes Teixeira, um dos melhores colunistas da revista Filosofia Ciência e Vida, observou*** que

"Muito antes de a Psicologia existir como disciplina, Kant alertava para os perigos de se fazer uma ciência da mente. Já no século XVIII, ele indagava: como a mente poderia conhecer-se a si mesma e se seria possível conhecer sua natureza última, isto é, se a mente que podemos conhecer não seria diferente daquilo que ela de fato é. Para conhecermos a natureza da mente seria preciso ter um conhecimento transcendente; uma cadeira cósmica privilegiada da qual pudéssemos apreciar se a experiência subjetiva pode ser reduzida ao cérebro ou à Neurofisiologia, ou, inclusive, até que ponto elas se conectam. Nossa própria mente não nos dá esse ponto de vista privilegiado e, por isso, a resolução do problema mente-cérebro é cognitivamente inacessível".


Segundo Kant, nunca chegaremos à essência da realidade. Isso não é possível já que contamos apenas com os elementos a priori de nossa sensibilidade, o espaço e o tempo (“as formas da intuição sensível”, como diria o pensador alemão), combinados com as formas do entendimento (as “categorias da inteligência”) de que a razão humana dispõe. A coisa em si (o noumenon – ou númeno – kantiano) é inacessível a nós, em última instância. Os seres humanos só poderiam conhecer os objetos do mundo enquanto fenômenos, isto é, tais como são percebidos, melhor dizendo, como aparecem à nossa estrutura cognitiva em dadas condições. No excerto reproduzido logo acima, Teixeira reconhece que Kant, a despeito do estágio em que se encontrava a ciência de seu tempo, tinha consciência que o conhecimento possível aos humanos tem limites. A propósito, no trecho citado, o autor usa o adjetivo transcendente (e não transcendental, alguém reparou?). É porque o qualificativo ali foi usado nas acepções mais comuns da palavra (“algo que está/vai além da realidade ordinária”, o que leva algumas pessoas a associar o termo com o divino ou quase divino). O par transcendental - transcendente enseja certa confusão. É conveniente fazer algumas observações a respeito.

Kant usou os dois adjetivos na Crítica da razão pura. Porém, enquanto transcendental, como vimos, refere-se àquilo que antecede a experiência (uma condição de possibilidade para o conhecimento), o transcendente é aquilo que está além das experiências possíveis (opõe-se a imanente, que, segundo o filósofo, é o princípio “cuja aplicação se mantém completamente nos limites de uma experiência possível”). Mas deixarei isso de lado agora, pois, para o objetivo dessa postagem, interessa-nos mesmo é nos distanciarmos do uso popular desses termos. Frequentemente, transcendental (e sobretudo) transcendente são empregados no discurso teológico e têm, por isso, forte conotação religiosa (particularmente no Budismo, Hinduísmo e Espiritismo). Sempre é bom reforçar, entretanto, que Kant não os emprega desse modo em seu livro mais destacado, obviamente.

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Crítica da razão pura apresenta uma estética transcendental, seguida de uma analítica transcendental e é encerrada por uma dialética transcendental (as duas últimas formam a lógica transcendental). Todas são partes de uma propedêutica ao sistema da razão”, de acordo com as palavras do próprio Kant. Juntas comporiam um ferramental bem útil para o saber, para o exercício do pensar.

Voltemos a Caetano Veloso. A humanidade, ao longo do tempo, vem acrescentando novos recursos e dispositivos culturais que auxiliam as tarefas do pensamento. Inimaginável na época de Immanuel Kant, o Cinema poderia ser um desses instrumentos? Como disse antes, desconfio (apenas desconfio) que o compositor baiano usou o adjetivo transcendental intencionalmente, como a aventar a possibilidade da inclusão do Cinema numa nova e pós-moderna propedêutica ao sistema da razão”.

Ou não.

Talvez o poeta/letrista só estivesse procurando uma palavra satisfatória para rimar com Gal. Vai saber...

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* KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Nova Cultural, 1999 [Tradução de Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger]

** A entrevista completa com Daniel Omar Perez pode ser encontrada no número 71 (junho de 2012) da revista Filosofia Ciência e Vida (Editora Escala Educacional)

*** TEIXEIRA, João de Fernandes. Kant, esse filósofo da mente. Filosofia Ciência e Vida, São Paulo, ano IV, n. 45, 2010, p. 52-53


BG de Hoje


Há muitas bandas de rock bem pretensiosas por aí. O MUSE é uma delas. Difícil de agradar na primeira vez em que se ouve, o grupo é odiado pela galera old school (consideram-no cheio de afetação). Mas já me acostumei. O som dos caras tem um jeitão meio Queen, meio Radiohead (fora que eles mantêm às vezes uma atitude auto-irônica bem bacana). A faixa United States of Eurasia (do disco The Resistence, 2009), com sua letra pacifista/humanitária, caiu no gosto dos fãs da banda, também por causa de seu arranjo orquestral. P. S. Pra falar a verdade, não gosto muito desses arranjos. Sempre me soam pomposos, um tanto inautênticos. Além do mais, fico com a impressão que os musicistas de orquestra odeiam ter que tocar com popstars (é como se fosse um rebaixamento da arte deles, sei lá).