quinta-feira, 21 de outubro de 2010

"O que quer que um outro disser bem é meu"

A frase que intitula esta postagem é de Sêneca. Naturalmente, levando em consideração seu sentido, passa agora também a ser minha. Nada mais adequado para este blog no qual as citações brotam amiúde.

Sobre elas, Luis Fernando Verissimo* escreveu: "são uma espécie de testemunho insuspeito que a gente invoca para reforçar - ou pelo menos, para tornar mais respeitáveis - nossos argumentos". E passa então, comicamente, a discorrer sobre as citações falsas (o que há de mais saboroso nessa sua crônica):

"É difícil provar que uma citação não é verdadeira. Por isso você está livre pra inventar à vontade, sem limites. A não ser, é claro, os limites da honestidade. Mas estes andam muito elásticos ultimamente. Quem arriscará passar por ignorante, desafiando a legitimidade de uma citação? Basta que elas soem autênticas".

Você pode, assim, simular um saber que está longe de possuir, dotando o que escreve de uma aura profunda e inteligente. E pode ficar ainda melhor, sugere o humorista gaúcho:

"Para estar mais seguro, faça o seguinte: invente a citação e invente o seu autor. Escreva por exemplo: 'Na imortal frase de Raspail de Grunyére, na famosa carta que escreveu da prisão para Dindonet, 'les oiseaux, etc'. O etc. dá a entender que todos, claro, conhecem a frase a que você se refere e seria maçante repeti-la".

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Com intenção completamente distinta daquela manifestada por Verissimo, o ensaísta argentino Alberto Manguel (em artigo já mencionado aqui) também fala a respeito do ato de citar**. Lembrando dos movimentos urbanos de protesto, iniciados a partir do maio de 1968, que repudiavam o conservadorismo, ele faz a seguinte observação:

"Nas revoltas estudantis que sacudiram o mundo ao final da década de 60, uma das palavras de ordem, berradas aos professores da Universidade de Heidelberg foi  ' Her wird nicht zitiert! ' ' Nada de citações aqui! '.

Mas Manguel aponta o quanto essa reivindicação era equivocada:

"Os estudantes exigiam pensamento original, esquecendo que citar é continuar uma conversa do passado e dar contexto ao presente; citar é fazer uso da Biblioteca de Babel, citar é refletir sobre o que foi dito antes, pois, se não o fizermos, falamos no vácuo, onde a voz humana não faz som".

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Não me sinto nem um pouco incomodado em incluir, profusamente, longos trechos de outros textos, que acabam suplantando a "parte que me cabe nesse latifúndio". Como já disse Borges, "Que outros se jactem das páginas que escreveram; a mim me orgulham as que tenha lido".

E preciso confessar: há uma certa dose de vaidade em tornar públicas minhas leituras... Dane-se! Estou muito longe de ser santo...

P. S. E para que não recebam a pecha de falsas, as citações apresentadas nas postagens do blog são extraídas das referências incluídas nas notas, presentes ao final de quase todas as atualizações (como essas duas, logo abaixo).
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* VERISSIMO, Luis Fernando. Citações. In: ___________. O rei do rock. 4 ed. São Paulo: Globo, 1999

** MANGUEL, Alberto. O destino da leitura na era da web. Veja, São Paulo, n. 1681, 27 dez. 2000. Disponível em http://veja.abril.com.br/especiais/perspectivas/p_100a.html Acesso em 19 out. 2010

BG de Hoje

CAETANO VELOSO, acho eu, compôs poucos sambas "típicos" na sua longa carreira. Alguns deles são muito bons, como Gema. No vídeo abaixo, vemos TERESA CRISTINA acompanhada do músico baiano.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Para quando a África (2)

"A África é o berço da humanidade [...]. Estou certo de que se Adão e Eva tivessem aparecido no Texas, ouviríamos falar disso todos os dias na CNN".


Joseph Ki-Zerbo

Como observei na última postagem, Joseph Ki-Zerbo trata de muitos assuntos fundamentais para a compreensão mais aprofundada do continente africano, na entrevista concedida a René Holenstein*.

Porém, vou abordar apenas o problema da desvalorização e da homegeneização linguísticas.

A esse respeito, o pensador burquinense tem posição definida: "para repensar o Estado, a partir da natureza plurinacional das sociedades, seria necessário, na minha opinião, regressar à alfabetização e à escolarização nas línguas maternas africanas", ainda que reconheça ser "impensável e impossível rejeitar as línguas impostas pela colonização porque, objetivamente, elas foram integradas ao nosso patrimônio cultural, elas unem povos africanos entre si e com a comunidade internacional".

Como se vê, a proposta de educação linguística de Ki-Zerbo vai ao encontro do que pensa em termos de organização em nível de Estado para os países do contimente:

"Não se pode instalar um Estado federal, na África, com cerca de trinta línguas. Mas reduzindo o seu número a três línguas principais, geralmente pode-se abranger 80% a 90% da população. Se os custos desta estratégia são muito pesados; os ganhos são incomensuráveis".


Diversos países africanos, do ponto de vista da língua oficial, são tidos como lugares nos quais a maioria da população se expressa, supostamente, em francês, inglês ou português. Mas veja o caso do Senegal: "Oitenta por cento da população senegalesa fala uolof; no entanto, não se diz que o Senegal é uolofófono, mas francófono".

Com o objetivo de promover o modelo de alfabetização que propõe, o historiador sugere a adoção de línguas-pontes:

"O haussá, o bambará e o diulá são línguas pontes, que já existem. O diulá é falado pelo menos em oito países da África Ocidental; o haussá, pelo menos em quatro ou cinco, entre os quais a Nigéria, que constitui facilmente metade da população da África Ocidental. As pontes linguísticas entre as diferentes regiões da África Ocidental ajudariam todos esses países a constituírem-se mais rapidamente".


É uma proposta que inverte a lógica da globalização. E pode representar, a meu ver, um antídoto para o perigoso cenário da novilíngua - imaginado por George Orwell - e que temo ser mais próximo da realidade do que seria desejável. Com a palavra, Ki-Zerbo:

"As línguas também dizem respeito à cultura, aos problemas da nação, à capacidade de imaginar, à criatividade. Quando falamos numa língua que não é originalmente a nossa, exprimimo-nos de forma mecânica e mimética, salvo exceções (mas governa-se para as exceções?). Não podemos mais do que imitar. Mas quando nos exprimimos na nossa língua materna, a imaginação liberta-se [...]"

* KI-ZERBO, Joseph. Para quando a África?: entrevista com René Holenstein. Rio de Janeiro: Pallas, 2009 [tradução de Carlos Aboim de Brito]

BG de Hoje

O Rush tocou no Brasil este ano, para a felicidade de muitos fãs. Mas em matéria de bandas vindas do Canadá, sempre fui mais BACHMAN-TURNER OVERDRIVE. Down Down tem o saudável groove adequado a todo bom rock'n'roll. OBS: Não dê atenção ao slideshow meio idiota, curta apenas a música.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Para quando a África (1)



"A revolução é o inverso do existente. É não só virar a página, mas mudar o dicionário".
Joseph Ki-Zerbo

As notícias sobre a África, nos grandes veículos de comunicação de massa brasileiros, tratam, geralmente, de dois únicos assuntos: a fauna da região (de fato, impressionante) ou o persistente estado de guerra em alguns de seus países. Durante a Copa do Mundo de Futebol deste ano, disputada na África do Sul, esperava um retrato mais ampliado do continente. Mas não foi o que vi (nem li) naquele período.

Por isso, considero fundamental a publicação de livros como este que acabei de ler: Para quando a África?*, resultado de longa entrevista feita com o historiador Joseph Ki-Zerbo. Nascido no Alto Volta (atual Burkina Fasso ou Burkina Faso), Ki-Zerbo desempenhou papel relevante nos campos educacional e político em diversos países africanos, como Senegal e Mali, entre outros. Tendo feito seus estudos na Sorbonne, o historiador foi dos primeiros, nas décadas de 1960-1970, a retomar o esforço de produzir, para as ciências sociais em geral, um conhecimento menos etnocêntrico, até então (e é necessário que se diga, ainda hoje) dominado por europeus e norte-americanos. E eis aí outro motivo para a leitura de livros como esse: dar ouvidos a intelectuais de peso fora do eixo EUA-Comunidade Europeia.

Joseph Ki-Zerbo procura compreender o atual estágio - econômico, político e cultural - africano a partir de dois eventos que marcaram, de forma profunda e negativa, a história do continente: o tráfico de escravos durante mais de 350 anos e a condição de colônia, consequência das ações imperialistas deflagradas principalmente a partir do século XIX.

Pensador assumidamente de esquerda - crítico do modelo capitalista de desenvolvimento "sugerido" a todos os países (pobres ou ricos) -, o historiador burquinense afirma que

"[...] não se globaliza inocentemente. Penso que dificilmente poderemos ter um lugar na globalização porque fomos desestruturados e deixamos de contar como seres coletivos. Se você comparar o papel da África e dos Estados Unidos, verá os dois pólos da situação na globalização: os globalizadores, que são os Estados Unidos, e os globalizados, que são os africanos. Não sei de que lado você se situa; quanto a mim, eu sei que sou um globalizado. A África, como continente, situa-se mais nesta categoria, porque é uma questão de relação de forças. É a questão de saber se somos sujeitos da história, se estamos aqui para desempenhar um papel na peça de teatro. Na realidade, não há peça onde só há atores principais. Também deve haver figurantes, isto é, como utensílios e segundas figuras para por em destaque os papéis dos protagonistas".

A desigualdade das trocas culturais entre a África e o "mundo desenvolvido"; a desvalorização e a homogeneização linguísticas; as causas das constantes guerras, o papel do Estado e das formas tradicionais de organização política para o fortalecimento das nações; a importância do conceito de identidade. Esses são alguns dos muitos temas discutidos em Para quando a África?. Retomarei parte deles na próxima postagem. Um, no entanto, considero fundamental: a defesa de uma outra ideia do que significa desenvolvimento. Escreve Ki-Zerbo:

"[...] é necessário tomar a decisão de reconhecer que é difícil classificar países pelo nível de desenvolvimento. É certo que a Ciência postula, exige mesmo a quantificação. Mas as coisas requintadas, refinadas, são realizadas em muitos países pobres do mundo. Pense na cozinha, no vestuário, no artesanato, na arte ou, ainda, na delicadeza e no refinamento das expressões de certas línguas: são coisas que tornam o homem perfeito, no plano humanista, mas que não podem ser tomadas em consideração na identificação ou na classificação do desenvolvimento".

* KI-ZERBO, Joseph. Para quando a África? : entrevista com René Holenstein. Rio de Janeiro: Pallas, 2009 [tradução de Carlos Aboim de Brito]

BG de Hoje

Esta era um banda que eu curtia muito nos anos 1990, quando era um fã xiita do rock pesado: SLAYER. Continuo escutando até hoje, mas sou agora (felizmente, acho) mais aberto a outros gêneros musicais. O nome da canção é Seasons in the abyss.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Adriana Falcão e Lia Neiva

(Adriana Falcão)

"Doze anos, oito meses e quinze dias é o tempo que se leva para dar a volta ao mundo procurando uma pessoa".
 Luna Clara & Apolo Onze - Adriana Falcão.

 
 
Outras duas excelentes obras voltadas para o público infanto-juvenil lidas recentemente foram Luna Clara & Apolo Onze* e Reis, viajantes e vampiros: aventuras ao redor do mundo**.

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A escritora Adriana Falcão já havia lançado, em 2001, um ótimo livro para crianças: Mania de explicação (premiado pela FNLIJ - Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil). Luna Clara & Apolo Onze, publicado logo depois, mantém o bom humor característico da autora. Mas também chamaram minha atenção neste livro as criativas alterações no tempo narrativo e as mudanças ligeiras de cena, destacando ora um, ora outro personagem (ou grupo de personagens). Aliás, a profusão destes anima e tonifica o texto. Adriana Falcão foge da linearidade pouco imaginativa que costuma afetar alguns livros escritos para crianças e adolescentes.

Luna Clara & Apolo Onze, entre outras coisas, fala do poder exercido em nossas vidas pelas coincidências (ação do acaso ou do destino, pouco importa). Nesse aspecto, é preciso atentar para o papel de certas velhinhas surgidas na narrativa (mas não vou revelar o segredo delas para não tirar o prazer do possível leitor).

Exemplos do bom humor do texto? Observe esta explicação do culto papagaio Pilhério, personagem do livro:

" - Por favor, Pilhério, o que vem a ser eufemismo?
  - É o ato de suavizar uma ideia substituindo a palavra ou expressão por outra mais agradável, mais polida.
  - Fiquei na mesma.
  - Eufemismo é em vez de se dizer que você é uma burra completa, dizer apenas que você é um pouco desprovida de inteligência, sua burra completa! - ele simplificava!"

Repare agora nesta tentativa de metaforização:

"A ponte oscilava de um lado para o outro como um pêndulo furioso, explicando melhor, como uma colher de pau batendo um bolo, explicando melhor ainda, como uma ponte frágil, feita de cordas e troncos balangando de um lado para o outro debaixo de uma tempestade".

Ou ainda as muitas "Nossas Senhoras" invocadas ao longo da história. Uma pequena mostra: Nossa Senhora do Falta Bem Pouquinho, Nossa Senhora do Preciso Urgentemente de Uma Boa Notícia, Nossa Senhora dos Amigos que Precisam da Gente, Nossa Senhora do Que é Que Eu Faço...

É para ler e curtir.

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Reis, viajantes e vampiros é de Lia Neiva, escritora habilidosíssima, que tem o saudável hábito de respeitar a inteligência das crianças e dos jovens para os quais escreve.

Neste livro, Neiva trata da(s) narrativa(s) por detrás das narrativas. Dizendo de outro modo: a autora relata os antecedentes históricos e o contexto cultural e geográfico relacionado a grandes obras da ficção universal, valendo-se de cinco personagens legendários: Robinson Crusoé, Rei Arthur, Drácula, o Máscara de Ferro e Simbad, O Marujo. "Conduzido pela prosa cativante e bem construída de Lia Neiva, o leitor atravessa diferentes períodos da História e da Literatura", como observa Maria Elizabeth Graça de Vasconcellos, no prefácio do livro.

Em minha opinião, entre os muitos méritos de Reis, viajantes e vampiros, destacaria dois deles: 1) o postscriptum ao final de cada capítulo, trazendo dados complementares e curiosidades relacionadas a cada uma das narrativas; 2) a maneira competente como a autora ajuda a qualificar as leituras do público jovem, uma vez que este trabalho de Lia Neiva é também um exercício de crítica literária.
 
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* FALCÃO, Adriana. Luna Clara & Apolo Onze. 2 ed. São Paulo: Salamandra, 2006 [ ilustrações de José Carlos Lollo]

** NEIVA, Lia. Reis, viajantes e vampiros: aventuras ao redor do mundo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008 [ilustrações de Iuri Lioi]

BG de Hoje

O Brasil tem tantas ótimas cantoras (e compositoras) que fica difícil destacar algumas delas. CÉU é uma das que mais gosto. Abaixo, Malemolência, apresentada no indispensável programa Ensaio, da TV Cultura.