quarta-feira, 18 de julho de 2018

É possível abstrair-se da política?: Lendo As meninas, de Lygia Fagundes Telles


Não saberia dizer se As meninas - passados 45 anos de seu lançamento - é um livro ao qual os leitores têm retornado (pois talvez seja considerado uma obra datada). Mas acho que deveriam.

É um escrito ambicioso, muito embora não se divise a sua ambição à primeira vista. Tratemos, pois, de evidenciá-la.

Lygia Fagundes Telles lançou mão de um formato narrativo não empregado em nenhum de seus dois romances até então publicados (Ciranda de Pedra e Verão no aquário), nem em nenhum de seus contos (até onde sei). A adoção do discurso indireto livre e a utilização do fluxo de consciência não eram novidades em sua prosa; entretanto, a escritora procurou ser, digamos, um pouco mais experimental do que vinha sendo. Isso pode ser verificado com facilidade nas passagens em que a voz narradora cabe a Ana Clara. Observemos o seguinte excerto ¹ , tirado do oitavo capítulo:

"Viro na boca a garrafa e meus poros se abrem e meu peito se abre. Vidão. Não fosse esse negro aí berrando não gosto mesmo de negro. Nem de branco. Não gosto de ninguém. Todos uns bons sacanas que não perdem a chance de mijar na cabeça da gente. Agora quem vai mijar sou eu! grito e fico rindo de feliz. Max eu te amo eu te amo eu te amo. Beijo seu sapato que está em cima do meu biquíni. O sapato. Amo o sapato dele amo tudo mas tenho que ir tenho que ir. Quando me desbloquear a gente vai rolar de gozo. Beijo meu Agnus Dei que prendi no biquíni amo meu Agnus Dei amo Madre Alix minha santa não fique triste que em janeiro minha santa santa. E minhas roupas pomba? Sumiu tudo. Queria ser invisível e sair como o cara dos quadrinhos como era o nome dele. Ele sai e entra e ninguém vê".

No esquema de As meninas, o tema do amor (e da expectativa em torno do sexo) é explorado, sobretudo, em Lorena; Lia retrata, na maior parte das vezes, a militância ideológica e a oposição à ditadura; Ana Clara, por sua vez, sintetiza, principalmente, o tópico do abuso e da dependência no consumo de drogas. Não é de se surpreender, portanto, que as passagens narradas por Ana Clara sejam aquelas com maior incidência de dizeres fragmentários, com rupturas bruscas no encadeamento das sentenças e das frases (efeitos perceptíveis graças a ausência de determinados sinais de pontuação) ². Atenção para este outro excerto, de um capítulo bem anterior:

"Meu joelho está molhado. Uísque? Uísque é evidente. Como pode ser baba? Teria que ser um crocodilo. Abro os braços de alegria ah aquela estrada. Falar. É preciso falar tudo é ir falando o tempo todo deixar correr a confissão como vai correndo o mijo. Quero mijar vou de rastros até o banheiro agora sou vegetal se alastrando. Trono alto tenho que fazer na banheira levantar a perna como o Lulu. Vou ter daqueles cachorros bacanérrimos com pintinhas pretas e olho azul como é o nome? Aquele. Mas também quero um vagabundo com a cara do Lulu. A única coisa decente que tive a única que me amou vem Lulu eu chamava".

Vamos nos deter um pouco no trecho "É preciso falar tudo e ir falando o tempo todo deixar correr a confissão como vai correndo o mijo". Das três personagens centrais, Ana Clara é a única a se submeter a sessões de psicanálise, custeadas por Madre Alix, a freira que dirige o pensionato N.S.F. (Nossa Senhora de Fátima, talvez?) onde elas moram. É propício fazer notar que foi nos anos 1960-70 que o Brasil experimentou o boom das terapias dessa natureza entre as parcelas mais privilegiadas da sociedade. Ao longo de As meninas, encontrar-se-ão várias outras referências à psicanálise, bem como a seus praticantes (destaco, a esse respeito, o capítulo 10, quando Lia, involuntariamente, fica na posição de "analista" da mãe de Lorena). Isso demonstra uma certa preocupação de Telles em contextualizar o período histórico no qual o romance está inserido - ainda que de um ponto de vista de classe restrito. Outro exemplo simples, mas ilustrativo: o gato de estimação de Lorena chamava-se Astronauta, óbvia alusão às então recentes missões espaciais da NASA. As menções a determinados músicos (Jimi Hendrix, Caetano Veloso, Gilberto Gil) e até a determinadas marcas de automóvel fazem parte do mesmo expediente de contextualização. Nesse sentido, deve-se também destacar a questão da linguagem, intimamente relacionada com a questão do foco narrativo discutida acima. Numa entrevista a Edla van Steen ³, Telles declarou:
"Em As meninas quis dar às minhas personagens toda a liberdade. À medida que elas iam vivendo, o enredo ia se modificando, soltei as rédeas, confesso que em determinado momento não conduzi mais, fui conduzida: sim, houve muito de imprevisível, deixei as meninas na sua exaltação para me concentrar na linguagem. A pesquisa era na direção da linguagem. Da revolução dessa linguagem. Alguns críticos sentiram minha ânsia de renovar, e foi essa a recompensa para tanto trabalho e aflição: reescrevi o livro três vezes, tomada pelo demônio da insatisfação".
A autora incluiu gírias e coloquialismos da época, sem receio - afinal, tínhamos que ter acesso (da forma mais vívida possível) à corrente de pensamentos (intensos e passionais, muitas vezes) de três jovens universitárias, bem diferentes entre si, vivendo na maior cidade brasileira, entre os anos 1960-70 e em meio a um golpe militar. Sabemos, contudo, que são os registros idiomáticos os principais "culpados" pela "datação" de um texto literário. O risco, porém, valeu a pena.

Entretanto, creio que As meninas notabiliza-se, principalmente, por seu dimensionamento político. E aqui cabe uma reflexão.

Noutra entrevista, concedida ao programa Roda Viva em outubro de 1996 (disponível aqui), Lygia Fagundes Telles diz a certa altura: "O bom escritor, sem arrogância eu digo isso, está naturalmente
engajado na política [...] Nós nos comprometemos, nós somos escritores comprometidos com a política". Pessoalmente, não consigo (com poucas exceções) ter grande disposição de leitura quando percebo que determinado texto literário adota um tom supostamente isento, evitando comprometer-se com os problemas de seu tempo ou ignorando fenômenos sociais - e isso vale também para gêneros erroneamente considerados imunes à política, como a ficção científica e a fantasia. Por isso, concordo com a autora. Para muitos(as) bons(boas) escritores(as), não dá pra esquecer a política, abstrair-se dela e simplesmente escrever uma história neutra. Significaria uma falta de compromisso consigo mesmos(as). NOTA: Até textos mergulhados no subjetivismo ou com arrojados projetos estetizantes, não raro, presumem o cenário sociopolítico. É possível que as duas atitudes representem inclusive reações a esse cenário.

Quanto a Telles, o que podemos dizer?

Obviamente, falando de As meninas, a ditadura é o dado histórico que salta aos olhos. Enquanto a rica Lorena fica em sua "concha" (segundo suas próprias palavras) e Ana Clara, de infância miserável e embrutecida, busca refúgio no torpor das drogas e no sonho delirante do casamento milionário, Lia integra uma das muitas células de resistência ao regime. E embora a personagem por vezes seja mais uma caricatura dos jovens de esquerda na segunda metade do século XX do que qualquer outra coisa, é através dela que a contestação à ditadura pode ganhar corpo dentro do livro (não custa lembrar que As meninas foi publicado em 1973, com os militares ainda no poder e a censura em plena vigência). E muito embora Lia não aja ("[...]ah, tão longe a fala do ato. Se eu não falasse tanto em fazer amor, se Ana Clara não falasse tanto em enriquecer, se Lião não falasse noite e dia em revolução", pensa Lorena em dada passagem), é numa conversa entre ela e Madre Alix, por exemplo, que a autora aproveita para escrever um depoimento no qual a prática da tortura é descrita com toda a sua crueldade e torpeza (capítulo 6).

Mas a palavra política, sabemos, tem um significado mais amplo, ligado às relações humanas em geral. E nesse ponto o romance de Lygia Fagundes Telles é valioso, ao promover a abordagem de questões fundamentais para aquele período (a liberação sexual, por exemplo) e algumas primordiais até hoje (a desigualdade).

Antes de encerrar, gostaria de reproduzir um trecho do terceiro capítulo. A voz narradora é de Lorena:

"Nasci num tempo de violência. Orfeu chegou a comover as feras com sua lira e eu não consegui comover nem o Astronauta. Enfim, um gato é um gato mas como gostaria de mandar minha palavra de equilíbrio, de amor ao mundo mas sem entrar nele, é lógico [...] Bom é ficar olhando a sala iluminada de um apartamento lá adiante, as pessoas tão inofensivas na rotina. Comem e não vejo o que comem. Falam e não ouço o que dizem, harmonia total sem barulho e sem braveza. Um pouco que alguém se aproxime e já sente odores. Vozes. Um pouco mais e já nem é espectador, vira testemunha. Se abre o bico para dizer boa-noite passa de testemunha para participante. E não adianta fazer aquela cara de nuvem se diluindo ao largo porque nessa altura já puxaram a nuvem para dentro e a janela-guilhotina fechou rápida. Eram laços frouxos? Viraram tentáculos. Ah, que alegria quando fico aqui sozinha. Sozinha".

Será que "entrar no mundo" nunca será algo desejável de se fazer? Preferiremos (falo por mim e a personagem) ficar sempre numa distância supostamente segura, recusando-nos a ser testemunhas (que dirá participantes)? E, portanto, a satisfação só se dá no isolamento?

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¹ TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. 16 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 1985

² Outro exemplo da nova técnica narrativa empregada pela escritora no romance está nesta passagem (a voz agora é de Lia):
" ' Se você acredita no homem você acredita em Deus', disse Madre Alix. Não sei explicar mas o que quero dizer é que acreditar nessas histórias absurdas que os homem contam. Quanto mais simples e inocentes forem mais me envolvem com suas façanhas de heróis e santos, vem, mãe, vem me encher de superstições que não entram na minha rotina mas também não esqueço, vem de noite me coçar as costas e depois abrir meu cabelo, a Ivanilda, aquela porcalhona passou piolho pra classe inteira. O avental cor de café-com-leite tinha um sabiá no bolso".  
³ TELLES, Lygia Fagundes. Entrevista concedida a Edla van Steen e publicada em VAN STEEN, Edla. Viver e escrever: volume 3. 2 ed. Porto Alegre: L&PM, 2008. p. 146-160

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O Colonized?, meu outro blog, escrito em inglês, também voltou a ser atualizado. Não dei a devida atenção a ele no ano passado, mas tentarei remediar as coisas agora. Como já disse noutra oportunidade, os textos de lá não são nada parecidos com os daqui, pois meu objetivo é apenas me exercitar num idioma que não é o meu. Caso esteja interessado(a), eventual leitor(a), o endereço é https://lousantino.blogspot.com . 
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BG de Hoje

Eu ia incluir essa canção como BG numa postagem sobre Verão no aquário, um outro romance de L. F. Telles. Mas acabei desistindo daquele texto (decidi, pelo menos por um tempo, trazer aqui para o blog apenas os livros de que gosto. E como não sou um grande fã de Verão no aquário...). De todo modo, Princesa (Torta de maçã), do SCATOLOVE, precisava aparecer por aqui, de um jeito ou de outro, simplesmente porque adoro essa canção. Então, lá vai.

quarta-feira, 11 de julho de 2018

Pelo menos sei de Olanna, Odenigbo, Ugwu, Richard, Kainene...


Poucos acontecimentos podem degradar tanto os seres humanos quanto a guerra.

Não obstante, parece que nossa espécie nunca se livrará desse flagelo. A guerra, praticada desde os primeiros esboços de civilização, provavelmente acompanhará a humanidade até... até... a sua extinção (que, sabemos, pode inclusive ser propiciada por uma conflagração nuclear global).

Segundo a organização não-governamental IRIN, há, hoje, mais de 30 conflitos armados, de média e larga escala, em andamento pelo planeta (entre guerras civis, lutas separatistas e tomadas/domínio de território por potentados ou chefões do tráfico de drogas), acarretando a morte de milhares de pessoas diariamente - seja por ataques diretos, seja por impedir o acesso dos indivíduos a alimentos ou cuidados médicos.

Não é segredo para ninguém que uma grande parte dos confrontos bélicos não recebe a devida atenção dos veículos de comunicação (sobretudo por acontecerem no antes chamado Terceiro Mundo) e, pensando naqueles já encerrados (alguns há bem poucas décadas), quase nada se ouve, se lê ou se aprende a respeito desses confrontos. É o caso da guerra civil da Nigéria, também conhecida como Guerra de Biafra, ocorrida entre 1967 e 1970. Resultando em mais de um milhão de pessoas mortas (algumas fontes falam em até três milhões), vítimas, principalmente, da fome e da falta de medicamentos causadas por bloqueios militares, esse conflito é retratado no livro Meio sol amarelo, de Chimamanda Ngozi Adichie¹.

Importante ressaltar, contudo, que não se trata aqui de um relato preso à mera concatenação de fatos do passado, como se fosse uma espécie de acerto de contas com a história recente do país. Não. Estamos diante de um empreendimento literário (um ótimo empreendimento, diga-se de passagem). Por isso, julgo adequado fazer algumas considerações antes de falar propriamente da narrativa em questão.

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 No célebre ensaio A personagem do romance ², Antonio Candido escreve:

"Portanto, os três elementos centrais dum desenvolvimento novelístico (o enredo e a personagem, que representam a sua matéria; as 'ideias', que representam o seu significado, - e que são no conjunto elaborados pela técnica), estes três elementos só existem intimamente ligados, inseparáveis, nos romances bem realizados. No meio deles, avulta a personagem, que representa a possibilidade de adesão afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificações, projeção, transferência etc. A personagem vive o enredo e as ideias, e os torna vivos. Eis uma imagem feliz de [André] Gide: 'Tento enrolar os fios variados do enredo e a complexidade de meus pensamentos em torno destas pequenas bobinas vivas que são cada uma das minhas personagens' ".

No parágrafo seguinte de seu texto, Candido fará questão de salientar que "a construção estrutural é a maior responsável pela força e eficácia de um romance", admitindo, porém, que a leitura deste depende "basicamente da aceitação da verdade da personagem por parte do leitor". Se, como escreveu o ensaísta, apenas o amálgama dos três elementos - ideias (isto é, os intuitos, significados e valores que o texto veicula), enredo e personagens - poderá fornecer a estrutura apropriada para um bom livro, é difícil não conceder, porém, que o último componente é preponderante na maneira como nós, fruidores modernos de literatura, assimilamos as narrativas ficcionais nos dias de hoje. Se, de fato, os personagens não podem existir sem uma urdidura textual e uma cosmovisão que os sustenha, é preciso reconhecer (e assim o faz o falecido e saudoso crítico), que os/as personagens são "o elemento mais atuante, mais comunicativo da arte novelística moderna, como se configurou nos séculos XVIII, XIX e começo do XX".

Pois bem. À medida que vamos avançando pelas páginas de Meio sol amarelo, nos damos conta de que seus/suas personagens, tanto os/as centrais quanto os/as secundários(as), constituem, indiscutivelmente, as peças mais importantes do livro. São eles/elas que nos dão, como diria Antonio Candido, a "impressão de vida" do livro.

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O romance de Chimamanda Ngozi Adichie se divide em quatro partes (alternando entre o início dos anos 1960, pré-guerra, e o final desta mesma década, com o confronto em curso), totalizando 37 capítulos. Apesar do registro em 3ª pessoa, a narração privilegia o olhar das situações tal como essas são vivenciadas por:

  • Ugwu, rapaz egresso do interior da Nigéria e que vai trabalhar como serviçal na casa de um professor, na pequena cidade-universitária de Nsukka; 
  • Richard, cidadão britânico, aspirante a jornalista/escritor, fascinado pela arte antiga local; 
  • E, sobretudo, por Olanna, jovem nascida na elite nigeriana, formada em Londres, que decide trabalhar na Universidade de Nsukka, para onde segue, acompanhando seu companheiro, Odenigbo (o professor anteriormente mencionado).

No encerramento de alguns capítulos, paralelamente à história que vai sendo contada, aparece o esquema de um outro livro - O mundo estava calado quando nós morremos (e cuja autoria é revelada perto do final). É neste que se encontra a seguinte observação: "Em 1960, na época de sua Independência, a Nigéria era um conjunto de fragmentos presos por um frágil fecho".

É oportuno lembrar que a ação imperialista/colonialista efetuada pela Europa no continente africano, intensificada a partir da Conferência de Berlim (1884-85), produziu impactos cujas consequências, graves, perduram até hoje na região. Como afirma a professora Leila Leite Hernandez (Universidade de São Paulo) ³,

"A carta geopolítica da África [estabelecida nas últimas décadas do século XIX] estava basicamente pronta, sendo boa parte das fronteiras conservada, no seu conjunto, até os dias atuais. Com isso foram desconsiderados os direitos dos povos africanos e as suas especificidades históricas, religiosas e linguísticas. Em outras palavras, as fronteiras da nova carta geopolítica da África, aprovada na Conferência de Berlim, raramente coincidiram com as da África pré-colonial"

Em razão de demarcações que atendiam exclusivamente às conveniências do expansionismo europeu, povos com grande identidade cultural foram separados, enquanto outros, consideravelmente diferentes uns dos outros, forçados a conviver dentro de um mesmo país recém-inventado. Hernandez acrescenta:

"Assim, confirmados pelos Estados nacionais, os traçados das fronteiras coloniais permanecem, no seu conjunto, até os dias de hoje, por vezes potencializando uma série de conflitos de intensidade variável que, rompendo os limites territoriais de cada país, encontram condições propícias para se regionalizar. É preciso sublinhar que a 'questão étnica' apontada como causa de praticamente todas as 'guerras internas' na África é fruto da manipulação política, em grande parte das vezes, segundo interesses econômicos e políticos de alguns setores das elites africanas associadas às empresas europeias e norte-americanas"

A Nigéria, nação cuja independência deu-se apenas em 1960, experimentou - e experimenta ainda hoje - muitos dos problemas decorrentes desse período de sistemática dominação/exploração por parte dos pretensos países desenvolvidos. Odenigbo, numa passagem de Meio sol amarelo diz: "a grande tragédia do mundo pós-colonial não é não ter dado à maior parte a chance de dizer se queria ou não esse novo mundo; a grande tragédia é que a maioria não recebeu as ferramentas para negociar nesse novo mundo".

Voltemos ao livro de Chimamanda Adichie.

Como defendemos acima, Meio sol amarelo é um livro tão vívido porque apresenta um convincente conjunto de seres fictícios, ou seja, seus personagens. O evento histórico no qual se assenta em nada limita a inventividade da autora. Na nota adicionada ao final da narrativa, Adichie faz questão de registrar que, a despeito de se basear na guerra Nigéria-Biafra, "algumas liberdades foram tomadas, em nome da ficção". O que me remete a outra passagem do texto de Antonio Candido anteriormente citado. Escreve o ensaísta:

"O romancista é incapaz de reproduzir a vida, seja na singularidade dos indivíduos, seja na coletividade dos grupos. Ele começa por isolar o indivíduo no grupo e, depois, a paixão no indivíduo. Na medida em que quiser ser igual à realidade, o romance será um fracasso; a necessidade de selecionar afasta dela e leva o romancista a criar um mundo próprio, acima e além da ilusão de fidelidade".

Ainda que a existência concreta sirva de parâmetro, romancistas, enquanto artistas, não devem forçar seus escritos a coincidirem rigorosamente com o mundo real, se quiserem fazer um bom trabalho. Romances são um objeto estético: importa antes (falando sobretudo dos personagens) produzir uma caracterização que resulte de uma "escolha e distribuição conveniente de traços limitados e expressivos, que se entrosem na composição geral e sugiram a totalidade dum modo-de-ser, duma existência", sublinha Candido.

Na mesma nota final da qual falávamos, a escritora deixa claro que sua intenção é retratar suas "próprias verdades imaginadas e não os fatos da guerra. Ainda que alguns personagens tenham como base uma pessoa real, seus retratos são fictícios, assim como os eventos dos quais fazem parte".

E esses seres e episódios imaginários nos atingem em cheio.

Adichie, nas partes do livro que tratam do período pré-guerra, habilmente faz com que o leitor se torne íntimo dos personagens, para que, nas partes que descrevem os horrores do conflito, vislumbremos suas emoções (e dores e sofrimentos) com uma assombrosa sensação de proximidade. Esse artifício também permite que não percamos de vista uma questão, sempre trazida à tona nas histórias de guerra: como preservar a própria dignidade e manter-se íntegro em cenários de violência, penúria e medo? A esse respeito, há uma frase bem significativa de Kainene, a irmã gêmea de Olanna: "Estamos todos nessa guerra e cabe a nós decidir se vamos nos tornar outra pessoa ou não"A escritora, porém, é atenta para não transformar personagens em reservas de magnanimidade. Em resenha publicada no New York Times no mesmo ano de lançamento de Meio sol amarelo (2006), o professor Rob Nixon (University of Wisconsin - Madison) chamou atenção para "o tom de empatia [exibido pelo livro] que nunca sucumbe aos impulsos simplificadores, heroicos ou demoníacos, da literatura em defesa de uma causa". Ele observa que "mesmo os mais honrados de seus personagens têm falhas humanizadoras". Esse desejo de olhar para o(s) tema(s) sem reducionismos pode ser verificado em muitos momentos.

Num deles, Olanna, que aderiu de corpo e alma à causa biafrense, diz, num dos capítulos finais: " 'Eles venceram, mas nós fizemos isso' [...] e percebeu como era esquisito dizer eles venceram, dar voz a uma derrota na qual não acreditava. Seu sentimento não era o de ter sido derrotada; era o de ter sido enganada". Guerras (e isso é ainda mais patente nos séculos XX e XXI) são conduzidas a partir de decisões tomadas seguindo a orientação de poderosos interesses - políticos e principalmente econômicos - bastante localizados. Além disso, a propaganda circulante em meio ao conflito (inclusive a do lado que julgamos certo) é um recurso que se vale, quase sempre, da mistificação. Nesse aspecto, combatentes e civis (os que sangram, matam e morrem) acabam se tornando, absurdamente, a parte menos importante. Talvez seja disso que Olanna tenha se dado conta.

Noutra passagem, também nas páginas de encerramento, Richard está junto a algumas pessoas pelas quais não tem muita afeição (sendo que a uma delas dedica forte inimizade). Além do mais, a perda de uma pessoa muita querida durante a guerra o abalara muito. É quando se lê: "Não sabia muito bem se queria entrar numa daquelas conversas que quase todo biafrense tratava agora, passando grãos de culpa para os outros e besuntando a própria cara com o valor que nunca tiveram".

Já comentei aqui no blog sobre aquela famosa fala de Chimamanda Ngozi Adichie na primeira das suas TED Talks - "Histórias importam. Muitas histórias importam". Diversos ocorridos, assuntos, lugares e culturas possivelmente não chegariam ao conhecimento de muitos de nós não fossem por obras ficcionais que os têm como temas principais ou ancilares. Portanto, contar essas histórias é fundamental, mesmo que algumas sejam dolorosas às vezes. No 34º capítulo de Meio sol amarelo alguns personagens tentam lidar com a lembrança do que testemunharam e viveram durante a guerra. Olanna, numa ocasião, fugindo de Kano (cidade localizada no Norte do país e um dos primeiros focos do conflito), viajou num trem abarrotado ao lado de uma mulher que carregava a cabeça cortada da filha dentro de uma sacola. Em meio a todo o horror daquilo, contudo, ela reparara no penteado da cabeça. Ugwu, nessa altura da narrativa, prestes a iniciar sua vida adulta, faz anotações nos papéis que consegue encontrar. Atenção para este impressionante trecho:
" ' E como eram as tranças?' , perguntou Ugwu.
De início Olanna se espantou com a pergunta, depois percebeu que lembrava perfeitamente como o cabelo fora trançado, e começou a descrever o estilo do penteado, com algumas trancinhas caindo pela testa. Depois descreveu a cabeça, os olhos abertos, o acinzentado da pele. Ugwu escrevia, enquanto Olanna falava, e o fato de ele escrever, a sinceridade de seu interesse, de repente fez sua história adquirir importância, a fez servir a um propósito maior, que nem mesmo Olanna sabia bem qual era -e então contou tudo o que se lembrava sobre o trem cheio de gente chorando, gritando e urinando"

Há quem diga (e não são poucos, infelizmente) que poemas, contos e romances não passam de exercícios supérfluos, que nada se aprende com a criação literária. Este blogueiro, claro, discorda veementemente. Personagens como Olanna, Odenigbo, Ugwu, Richard, Kainene, Arize e outros ensinaram-me tanto quanto (ou mais do que) a leitura de um texto não-ficcional poderia fazê-lo. É como disse Adichie na TED Talk mencionada acima: "Histórias foram usadas para despojar e difamar, mas histórias também podem ser usadas para empoderar e humanizar. Histórias podem partir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade partida".

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¹ ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Meio sol amarelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 [Tradução de Beth Vieira]

² CANDIDO, Antonio. O personagem do romance. In: ____________.(et al) A personagem de ficção. 9 ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 51-80

³ HERNANDEZ, Leila Maria Gonçalves Leite. A África na sala de aula: visita à história contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2005



P. S. Meio sol amarelo também foi adaptado para o cinema, num filme lançado em 2013, com Thandie Newton, Chiwetel Ejiofor e John Boyega no elenco. Aqui você pode ver o trailer.



BG de Hoje

Os paranaenses do MACHETE BOMB não escondem sua principal influência: a banda norte-americana Rage Against the Machine. Lançando mão de - como o nome do grupo já indica -  instrumentos e levadas típicas do samba (pra quem não sabe, o cavaquinho também já foi chamado de machete), eles dão uma outra cara ao estilo rap-rock desenvolvido por Tom Morello & Cia. Confira na pulsante faixa Fatcap.