quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

"Vida sem utopia não entendo que exista"


Nunca se deve desprezar a eficácia da mistificação e do falseamento da realidade para se atingir determinados objetivos políticos. 

Pensemos, por exemplo, na tal "ameaça comunista".

Quanta iniquidade tivemos (e temos) que aturar porque parte das pessoas vive em constante temor da  "ameaça comunista"!

Houve, claro, diversas motivações para o golpe (civil-)militar de 1964, mas um dos pretextos mais usados para justificá-lo - assim como a ditadura que o seguiu - foi o de "proteger o Brasil do comunismo". Mais recentemente, estamos testemunhando a ascensão de grupos truculentos, intolerantes e obscurantistas, sendo uma das evidências dessa escalada a ultrajante administração federal atual (como se já não bastasse a maioria de congressistas antipobre, prepostos da plutocracia nacional, além de outros que parecem saídos da Idade Média), vociferando slogans como "Nossa bandeira jamais será vermelha!" ou denunciando o perigo do "marxismo cultural" (que diabo é isso?).

Tenha paciência! Em que momento, do passado ou do presente, o país deu mostras cabais de que partiria, na bucha, para o comunismo? É sério: quando, em nossa história, aqueles que mandam e desmandam por aqui desde antes da instalação da República dormiram agoniados só por imaginar que sua acumulação de capital corria risco de cessar?

Entretanto, não é difícil convencer a classe média e os pobres-que-acham-que-não-são-pobres de que os comunas subversivos estão logo ali na esquina prontinhos para tomar tudo o que é seu. Protejam-se! Protejam-se! A precarização do trabalho é cada vez mais dramática, assim como a desigualdade socioeconômica, mas "para o futuro do Brasil, só a luta contra os comunistas é prioritária", escreveu no Twitter, meses atrás, o ex-astrólogo que é guru de integrantes dos grupos acima referidos.

Por que tanta paúra, minha gente?

Há alguns dias, estava refletindo sobre a canção Um comunista, de Caetano Veloso, que faz parte do disco Abraçaço, lançado em 2012.

Não é uma faixa radiofônica. É longa, se pensarmos em termos de música pop (tem mais de 8 minutos); o andamento é lento; há pouca variação melódica. Gosto dela, porém.

Abaixo, reproduzo a letra da canção:

Um mulato baiano,
Muito alto e mulato
Filho de um italiano
E de uma preta hauçá [haussá]
Foi aprendendo a ler
Olhando o mundo à volta
E prestando atenção
No que não estava à vista
Assim nasce um comunista

Um mulato baiano
Que morreu em São Paulo
Baleado por homens do poder militar
Nas feições que ganhou em solo americano
A dita guerra fria
Roma, França e Bahia

Os comunistas guardavam sonhos
Os comunistas! Os comunistas!

O mulato baiano, mini-manual
Do guerrilheiro urbano que foi preso por Vargas
Depois por Magalhães
Por fim, pelos milicos
Sempre foi perseguido nas minúcias das pistas
Como são os comunistas

Não que os seus inimigos
Estivessem lutando
Contra as nações-terror
Que o comunismo urdia
Mas por vãos interesses
De poder e dinheiro
Quase sempre por menos
Quase nunca por mais

Os comunistas guardavam sonhos
Os comunistas! Os comunistas!

O baiano morreu
Eu estava no exílio
E mandei um recado:
[que]"eu que tinha morrido"
E que ele estava vivo,
Mas ninguém entendia
Vida sem utopia
Não entendo que exista
Assim fala um comunista

Porém, a raça humana
Segue trágica, sempre
Indecodificável
Tédio, horror, maravilha
Ó, mulato baiano
Samba o reverencia
Muito embora não creia
Em violência e guerrilha
Tédio, horror e maravilha

Calçadões encardidos
Multidões apodrecem
Há um abismo entre homens
E homens, o horror
Quem e como fará
Com que a terra se acenda?
E desate seus nós
Discutindo-se Clara
Iemanjá, Maria, Iara
Iansã, Catijaçara

O mulato baiano já não obedecia
Às ordens de interesse que vinham de Moscou
Era luta romântica
Era luz e era treva
Feita de maravilha, de tédio e de horror

Os comunistas guardavam sonhos
Os comunistas! os comunistas! 

Em se tratando de uma homenagem, o caráter, digamos, narrativo da canção foi mais do que acertado. 

Embora o letrista "não creia/em violência e guerrilha", Carlos Marighella  - "mini-manual do guerrilheiro urbano" - representou mais do que um combatente. Para além dos elementos biográficos citados, é esse outro valor representativo que a composição realça.

. . . . . . .

Em agosto de 1967, na cidade de Havana, foi organizada a 1ª Conferência da OLAS (Organização Latino-Americana de Solidariedade). O Partido Comunista Brasileiro - então sem registro eleitoral, desde 1947 - decidiu não mandar representantes, mesmo tendo sido convidado. Marighella foi, contrariando o comitê central, que enviou comunicado ao seu correspondente cubano, ameaçando expulsar o ex-deputado federal baiano e desautorizando-o como porta-voz do PCB. Creio que a resposta dada por Carlos Marighella a esse comunicado é bastante útil para a discussão da postagem de hoje; vamos ler um trecho dela (foi reproduzida no essencial livro Batismo de sangue  ¹, de Frei Betto):

"É evidente que compareci [à conferência] sem pedir permissão ao Comitê Central, primeiro porque não tenho que pedir licença para praticar atos revolucionários, segundo porque não reconheço nenhuma autoridade revolucionária nesse Comitê Central para determinar o que devo e o que não devo fazer... As divergências que tenho com a Executiva, da qual já me demiti em data anterior, são as mesmas que tenho com o atual Comitê Central. Uma direção pesada como é, com pouca ou nenhuma mobilidade, corroída pela ideologia burguesa, nada pode fazer pela revolução. Eu não posso continuar pertencendo a esta espécie de Academia Brasileira de Letras, cuja única função consiste em se reunir (...). Falta ao Comitê Central a condição mais importante para a liderança marxista-leninista, que é saber conduzir e enfrentar a luta ideológica. E como não pode fazê-lo, recorre a medidas administrativas constantes, suspendendo, afastando, expulsando militantes, apreendendo documentos e proibindo a leitura de materiais dos que discordam. É o Comitê Central da censura, das reprimendas, das desautorizações, do crê ou morre. (...) Em minha condição de comunista, à qual jamais renunciarei, que não pode ser dada nem retirada pelo Comitê Central, pois o Partido Comunista e o marxismo-leninismo não têm donos e não são monopólios de ninguém, prosseguirei pelo caminho da luta armada, reafirmando minha atitude revolucionária e rompendo definitivamente com vocês".

Na época em que se deu a Conferência da OLAS, o Brasil vivenciava o autoritarismo dos generais. Diante de um regime discricionário e opressor, como se deve reagir? 

"Uma ditadura" - escrevem Lilia Schwarcz e Heloisa Starling ² - "é formada por mandantes arbitrários, oposicionistas tenazes e uma população que precisa sobreviver - parte dela atravessa em silêncio, com medo ou apenas conformada com o tempo de arbítrio". É forçoso admitir que uma contestação de massa à ditadura não aconteceu ³. A oposição encontrava-se fragmentada e dispersa. Parte daqueles e daquelas que se dispuseram a combater o regime efetivamente associaram-se em grupos como o MR-8, a VPR ou a ALN (a Ação Libertadora Nacional, criada por Marighella). "Algumas dessas organizações eram minúsculas", observam as historiadoras, "poucas tiveram força e estrutura suficientes para desafiar a ditadura, e a maioria formou-se a partir de dissidências originadas pela derrota sem resistência sofrida pelo Partido Comunista, em 1964; mas quase todas optaram pela luta armada".

Os indivíduos que partiram para a guerrilha avaliaram (com acerto, vale dizer) que a quartelada causadora da deposição de João Goulart (presidente que ocupava legitimamente o cargo e pretendia, aparentemente, colocar em prática reformas defendidas pela esquerda) não seria algo passageiro, indolor e sem maiores consequências para o futuro do país. Para essas pessoas, as únicas ações políticas aceitáveis naquele momento histórico eram as ações revolucionárias. NOTA: É irônico que uma parcela dos militares chame o golpe executado por eles de revolução: uma revolução feita para que tudo continuasse a ser com sempre foi...

A resposta de Marighella ao comitê central do PCB, como se lê, ilustra o seu rompimento com o partido, instituição que, na visão do guerrilheiro, parecia acomodada à situação, além de manter-se numa reprovável subordinação doutrinária: "o mulato baiano já não obedecia/às ordens de interesse que vinham de Moscou", como canta Veloso. Sua "luta romântica" - no sentido de se pautar por ideais e cujos principais objetivos eram irrealizáveis, pelo menos naquele momento - não conseguiu, entretanto, causar qualquer abalo no regime ditatorial. A esse respeito, Frei Betto assinalou:

"Muitos ingressavam na organização [ALN] sem nenhum preparo político, movidos pela mística revolucionária, acreditando que a luta obedeceria a um desenvolvimento linear até a vitória final [...] A prática revolucionária restringia-se quase que exclusivamente às ações armadas que, sem apoio popular, tornavam-se cada vez mais vulneráveis à ofensiva da repressão. Não se fazia trabalho político de massa, nem se sabia como incorporar os trabalhadores à luta política. A guerrilha, praticamente restrita às cidades, colocava-se como alternativa ao trabalho de base, à organização popular, como se ela fosse capaz de, por si só, deflagrar o descontentamento latente no povo, materializando-o no efetivo apoio ou participação na luta".

A esquerda brasileira continua cometendo parte desses erros até hoje, agora noutro contexto histórico.

. . . . . . .

Não é ocioso lembrar que críticas ao capitalismo são anteriores a Marx e seus escritos (as jornadas diárias em que os trabalhadores mal tinham tempo de se alimentar e dormir o suficiente, verificadas durante a Revolução Industrial, bem como as condições de trabalho degradantes em vários ramos da atividade econômica - com trabalho infantil generalizado, inclusive -, geravam indignação já em seu tempo). O que a obra do pensador alemão fez foi aprimorar e aperfeiçoar a crítica, conferindo maior coerência e profundidade.

Entretanto, ao pressagiar uma sociedade humana sem classes, igualitária (portanto, sem exploradores e explorados), graças ao fim da propriedade privada dos meios de produção (embora falte a explicação de como a economia funcionaria de fato numa tal sociedade), Karl Marx, involuntariamente, assumiu ares de profeta para muitos (o caráter teleológico de seu pensamento dá margem a isso) e o comunismo foi tido por eles como a garantia de que um mundo mais justo se instalaria de um modo ou de outro. Obviamente, essa garantia não existe. Estamos aqui no terreno da utopia - o que não que dizer ilusão.

Estou entre aqueles que, apesar de compreender e aceitar a categorização vigente, não circunscreve o comunismo (e, por agregação, o socialismo) ao que foi feito na antiga União Soviética, na China (mesmo agora, após as últimas décadas de feroz competitividade ao estilo capitalista) e em outros países mundo afora. Mas, por uma questão de honestidade, não se pode evitar falar desses lugares. 

Não tenho necessidade de arrolar aqui os crimes e atrocidades cometidos por dirigentes pertencentes a essas nações (as "nações-terror", das quais Caetano Veloso fala na canção); são fatos bastante divulgados e devem ser repudiados e não repetidos. Espero, contudo, que o(a) eventual leitor(a) já tenha notado que, muitas vezes, enfatizam-se esses aspectos maléficos para que se chegue a conclusão de que o capitalismo é, por conseguinte, a melhor coisa do mundo. Pergunto: melhor para quem, cara-pálida? Possivelmente não para os quase 40 milhões de norte-americanos abaixo da linha de pobreza (cito esse fato porque geralmente os EUA são apontados como exemplo de que o capitalismo é uma maravilha pra todos...).

Se experiências colocadas em prática na União Soviética, na China e em outros países revelaram-se insatisfatórias (cruéis, em muitos casos) e distantes da expectativa de justiça abrangente que prenunciavam, não se deveria abandonar de vez a ideologia socialista/comunista?

Não. Por causa, justamente, da dimensão utópica do comunismo.

Para mim, em boa parte das ocasiões não se ganha nada dizendo que algo é utópico e, portanto, não se deve gastar tempo ou esforço com aquilo. Ao pensar num outro mundo/outra sociedade/outra forma de trabalhar/outra forma de produzir, diferentes dessa perversa corrida de ratos que é a vida de quem não detém o controle do capital e os meios de produção (ou seja, a vida da imensa maioria dos indivíduos no capitalismo), pode surgir a disposição de alterar o status quo, nem que seja só um pouco, para que as coisas se tornem - quem sabe? - mais dignas para um maior número de pessoas. Será que é possível almoçar e jantar opressão, desigualdade e conformismo todos os dias sem sequer imaginar outros modos de se viver? Vida sem utopia/não entendo que exista...

Caetano Veloso canta: "os comunistas guardavam sonhos". O verbo está no passado. O que quer dizer que não guardam mais. Nesse ponto discordo um pouco do letrista. A melhor parte desses indivíduos ainda os conserva, mesmo que não sejam capazes de fazer "com que a terra se acenda" e "desate seus nós".

__________

¹ BETTO, frei (Carlos Alberto Libânio Christo). Batismo de sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982

² SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. No fio da navalha: ditadura, oposição e resistência. In: Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 437-466

³ Existe explicação para a falta da resistência de massa à ditadura. Entre alguns dos fatores que podem ser apontados estão: a censura generalizada, ocultando informações do público sobre ilicitudes e negociatas do governo; o enfraquecimento e mesmo a extinção dos sindicatos, além de repressão pesada aos movimentos de trabalhadores; um grande contingente populacional ainda vivendo em áreas rurais (mesmo com o aumento da urbanização desde a década de 1950) e, portanto, longe dos centros de poder e incapazes, assim, de exercer qualquer tipo de pressão sobre os autocratas. Importante mencionar também que, como observam Schwarcz e Starling, "todo governo, para se sustentar, depende de alguma forma de adesão, e o 'milagre econômico' [altas taxas de crescimento do PIB entre 1968 e 1973] ajudou a fabricar uma base de consentimento junto à população [junto à classe média, diria eu, pois os operários e os demais trabalhadores de baixa renda, com salários achatados e impedidos de reivindicar melhorias, não costumavam (e não costumam) fazer parte daquilo que se convenciona chamar de "opinião púbica"]".

BG de Hoje

Não poderia ser outro: CAETANO VELOSO, Um comunista.

domingo, 29 de novembro de 2020

O poder




Ao contrário do que comumente se pensava, no caso dos primatas, viver em grupos pode ter sido um salto evolutivo e não um processo gradual. Seja como for, a sociabilidade é uma forte característica dessa ordem de animais. De nossa espécie, em particular, pode-se dizer sem erro que a humanidade não seria o que é se não nos tivéssemos associado em comunidades, progressivamente mais complexas ao longo do tempo.

Se por um lado o aumento da complexidade das relações sociais contribuiu, junto com outros fatores, para o desenvolvimento cognitivo da espécie humana - intrinsicamente vinculado à sua sobrevivência -, por outro gerou efeitos colaterais, como as distinções baseadas na força e na intimidação, bem como a estruturação de hierarquias e a instauração de autoridades nem sempre benignas. 

Estatuíram-se assim os que mandam e os que, sem alternativa, obedecem; os senhores e os escravos; os dominadores e os dominados. 

Enfim, aqueles que dispõem de muito poder e aqueles que têm pouco ou nenhum.

Obviamente, compreendo que a vida civilizada não seria possível sem o estabelecimento de instituições de comando e controle (governos, sistemas jurídicos, órgãos de segurança pública, etc.) ¹. Entendo também que a disputa pela direção a ser tomada pelo Estado faz parte da luta política (e não é recomendável esquivar-se dessa luta: como escreveu Fernando Brant, "o medo de amar é/ não arriscar,/ esperando que façam por nós/o que é nosso dever,/ recusar o poder").

Não nos esqueçamos, porém, de que o poder, em grande parte das situações, ancora-se nalguma modalidade de violência e coerção (física ou simbólica).

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Independentemente das falhas que por ventura exiba, o filme Brightburn (2019 - direção de David Yarovesky) tem ao menos um excelente ponto de partida.

E se uma criatura similar a Kal-el/Clark Kent/Superman não tivesse seguido o virtuoso caminho de paladino do bem? - essa é a pergunta que está subentendida em toda a narrativa. 

Despretensiosa estocada na onda de filmes de super-heróis ², Brightburn mostra como o garoto Brandon Breyer, entrando na adolescência, descobre seus dons sobre-humanos e torna-se um monstro, sem perder a carinha de anjo.

Desde o tempo em que era um dedicado leitor de quadrinhos, nunca engoli aquela conversa fiada de que o elevado senso moral do sobrevivente de Krypton, bem como a sabedoria e a parcimônia nos uso de seus assombrosos poderes, deviam-se aos ensinamentos recebidos no seu lar em Smallville, sobretudo os conselhos e lições dadas pelo pai adotivo humano, Jonathan Kent. E só o princípio da suspensão voluntária da descrença aplicado em dose extra consegue explicar a aceitação dessa tremenda implausibilidade.

Falando em olhar crítico para o filão dos super-heróis, não posso deixar de mencionar a ótima série satírica The Boys, produzida pela Amazon e exibida no seu serviço de streaming, adaptação da obra em quadrinhos homônima criada em 2006 por Garth Ennis e Darick Robertson.

Homelander, um dos personagens centrais (tão dotado de poderes quanto o Superman e brilhantemente interpretado pelo ator Antony Starr), é - nada mais, nada menos - um sociopata, segundo o produtor e showrunner da série, Erick Kripke. Algo previsível, já que foi criado num laboratório, marcado por profundas lacunas emocionais e com a capacidade de estraçalhar qualquer um que o contrarie.

Não bastasse o próprio poderio individual dos super-"heróis"/super-"heroínas", em The Boys, outras forças alinham-se a essas figuras sinistras ou ajudam a sustentá-las: a indústria do entretenimento, igrejas, parte da mídia, além, é claro, de uma corporação global gigantesca, responsável, aliás, pelo surgimento de todos(as) eles(as).

Se há uma lição a ser extraída em Brightburn e The Boys (embora seja sempre meio ridículo falar em lição a se extrair) parece ser a de que todo poder corrompe.

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"Todo poder corrompe"...

Esse conhecido adágio inevitavelmente nos remete à famosa frase de John Dalberg-Acton (1834-1902): "o poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente, de modo que os grandes homens são quase sempre homens maus"

É divertido notar que pessoas de direita gostam de citar esse enunciado como forma de criticar governantes e quaisquer intervenções ou mecanismos adotados por eles(as) que impliquem ampliação do controle do Estado - principalmente sobre a atividade econômica. Menciona-se sempre que Lord Acton foi um ardoroso defensor do livre-mercado, da liberdade individual e parte de sua obra anteviu os males do que, desde o século passado, chamamos de totalitarismo. 

Creio que ninguém em sã consciência deseja um Estado totalitário. Também tenho em mente que a liberdade individual é um valor pelo qual vale a pena se empenhar. Até aí, o aristocrata britânico e este blogueiro "esquerdopata" não discordam. Suponho, porém, que apenas uma parte pequena do pessoal de direita a que aludi acima consegue perceber a contradição entre propugnar pelo liberalismo (no campo econômico, mas não só) e conservar os privilégios oriundos da condição de nobre, já que Acton foi barão (e condenava o sufrágio universal, diga-se de passagem).

Além disso, em parte por credulidade, mas em parte também por hipocrisia, costuma-se convenientemente não admitir o inegável fato de que proprietários e executivos de megaempresas, donos e diretores de bancos, grandes investidores (em meu juízo, especuladores) das bolsas de valores, etc. também detêm poder - muito poder! -  e vários deles subornam, corrompem, arquitetam fraudes e golpes com a mesma (e às vezes até mais) desenvoltura que agentes do Estado inescrupulosos.

Entretanto, é contra os administradores públicos em geral que os protestos e queixas das populações são lançados na imensa maioria das situações nas quais se dá abuso ou mau uso do poder.

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Por fim, não poderia deixar de falar de A decapitação dos chefes ³, de Italo Calvino.

Segundo o ficcionista italiano, as quatro partes que compõem esse escrito (publicado em 1969) seriam esboços de capítulos de um livro que ele pretendia escrever no qual se apresentaria "um novo modelo de sociedade". As duas primeiras partes se passam no tempo em que vive o narrador; as duas últimas referem-se a situações e eventos ocorridos numa época mais antiga.

Ao chegar a uma cidade - a capital de um país não nomeado no texto -, o narrador descobre que naquele dia ocorreria a decapitação dos dirigentes da localidade, uma cerimônia regimental e até festiva, de certa forma. Dentro de um bar, ele ouve de um dos fregueses:

"A autoridade sobre os outros é uma coisa que só existe junto com o direito que os outros
têm de fazer você subir num palanque para ser morto, um dia não muito distante... Que autoridade teria um chefe se não vivesse cercado por essa expectativa? E se não lêssemos nos olhos dele, essa expectativa, o tempo todo que dura o seu mandato, segundo após segundo?"

Um outro habitante do lugar já havia dito: "Quando a fruta está madura é colhida, o chefe é decapitado. O senhor deixaria as frutas apodrecerem nos galhos?"

A explicação para o surgimento de norma tão insólita e implacável está nas duas últimas partes da engenhosa história de Calvino, graças à ação bem-sucedida de um movimento político intitulado Volja i Raviopravie. Os nomes de extração eslava (não só o do movimento como os dos personagens ligados a este), as menções a um czar e a uma Duma, levam o leitor a pensar, inevitavelmente, na Revolução Russa de 1917. Talvez seja um modo do autor ironizar os rumos tomados pela União Soviética em sua experiência de "comunismo/socialismo real", na qual, aliás, dirigentes e governantes perpetuavam-se nos cargos. O objetivo do Volja i Raviopravie era instaurar "uma sociedade igualitária em que o poder fosse regulado pelo assassinato periódico dos chefes eletivos", pois, segundo a teoria que o guiava "cada função de comando só era admissível se exercida por quem já tivesse renunciado a gozar dos privilégios do poder e virtualmente não pudesse mais ser incluído entre os vivos".

Estaria aí a solução para evitar o aviltamento de nossas administrações? Estou só perguntando...

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¹ Ao mencionar a expressão vida civilizada, não descuido da advertência do filósofo romeno Emil Cioran: "Naquilo que concordamos denominar 'civilização' reside inegavelmente um princípio diabólico do qual o homem apenas se deu conta demasiado tarde, quando não era mais possível remediá-lo".

² Espero que o(a) eventual leitor(a) não me entenda mal. Divirto-me, como boa parte da pessoas, com filmes de super-heróis. Alguns, acho realmente bons. Porém, creio que muitos de nós concordam que o formato está ficando meio cansativo, não? Além do mais, como li em algum lugar - e fico com raiva por não lembrar onde -, há algo de errado com histórias que querem nos convencer de que sujeitos podres de ricos (Bruce Wayne, Tony Stark e - por que não - T'Challa) estão nobremente dispostos a bancar os benfeitores.

³ CALVINO, Italo. A decapitação dos chefes. In: _________. Um general na biblioteca. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 125-138 [Tradução de Rosa Freire D'Aguiar]

BG de Hoje

Entre os muitos subgêneros do rock, o punk nunca foi um dos meus prediletos. Entretanto, como negar sua poderosa influência/inspiração? Que o digam os caras da (já veterana) banda sueca THE HIVES, em canções vigorosas como Hate To Say I Told You So.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

O Spotify e eu


O último CD que comprei foi no ano passado: Greatest Hits: Back to the Start, uma coletânea do Megadeth, lançada em 2005.

Estava num supermercado e avistei um display cheio de discos de artistas variados ao preço de R$ 9,90 cada um. Pensei: Por que não?

Eu sei. É estranho ler que alguém se dispôs a pagar por um CD há pouco mais de um ano, pois praticamente todo mundo neste milênio simplesmente baixa (de graça) na internet as músicas que quer ouvir  - afinal, a obtenção de arquivos de música no formato MP3 (e outros menos cotados), graças aos torrents da vida, é praticada intensa e desbragadamente há cerca de duas décadas (convém também recordar o percursor - e transgressor - papel do Napster na história do compartilhamento de música via web).

Entretanto, gosto de comprar álbuns de música (em formato de CD, no caso). Ou, pelo menos, gostava

Já cheguei a ter 822 (hoje, 307). Claro, são números ridiculamente pequenos (basta mencionar que o falecido Kid Vinil possuía um acervo com mais de 20.000 itens, sendo quase a metade em CD), mas que me dão uma satisfaçãozinha fetichista boba.

Não só isso.

A aquisição desses álbuns, penso, faz parte também do respeito e da admiração que tenho pela condição e atividade artísticas (isso parece falso e pernóstico, mas que se dane!). Quando meu grande interesse por música pop surgiu, na adolescência, não havia qualquer condição financeira para iniciar uma coleção de discos. Nem sequer tinha um emprego! Eventualmente, conseguia comprar um ou outro vinil que desejava muito, mas foi só a partir dos 23 anos que passei a contar com um salário mensal, regularmente pago. Embora baixa, é essa remuneração que me permitiu consumir música para além do rádio (com o qual tenho uma relação de amor e ódio - qualquer dia escrevo sobre isso). Os primeiros CDs que comprei - e até hoje estão comigo - foram o Facelift e o Dirt, ambos do Alice in Chains

Há cerca de dois anos, tornei-me assinante do Spotify. E tudo mudou.

A ideia de fazer pirateamento de canções na internet sempre me desagradou. Devo admitir, porém, a imensa comodidade desse expediente. Por isso o serviço de streaming  me atraiu tanto: proporciona uma conveniência semelhante a de "baixar" músicas, sem me deixar contrariado. 

Que ninguém me leia, mas acho o valor que pago hoje - R$ 16,90/mês - uma pechincha.

Ao que parece, empresas como o Spotify ainda não representam a solução para o mercado da música. Artistas (desde os megafamosos até os que estão buscando um lugar ao sol) não pulam de alegria com os exíguos valores pagos pela execução de suas canções nas plataformas. E mesmo com as receitas chegando perto dos 2 bilhões de euros (caso do Spotify), o negócio ainda não pode ser chamado de lucrativo. Fato é que o modelo comercial implementado pelas grandes gravadoras e praticado inalteravelmente durante as quatro últimas décadas do século passado foi atingido em cheio pela internet - ferido de morte, talvez, como aconteceu com o jornalismo. Resta saber se o streaming será sustentável economicamente no médio e longo prazos; em especial, saber se será justo para com os instrumentistas, compositores e intérpretes.

Como ia dizendo, contudo, o Spotify modificou consideravelmente minha maneira de consumir música (levando-me, inclusive, a pensar em desistir de vez de aumentar minha diminuta coleção de CDs).

Mantenho lá 15 playlists, organizadas de acordo com categorias boladas por mim ou de acordo com a "serventia" que espero delas (por exemplo, canções para se ouvir num clima de festa - ou num clima de fossa -; faixas para acompanhar minha rotina de arremessos e drills quando pratico basquete no quintal de minha residência, etc ¹.). Posso montar e alterar essas playlists em pouquíssimo tempo, passar de uma para a outra, sem dificuldade, no smartphone. Fora aquelas tantas feitas por outros usuários e pelo próprio Spotify (do tipo "This is..." ou por gênero) das quais sou seguidor. Posso continuar ouvindo álbuns inteiros também, se quiser, pois uma infinidade deles está disponível por lá. Suponho não ser diferente no Deezer ou no Apple Music. A maioria dos assinantes dessas plataformas de streaming deve fazer um uso similar ao que acabei de descrever, creio eu.

O que torna esse tipo de serviço tão fascinante para mim, contudo, não vem da descomplicação com as playlists.  

É ótimo poder "pesquisar" artistas que sempre me despertaram curiosidade, mas não a ponto de me levar a comprar um disco. Posso ouvir rapidamente trechos de canções ou até álbuns inteiros de artistas de todo o planeta (estou me familiarizando com o pop de países africanos e finalmente diminuindo minha ignorância em relação ao jazz, por exemplo)! Posso "experimentá-los(las)" e, caso não goste, não existe o arrependimento de ter adquirido um CD que dificilmente ouvirei de novo ². E graças à conexão bluetooth, desfruto o que mais gosto no meu equipamento de som sem ter o trabalho de ficar trocando CDs. 

Porém, o melhor do Spotify são as sugestões e dicas que aparecem para o assinante, baseadas nas faixas que se vai escutando. Descobertas da semana e Radar de novidades são um modo muito legal e suave de ir ampliando o horizonte do apreciador de música. Parece que os algoritmos podem servir para alguma coisa boa... (hmm... não sejamos assim tão apressados na avaliação positiva, como se pode ler nessa ótima matéria de Joseba Elola, publicada no El País em dezembro de 2018).

Ah, e antes de terminar, enfatizo que esta postagem não é propaganda; não estou recebendo nenhum tostão furado para tratar da empresa sueca - o que não seria um problema, diga-se de passagem. Saiba o(a) eventual leitor(a) (como já escrevi aqui e noutras ocasiões) que o mister de blogueiro, ao qual me dedico há mais de 10 anos, não me rende grana alguma. Infelizmente, aliás . 

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¹ Só pra ilustrar, tenho uma playlist chamada Outside sucks, uma mistureba de gêneros (e idiomas), mas cujo agrupamento faz todo o sentido pra mim; outra chamada Prazer culpado, só com canções bregas brasileiras que eu adoro; ou a Damn heart, com canções sentimentais e românticas em inglês que as vezes me fazem chorar.

² Poderia, é claro, fazer essa "pesquisa" no Youtube, por exemplo, mas nem sempre estou no computador quando ouço música (e tenho um plano de internet bem modesto no meu celular). Além do mais, usar o Youtube para isso não ajuda em nada (ou ajuda bem pouco) na valorização de determinados(as) cantores(as) e instrumentistas.

BG de Hoje

Aprecio muito quando artistas resolvem gravar canções compostas ou popularizadas por outros artistas. E quando se trata de um álbum inteiro de covers? Tanto melhor! É o caso de Renegades, disco gravado há 20 anos pelo RAGE AGAINST THE MACHINE. Minhas versões preferidas são Down on the Street, dos Stooges, e Renegades Of Funk, que, na minha opinião, ficou muito melhor do que a original, gravada pelo pioneiro do hip-hop e do rap Afrika Bambaataa (& The Soulsonic Force). Ouça abaixo:

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Falou e disse...

 (Sobre os ateus)

"E aqui está o ponto, acerca de mim mesmo e de meus copensadores. A nossa crença não é um credo. Nossos princípios não são uma fé. Não nos baseamos unicamente na ciência e na razão, porque estas são fatores necessários mas não suficientes, mas desconfiamos de qualquer coisa que contradiga a ciência ou afronte a razão. Podemos diferir em muita coisa, mas o que respeitamos é a livre inquirição, a mente aberta, e a busca das ideias por elas mesmas. Não sustentamos nossas convicções de forma dogmática: [...] Não somos imunes à sedução do prodígio, do mistério e da reverência: temos música, arte e literatura, e achamos que os dilemas éticos sérios são mais bem tratados por Shakespeare e Tolstói, Schiller e Dostoiévski e George Eliot do que nos contos de moralidade míticos dos livros sagrados. A literatura, e não a escritura, sustém a mente e - já que não há outra metáfora - também a alma. Não acreditamos em céu ou inferno, todavia nenhuma estatística jamais concluirá que sem essas lisonjas ou ameaças cometemos mais crimes de cobiça ou violência que os fiéis. (Na verdade, se fosse possível fazer algum dia uma pesquisa estatística apropriada, estou seguro de que a evidência indicaria exatamente o contrário.) Nós aceitamos o fato de viver apenas uma vez, a não ser por meio dos nossos filhos, para os quais ficamos felizes em observar que devemos abrir caminho e dar espaço. Nós especulamos que é no mínimo possível que, uma vez que as pessoas aceitem o fato de suas vidas breves e árduas, elas possam se comportar melhor umas em relação às outras, e não pior. Acreditamos com certeza que uma vida ética pode ser vivida sem religião. E sabemos como fato que o corolário também vale - a religião tem levado inúmeras pessoas não só a se conduzir pior que outras, mas a lhes conceder permissão para se comportar de maneiras capazes de franzir a testa de uma dona de bordel ou de um responsável por limpeza étnica". *

* HITCHENS, Christopher. Deus não é grande: como a religião envenena tudo. 2 ed. São Paulo: Globo Livros, 2016. p. 18-21 [Tradução de George Schlesinger]

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Quando se deixa de ser quem se pensava ser?


Na infância (até por volta dos 12-13 anos e a despeito de ser um negro pobre), imaginava que me tornaria veterinário na vida adulta.

Eu tinha afeição pelos animais domésticos e muita curiosidade pelos que vivem na natureza. Lembro-me de ter conseguido comprar, no começo dos anos 1980, todos os 40 fascículos da Zoo (publicação da Rio Gráfica Editora, se não me engano), lançados semanalmente nas bancas de jornais. Achava a coleção muito bacana, bem ilustrada e com boas fotos. Cada fascículo era dedicado a uma família de animais ou, às vezes, mais de uma, dependendo da proximidade delas dentro da ordem ou da classe a que pertenciam. Havia informações sobre o tipo de alimentação de cada bicho, sobre seus habitats. Achava o máximo saber o nome científico das espécies. Olhando retrospectivamente, talvez o que eu pensava ser "quando crescesse" era tornar-me biólogo, não veterinário, mas esse discernimento me faltava naquela época.

E hoje?

Não sou nem uma coisa nem outra - até porque, no tempo da escola, eram vergonhosas minhas notas em ciências,  nem a Biologia salvava (e a pobreza continuou).  Detesto cachorros e gatos (e tenho vontade de esganar quem se declara ou se comporta como "mãe (ou pai) de pet"). Quanto aos animais selvagens, só me dou conta deles quando assisto a algum documentário com essa temática na TV, domingo pela manhã (são ótimos quando se acorda de ressaca).

Acredito que não tenho nada a ver com a criança que um dia fui - e não só por causa do lance profissional.

Com sinceridade, espanto-me toda vez ao ouvir alguém dizer que "desde pequeno(a) sabia que no futuro iria virar isso ou aquilo" ou quando afirma "ter os mesmos traços de personalidade desde a meninice". Como conseguiram?

É bom avisar que essa arenga não é culpa de Aos 7 e aos 40, de João Anzanello Carrascoza (Editora Cosac Naify, 2013). Ainda assim, lendo-o, fiquei me perguntando: quando é que se deixa de ser quem pensávamos ser? Pondo de lado os assombrosos indivíduos que, adultos hoje, pensam ser a projeção (com poucas variações) do que eram quando crianças, creio que um considerável número de pessoas (como este blogueiro), de vez em quando, fica um pouco (ou muito) atônito a tentar descobrir quando, em que momento, apareceu esse eu de agora, tão dessemelhante de seus eus anteriores, principalmente do eu criança.

O personagem central de Aos 7 e aos 40, a certa altura, diz estar "habituado a ver nos homens o menino que continham, assim como via em si, sempre, o garoto que fora um dia". Capacidade invejável. Ou não.

O romance é dividido em 12 capítulos, cujos títulos antitéticos (Nunca mais e Para Sempre; Silêncio e Som, etc.) reforçam a divisão espacial das páginas, realçada por tons de cores distintos. O artifício (que se quer engenhoso, mas, em minha opinião, pueril) marca a alternância do foco narrativo: ora o narrador, em primeira pessoa, relembra momentos da infância, ora fala do presente, já adulto, em terceira pessoa.

Uma observação.

Uso o termo romance a contragosto (na falta de outro vocábulo), muito embora resenhas classifiquem assim esse trabalho de Carrascoza, bem como é o que está na CIP do volume de que disponho. Penso, contudo, faltar ao livro a encorpadura que se espera das narrativas usualmente categorizadas como romances. Em entrevista publicada em 2018, no site da Biblioteca Nacional, recuperou-se uma declaração do autor, ex-publicitário e atualmente professor na ESPM e na USP, que dissera usar "a rapidez da propaganda para deixar o texto literário menos gorduroso e a literatura para não fazer propaganda convencional". Carrascoza fala então em "texto justo, sem excessos" e que este é "um aliado atraente para tocar o leitor". Essa estratégia parece estar dando certo para ele, a contar pelos prêmios recebidos. O que não me impede de achar o romance de que estamos falando meio ralo. O escritor, a meu ver, tem se saído melhor como contista.

Algumas palavras sobre as seções que fecham o livro.

Há um belo paralelismo nas páginas finais. No penúltimo capítulo (Fim), o narrador diz:

"Para mim [quando menino], havia o dia (a escola, os amigos, as brincadeiras) e a noite; mas a noite não era o fim do dia, a noite (o medo, o cansaço, o sono) era apenas uma longa e escura hora antes de um novo dia".

No último (Recomeço), faz outra avaliação, agora adulto:

"Para ele, àquela altura, havia o presente (o trabalho, a solidão, o menino) e todas as ausências (o pai, a mãe, a mulher) e elas aumentavam a cada ano, os dias eram apenas uma longa e iluminada hora entre duas noites".

Enquanto a criança ainda olha para o mundo com uma certa expectativa animada, o homem crescido já sabe que "a vida era o que era [...] tudo no caminho é para ficar lá atrás, as pessoas carregam só aquilo que deixam de ser, o presente é feito de todas as ausências". Mesmo assim ele decide rever o lugar da infância, tentado reencetar a rota de sua existência.

Conseguirá? 

BG de Hoje

Não é das minhas bandas preferidas, mas o WEEZER, admito, grava umas coisas sensacionais vez ou outra. Por exemplo, Do You Wanna Get High?

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

O artista, King Kong e Kafka


Quando, em março deste ano, li a notícia de que o endividado Cirque du Soleil poderia decretar falência (impossibilitado de se apresentar em virtude da pandemia de COVID-19), senti uma pontada de tristeza, ainda que não tenha nenhum apreço especial pela organização.

Todos sabemos que o Cirque du Soleil é hoje uma grande marca empresarial. De uma trupe de artistas de rua, criada por Guy Laliberté e Gilles Ste-Croix em 1984, na região de Quebec, virou um empreendimento que movimenta muito dinheiro: um fundo de investimentos norte-americano e outro chinês são os atuais proprietários, além da firma público-privada canadense CDPQ. Antes da pandemia, a dívida da companhia chegava a 900 milhões de dólares, mas os credores estavam abertos à negociação. Com o cancelamento ou adiamento das apresentações pelo mundo afora, tudo ficou mais difícil. Cerca de 95% dos funcionários foram demitidos!

Devo dizer que nunca assisti a qualquer de seus espetáculos - um deles, Ovo, passou pela cidade onde vivo (Belo Horizonte) em 2019. Na ocasião, faltou a grana do ingresso, claro, mas também não estava assim tão desejoso para ir. Toda a badalação em torno da companhia, pelo menos em suas turnês pelo Brasil, me parece meio cafona, um provincianismo que vê na aquisição do tíquete para o show uma forma de consumo conspícuo. Enfim, como disse acima, não morro de amores pelo Cirque du Soleil.

Por que, então, lastimei a notícia de sua possível falência?

Ao contrário da maioria das pessoas, sempre considerei os circos espaços de melancolia.

São ambas recordações de infância. Na primeira vez, creio que acompanhado por minha irmã mais velha, fui a um circo modesto, cujas arquibancadas vazias me decepcionaram muito, pois imaginava um local abarrotado de gente, rindo e falando alto. As performances, por outro lado, me agradaram bastante, mas o volume baixo dos aplausos daqueles poucos espectadores soavam doloridos. Na saída, muitas roupas penduradas em varais improvisados, próximos a barracas, me lembraram que muitos ali talvez nunca conseguissem ter uma casa própria... Na segunda ocasião, poucos anos depois, debaixo de uma lona bem maior, muitas pessoas esperavam pelas atrações. Adorei sobretudo os números de trapézio. Ao sair, desta vez, reparei num camelo, colocado em uma jaula. O bicho não participara da apresentação. Solitário entre as grades, apresentava sinais de maus-tratos. Tive pena.

A precariedade do nomadismo, as viagens nem sempre feitas nas melhores condições, a ausência ou indiferença do público, os animais castigados (muito embora estes estejam paulatinamente deixando de ser usados em trabalhos do tipo), tudo isso me faz experimentar certa tristeza ao olhar para a atividade circense.

Há, ainda, a questão da formação do artista.

Quanta dedicação e tempo são necessários para se ter um bom equilibrista, trapezista ou malabarista? Como saber se determinado indivíduo possui as qualidades certas para ser um palhaço ou mágico?

E, depois de formado, que garantias têm essas pessoas de que seu ofício poderá sustentar uma vida digna? Repare, eventual leitor(a), que mesmo uma companhia gigantesca como o Cirque du Solei dispensou milhares de empregados. É certo que a pandemia de COVID-19 prejudicou - e prejudicará - a vida de muitos artistas, principalmente aqueles/as que necessitam da presença in loco do público para exibirem sua arte (e a maioria das demissões no Cirque du Soleil decorre precisamente da crise sanitária). Mas a condição do artista, muito antes do coronavírus, parece ser sempre marcada pela instabilidade, sendo mais desfavorável ainda para aqueles(as) que não gozam de renome ou projeção.

Se uma grande empresa não consegue resistir a adversidades, o que poderão fazer os circos pequenos?

. . . . . . .

Ao pensar na condição do artista, lembrei-me do King Kong. Falo da refilmagem lançada em 2005, dirigida por Peter Jackson (e disponível no catálogo da Netflix).

Tive um pouco de má vontade na primeira vez em que assisti ao filme, há alguns anos. Nada contra o diretor: anteriormente, Jackson havia feito algo formidável na trilogia d'O senhor dos anéis. E certamente em virtude desse sucesso, deve ter tido carta branca para realizar o que quisesse. A profusão de efeitos especiais e CGI de ponta, no caso de King Kong, confirmaram que o orçamento não foi problema. Daí minha má vontade. Julguei, apressadamente, que o filme se resumia a um blockbuster medíocre. Ao revê-lo nestes dias de distanciamento social, passei a ter outra opinião, bem mais positiva.

Para o propósito da postagem de hoje, três personagens parecem feitos de encomenda: Carl Denham (vivido por Jack Black, um ator cujo trabalho aprecio muito), Jack Driscoll (interpretado por Adrian Brody) e, claro, Ann Darrow (papel reservado a Naomi Watts). Por isso, é importante ressaltar também o bom trabalho do trio de roteiristas: o próprio Peter Jackson e suas parceiras habituais - a esposa, Fran Walsh, e Philippa Boyens.

Carl Denham é um cineasta ganancioso e quase sem escrúpulos. Se não chega a ser o vilão da história, será aquele que receberá a maior parte da animosidade dos espectadores. Mas é ele quem faz as coisas acontecerem. Para que uma produção artística se realize, não bastam apenas a visão artística, o sonho ou o desejo. É preciso por a mão na massa e, em grande parte dos casos, obter financiamento. A Denham não falta esse senso prático. E, apesar de sua calhordice, não consigo deixar de admirar sua obstinação em manter a câmera ligada e filmando, mesmo em meio a situações mortais. 

Jack Driscoll e Ann Darrow representam o outro lado, o lado imaginativo e até um pouco quimérico. Ele, um dramaturgo e roteirista pouco conhecido, em busca de posição: ela, uma pobre atriz e performer de vaudeville, sem emprego e perspectiva. É bastante significativo que os dois personagens abram mão da possibilidade de fama ao se afastarem do projeto de Denham, quando este consegue levar o gorila gigante para Nova York.

Há uma sequência, ainda na primeira parte do filme, quando Denham e Darrow se conhecem.  Após pagar uma refeição para a faminta atriz, o cineasta tenta convencê-la a participar de seu novo filme. Diz que ela seria perfeita para o papel pois é "a garota mais triste que ele já conheceu" e que ela faria todo o público chorar. Ann, então, diz que ele está equivocado, pois ela "faz as pessoas rirem" (pensando provavelmente nos seus números no vaudeville, que, aliás, têm muito a ver com o circo). 

Denham estava certo. Ann é triste. A tristeza, contudo, resulta principalmente de sua situação e condição de artista. Uma mulher pobre tentando conseguir seu lugar ao sol no volúvel mundo dos espetáculos nas primeiras décadas do século passado. E mesmo que ela possua talento - esse atributo tão necessário a todos os tipos de artistas, mas que escapa a um assentamento objetivo -, não há segurança para nada. 

Se me permite o(a) eventual leitor(a), me afastarei um pouquinho do tópico central da postagem, para um breve comentário. Revendo King Kong, fiquei imaginando toda a dificuldade enfrentada por Naomi Watts, pois como contracenar com um animal de 9 metros de altura que não está lá?!? Olhando fotos dos sets de filmagem, é possível ver a atriz algumas vezes ao lado de Andy Serkis (o ator que interpreta o gorila), "vestido" com os apetrechos usados para a captura de movimento (e Serkis é perito nesse tipo de atuação). Watts disse numa entrevista (infelizmente, não consegui encontrá-la agora na web) que ao menos tinha, em algumas cenas, a possibilidade de olhar nos olhos do outro ator e assim dar seguimento à sua interpretação. De todo modo, não foi fácil.

. . . . . . . 

A condição do artista finalmente me leva a refletir sobre outro ponto: não há arte (e, portanto, não há artista) se esta não se dá ao olhar de um outro (ou não se oferece à audição de um outro, no caso da música). Mesmo aqueles que dizem fazer arte apenas para si mesmos, exibem publicamente pelo menos parte daquilo que fazem.

Toda vez que leio o conto Um artista da fome, de Franz Kafka - e me lembro de como o próprio escritor tcheco tratou sua produção literária -, é nessa questão que penso em especial.

Em certo momento da narrativa, o artista se vê "abandonado pela multidão ávida por entretenimento, que já se amontoava em outros espetáculos" ¹. Constata sua nova situação: 

"Ele, que tinha encantado milhares de pessoas, não poderia apresentar-se em tendas nas
pequenas feiras, e, para aprender um outro ofício, o artista da fome não era apenas velho demais, mas sobretudo demasiado fanático em relação ao jejum. Então despediu o empresário, seu companheiro nessa carreira ímpar, e arranjou emprego em um grande circo; a fim de poupar sua sensibilidade, nem aos menos leu as cláusulas do contrato".

Por que não podia apresentar-se em espaços menores? Porque, penso, cada artista carrega dentro de si uma volumosa carga de amor-próprio (que pode, não raro, confundir-se com a empáfia) sem a qual, provavelmente, sua arte não seria o que é. E é necessário dedicação: às vezes uma vida inteira de devoção. E, quando se envelhece, caso seja necessário mudar de ofício, como fazê-lo?

Empregando-se no circo, a jaula do artista da fome é colocada no caminho que vai dar nas jaulas dos animais.

"Mas na verdade o artista da fome não perdeu de vista as circunstâncias reais e aceitou como natural que não pusessem sua jaula como atração de destaque no meio do picadeiro, mas que em vez disso o acomodassem ao ar livre em um lugar bem acessível, próximo ao estábulo. Grandes letreiros coloridos rodeavam a jaula e anunciavam o que se podia ver lá dentro. Nos intervalos entre os espetáculos, quando o público se dirigia ao estábulo para ver os animais, era quase inevitável passar pelo artista da fome e lá se deter por alguns instantes; talvez as pessoas ficassem um pouco mais de tempo se naquela estreita passagem, a multidão, incapaz de compreender essa demora no caminho ao estábulo tão desejado, não tornasse impossível uma observação mais calma e atenta. Esse também era o motivo pelo qual o artista da fome, antes das horas de visita, que naturalmente eram a razão de sua vida, sempre começava a tremer. No início ele mal conseguia esperar pelos intervalos; encantado, aguardava a multidão que se aproximava, até se convencer - nem mesmo o mais persistente autoengano, por mais caro que fosse, resistia à experiência - de que a maioria das pessoas sempre, sem exceção, tinha por objetivo visitar o estábulo".

Não obstante seu orgulho e a quase certeza de que não compreendiam o verdadeiro sentido do que fazia, o artista da fome ansiava pela chegada do público (as horas de visita eram "a razão de sua vida"). O público, contudo, acaba dirigindo-se para outros interesses, mesmo que tenha diante de si um artista cuja performance é aguda ao ponto de significar a penúria física de seu próprio corpo.

. . . . . . .

Teria mais a dizer sobre o artista, uma das "funções" sociais sobre as quais tenho pensado muito nos últimos dez anos (a outra é o intelectual). Entretanto, deixo para mais adiante.

Na próxima atualização, escreverei sobre o romance Aos 7 e aos 40, do paulista João Anzanello Carrascoza.


[Atualização em 30/08/2020] Repensando sobre o tema desta postagem, percebo que cometi uma grande falta. Vou procurar corrigi-la agora. Muitos artistas não teriam condições de se apresentar se não fosse o trabalho de outros indivíduos: pessoas que trabalham nas bilheterias, na montagem e desmontagem de palcos, cenários e instalações, na maquiagem, na iluminação, na afinação e no cuidado com os instrumentos musicais, entre outros trabalhadores. Creio que a pandemia foi ainda mais severa com esse contingente. É preciso lembrar sempre disso.

__________ 
¹ KAFKA, Franz. Um artista da fome seguido de Na colônia penal & outras histórias. Porto Alegre: L&PM, 2011 [Tradução de Guilherme da Silva Braga]


BG de Hoje

Reasons I Drink, de ALANIS MORISSETTE, foi lançada no finalzinho de 2019. Evoca algo dos melhores momentos da cantora/compositora, quando ela surgiu em meados dos anos 1990, com o discaço Jagged Litlle Pill. O clipe da canção reforça uma das boas características de Morissette: a capacidade de fazer troça de si mesma.

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Falou e disse...

"Não há que se falar em democracia – na ideia de democracia com uma ampla participação popular nas decisões políticas, nos rumos de um país, de uma comunidade – se não há igualdade racial.

A desigualdade racial sempre foi e será um constrangimento a qualquer projeto verdadeiro de democracia que vá além da mera formalidade. Quando há uma desigualdade racial gritante, que se manifesta na desigualdade econômica que atinge as pessoas negras, no tratamento institucional, na violência policial, no encarceramento em massa, na ausência de representatividade política e social, tudo isso vai gerando fissuras no discurso ideológico que diz que vivemos em democracia".

Afirmações feitas pelo professor, jurista e filósofo do direito Silvio ALMEIDA, publicadas em entrevista ao jornal Nexo (Não dá para falar de democracia sem falar da questão racial), em 01/06/2020, disponível aqui.

PS: Por mais que iniciativas individuais sejam necessárias na luta contra a discriminação e o preconceito raciais, é preciso compreender que o racismo é um fenômeno estruturante de nossas sociedades, cuja complexidade exige ações de outra magnitude para ser suprimido definitivamente. A esse respeito, vale a pena ouvir o que diz o próprio Silvio Almeida no vídeo abaixo, explicando o que é racismo estrutural (particularmente esclarecedor a partir do terceiro minuto de exibição).

quinta-feira, 2 de julho de 2020

O julgamento de Zé Bebelo em Grande sertão: veredas (III)


"Valentões assalariados ou camaradas em armas, a jagunçagem, 'estado de lei' em oposição à lei do Governo e do Estado, se rege por seu próprio código de honra e se organiza segundo normas próprias, ditadas pelas necessidades de sobrevivência do grupo, e segundo uma espécie de acordo tácito entre seus membros. Caracteriza-a forte senso de hierarquia, que determina que aos chefes cabe ditar as ordens e aos subordinados, cumpri-las".

Sandra Guardini T. Vasconcelos - Homens provisórios. Coronelismo e jagunçagem em Grande sertão: veredas

"Olhe: jagunço se rege por um modo encoberto, muito custoso de eu poder explicar ao senhor. Assim - sendo uma sabedoria sutil, mas mesmo sem juízo nenhum falável; o quando no meio deles se trança um ajuste calado e certo, com semêlho, mal comparando, com o governo de bando de bichos - caititú, boi, boiada, exemplo."

Riobaldo, no Grande sertão: veredas (João Guimarães Rosa)


Comecei esta série de postagens com a intenção de demonstrar como o julgamento de Zé Bebelo é uma ocorrência inusitada - não obstante, crucial - dentro de Grande sertão: veredas.  Num território impregnado de violência e arbitrariedade, os personagens (eles próprios abusivos e brutais) colocaram em suspensão sua hostilidade e emularam um dispositivo da justiça formal.

Na primeira postagem, o "réu" foi apresentado e ressaltou-se a sua raposice, isto é, a sua astúcia. No segundo texto da série, procurei reforçar junto ao(à) eventual leitor(a) que é de jagunços (ou seja, de bandidos) que estamos tratando (muito embora, graças ao prodigioso poder da ficção literária, consigamos nos sentir próximos deles, humanamente falando). A respeito desse ponto levantado na postagem anterior, considero bem acertada a análise ¹ da professora Sandra Guardini T. Vasconcelos (FFLCH/USP), ao observar que

"Encobertas pela beleza da linguagem e pelo lirismo e dramaticidade do texto, a violência e a brutalidade que pautam as ações e práticas dos jagunços em Grande sertão: veredas parecem ter ocupado uma espécie de segundo plano nas leituras críticas do romance. Com raras exceções - Walnice Nogueira Galvão, em As formas do falso, é a mais notável delas -, poucos foram os leitores de João Guimarães Rosa que se detiveram na questão do coronelismo e jagunçagem no romance"

Hoje, finalmente, trataremos do julgamento propriamente dito.

Desde a captura do chefe rival até o acatamento do veredito imposto por Joca Ramiro, são cerca de 30 páginas. Num lugar chamado É-Já (ah, a obra de Guimarães Rosa e seus topônimos...), Riobaldo e outros jagunços, "sub-comandados" por Hermógenes e (principalmente) Sô Candelário, guardavam o local, presumindo que por ali passaria um grupo de inimigos, liderados por Zé Bebelo - o que acaba acontecendo.

Acuados num amontoado de pedras e em número reduzidíssimo após o tiroteio, Zé Bebelo e seus sequazes seriam facilmente exterminados.

É quando vem à mente de Riobaldo um estratagema ²:

"Digo ao senhor: eu gostava de Zé Bebelo. Redigo - que eu menos atirava do que pensava. Como era possível, assim, com minha ajuda, a morte dele? Um homem daquela qualidade, o corpo dele, a ideia dele, tudo o que eu sabia e conhecia. Nessas coisas eu pensei. Sempre - Zé Bebelo - a gente tinha que pensar. Um homem, coisa fraca em si, macia mesmo, aos pulos de vida e morte, no meio das duras pedras. Senti, em minha goela. Aquela culpa eu carregava? Arresto gritei: - 'Joca Ramiro quer esse homem vivo! Joca Ramiro quer este homem vivo! Joca Ramiro faz questão!...' A que nem não sei como tive o repente de isso dizer - falso, verdadeiro, inventado... 
Firme gritei, repeti".
O ardil dá certo. O líder inimigo é levado vivo à presença de Joca Ramiro, que acabava de chegar com o restante do bando. Riobaldo temia que sua manobra desse errado e Zé Bebelo padecesse torturas. Diante do grande chefe, demonstrando mesmo ser um sujeito estúrdio, Zé Bebelo exige julgamento. E é atendido. Observemos esta passagem:

"Tinha sido aquilo: Joca Ramiro chegando, real, em seu alto cavalo branco, e defrontando Zé Bebelo a pé, rasgado e sujo, sem chapéu nenhum, com as mãos amarradas atrás, e seguro por dois homens. Mas mesmo assim, Zé Bebelo empinou o queixo, inteirou de olhar aquele, cima abaixo. Daí disse: 
- 'Dê respeito, chefe. O senhor está diante de mim, o grande cavaleiro, mas eu sou seu igual. Dê respeito!' 
- 'O senhor se acalme. O senhor está preso...' - Joca Ramiro respondeu, sem levantar a voz. 
Mas, com surpresa de todos, Zé Bebelo também mudou de toada, para debicar, com um engraçado atrevimento: 
- 'Preso? Ah, preso... Estou, pois sei que estou. Mas, então, o que o senhor vê não é o que o senhor vê, compadre: é o que o senhor vai ver...' 
- 'Vejo um homem valente, preso...' - aí o que disse Joca Ramiro, disse com consideração. 
- Isso. Certo. Se estou preso... é outra coisa...' 
- 'O que, mano velho?' 
- '... É, é o mundo à revelia!...' - isso foi o fecho do que Zé Bebelo falou. E todos que ouviram deram risadas".

Esta sentença - "É, é o mundo à revelia!..." - é bastante realçada por estudiosos do Grande sertão: veredas. Como eu a interpreto? A expressão à revelia, claro, faz parte do jargão jurídico: quando  um réu, intimado, não comparece à audiência, torna-se revel (ou rebelde) e o tribunal, portanto, pode tomar decisões à revelia daquele. Mas há também um sentido bem mineiro para a expressão: quando algo estava bagunçadofora de ordem, virado do avesso, alguns de nós, antigamente, diziam que esse algo estava à revelia. Zé Bebelo atribuiu a si a missão de acabar com a jagunçagem (usando, para isso, jagunços!); supunha estar do lado correto, inclusive legalmente. Como poderia aceitar estar preso por aqueles que se colocavam à margem da lei? Isso seria, para ele, fora da ordem normal das coisas! Como se ele próprio não estivesse também à margem da lei... O mundo à revelia é o mundo fora de ordem, onde quem comete crimes prende e julga aquele que o combate. Mas aquele que o combate também está cometendo crimes...

O "réu" é levado então para a Sempre-Verde, propriedade de um aliado (um coronel da localidade). No imenso eirado da fazenda, todos se reuniram. No centro, ficaram Zé Bebelo e Joca Ramiro, tendo a seu lado os "sub-comandantes": Sô Candelário, João Goanhá, Titão Passos, Hermógenes e Ricardão. Circundando os maiorais, o restante da jagunçada. É de se notar que num texto em que pouquíssimos diálogos aparecem - as exceções mais destacadas são as conversas de Riobaldo e Diadorim -, o julgamento permite "ouvir" outras vozes além do narrador.

Joca Ramiro - o "juiz" - pede aos "sub-comandantes" que apresentem suas "alegações". Da parte da acusação, falam Hermógenes e Ricardão; pela defesa, Titão Passos, com intervenções de Sô Candelário e João Goanhá. Hermógenes declara "que se devia de amarrar este cujo, feito porco". Sangrá-lo. Ou atravessá-lo no chão e passar com os cavalos por cima. Zé Bebelo reage de forma escarnecedora a esse e outros rompantes, deixando Hermógenes furioso, disposto a matar o "réu" ali mesmo, naquela hora. É quando Joca Ramiro, evitando o confronto, mostra também ser astuto: " - 'Mas ele [Zé Bebelo] não falou o nome-da-mãe, amigo...' ". Ricardão faz uma acusação mais voltada, digamos, ao mérito da querela. Pede a condenação e execução do "réu": "a misericórdia duma boa bala, de mete-bucha, e a arte está acabada e acertada". A sua exposição - lembrando das baixas provocadas pelo inimigo e do compromisso do bando de Joca Ramiro com coronéis da região - produz grande efeito, inclusive sobre Riobaldo. A fala é então concedida a Titão Passos:

" - 'Ao que aprecio também, Chefe, a distinção minha desta ocasião, de dar meu voto. Não estou contra a razão de companheiro nenhum, nem por contestar. Mas eu cá sei de toda consciência que tenho, a responsabilidade. Sei que estou como debaixo de juramento; sei porque de jurado já servi, uma vez, no júri da Januária... Sem querer ofender ninguém - vou afiançando. O que eu acho é que é o seguinte: que este homem não tem crime constável. Pode ter crime para o Governo, para delegado e juiz-de-direito, para tenente de soldados. Mas a gente é sertanejos, ou não é sertanejos? Ele quis guerrear, veio - achou guerreiros! Nós não somos gente de guerra? Agora ele escopou e perdeu, está aqui, debaixo de julgamento. A bem, se, na hora, a quente a gente tivesse falado fogo nele, e matado, aí estava certo, estava feito. Mas o refrêgo de tudo já se passou. Então, isto aqui é matadouro ou talho?... Ah, eu, não. Matar, não. Suas licenças...' ".
Essa fala condensa, de certa maneira, tudo o quis discutir nesta série de postagens. Por um momento, a ferocidade daqueles sujeitos foi suspensa para produzir algo civilizado e que não fazia parte de seus usos e costumes: um julgamento. Passado o "refrêgo" da batalha, matar por matar pareceria errado, uma vez que o réu não cometeu "crime constável". Na alegação de Titão Passos também vemos que a lei, naquele sertão, não é determinada por nenhuma autoridade governamental ou representante do Estado. Há um regimento muito próprio desses guerreiros. E só este é obedecido por eles.

Caso o(a) eventual leitor(a) já tenha lido o romance, vai se lembrar que Riobaldo também teve direito a voz no julgamento, argumentando que absolver e libertar o réu traria honra a quem o fizesse.

Zé Bebelo acaba absolvido. Joca Ramiro decreta seu banimento de Minas e da Bahia. Diadorim, feliz, pensava que a guerra havia terminado. Porém, o resultado do julgamento desagradou alguns e acontece a traição que leva à nova conflagração armada, o grande conflito que marca toda a narrativa...

Por ser a obra que é, Grande sertão: veredas permite leituras das mais variadas: uma bonita e trágica história de amor, um enorme trabalho de pesquisa linguística, uma "representação alegórica da história brasileira que revela o funcionamento do sistema real de poder no Brasil", de acordo com Willi Bolle - e tantas outras. A leitura que costumo fazer é a seguinte: um magnífico tratamento literário para episódios de violência, com múltiplas causas e justificações, que tem no julgamento de Zé Bebelo o seu mais significativo momento de contraste.

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¹ VASCONCELOS, Sandra Guardini T. Homens provisóriosCoronelismo e jagunçagem em Grande sertão: veredas. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 5, n. 10, p. 321-333, 1º sem. 2002. Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/12410>.  Acesso em: 20/06/2020. A autora também aponta que os jagunços rosianos, ainda que guardem semelhanças com o tipo ideal do jagunço, têm suas distinções:


"Nem capangas, como os que se associavam a um chefe de parentela ou a um chefe político, nem cangaceiros, como os que percorreram as caatingas áridas do polígono das secas, os jagunços de Grande sertão: veredas são representados como homens livres que optaram pelo modo de vida provisório e nômade da jagunçagem pelos mais variados motivos. Não recebem soldo, como os primeiros, mas são parte integrante do esquema político que impera no sertão e coloca em choque diferentes grupos e facções. são independentes como os segundos, de quem imitam a organização do bando e certas práticas cotidianas, fruto da vida nômade que abraçam. Recriados a partir de dados da realidade, figuram, portanto, no romance como uma mistura que, combinando traços de um e outro tipo, resulta num tipo compósito que retém caraterísticas dos dois".

² ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006

BG de Hoje

Já perdi a conta de quantas vezes assisti a esse vídeo no Youtube: Thinkin' About Your Body, interpretada por BOBBY McFERRIN

quinta-feira, 25 de junho de 2020

O julgamento de Zé Bebelo em Grande sertão: veredas (II)


Ao responder a pergunta O que pode a literatura? ¹, o historiador, filósofo e crítico literário Tzvetan Todorov afirmou que, assim "como a filosofia e as ciências humanas, a literatura é pensamento e conhecimento do mundo psíquico e social em que vivemos. A realidade que a literatura aspira compreender é, simplesmente (mas, ao mesmo tempo, nada é assim tão complexo), a experiência humana". Nós, os leitores, ao abrirmos uma obra literária, sabemos que estamos diante de um relato ou de um conjunto de versos resultante de um esforço imaginativo; ainda assim, quantas e quantas vezes um texto inventado não foi diretamente ao encontro de nossa reflexão e de nossas emoções, como se revelasse algo que já havíamos sentido e pensado, mas que até então não havíamos encontrado verbalmente expresso de tal forma?

A ficção literária, entretanto, tem ainda outra imensa virtude: a capacidade de nos predispor para a compreensão e aceitação da alteridade. Todorov observa que,

"Num estudo recente [2001], o filósofo americano Richard Rorty propôs caracterizar diversamente a contribuição da literatura para a nossa compreensão do mundo. Ele recusa o uso de termos como 'verdade' ou 'conhecimento' para descrever essa contribuição, afirmando que a literatura faz menos remediar nossa ignorância do que nos curar de nosso 'egotismo', termo entendido como uma ilusão de autossuficiência. A leitura de romances, segundo ele, tem menos a ver com a leitura de obras científicas, filosóficas ou políticas do que com outro tipo bem distinto de experiência: a do encontro com outros indivíduos. Conhecer novas personagens é como encontrar novas pessoas, com a diferença de que podemos descobri-las interiormente de imediato, pois cada ação tem o ponto de vista do seu autor. Quanto menos essas personagens se parecem conosco, mais elas ampliam nosso horizonte, enriquecendo assim nosso universo. Essa amplitude anterior (semelhante sob certos aspectos àquela que nos proporciona a pintura figurativa) não se formula com o auxílio de proposições abstratas, e é por isso que temos tanta dificuldade em descrevê-la; ela representa, antes, a inclusão na nossa consciência de novas maneiras de ser, ao lado daquelas que possuímos. Essa aprendizagem não muda o conteúdo do nosso espírito, mas sim o próprio espírito de quem recebe esse conteúdo; muda mais o aparelho perceptivo do que as coisas percebidas. O que o romance nos dá não é um novo saber, mas uma nova capacidade de comunicação com seres diferentes de nós; nesse sentido, eles participam mais da moral do que da ciência".

Com essas considerações em mente, voltemos a falar do Grande sertão: veredas, obra que estamos discutindo desde a postagem anterior.

O tipo ideal ³ predominantemente retratado no romance é o jagunço. Os personagens de destaque (com poucas exceções, como Otacília e Nhorinhá) estão nessa categoria, inclusive o narrador-protagonista (muito embora, em vários momentos da narrativa, Riobaldo questione o seu pertencimento à jagunçaria).

Ora, e o que são esses indivíduos? Guarda-costas e pistoleiros a serviço dos coronéis do meio rural ou bandoleiros de estrada. Numa palavra: criminosos.

Se a boa ficção literária não nos permitisse transcender as interpretações moralistas taxativas (nos facultando "encontrar outras pessoas", através dos personagens que "ampliam nosso horizonte", sobretudo os que não se parecem conosco), como absorveríamos o longo e intrincado monólogo de Riobaldo - que matou, estuprou, extorquiu, roubou? Penso então ser este o momento propício para mencionar duas passagens que aprecio muito no Grande sertão: veredas.

Na primeira delas, Riobaldo conversava com um camarada de armas, Jõe Bexiguento, e começa a matutar:

"Pecados, vagância de pecados. Mas, a gente estava com Deus? Jagunço podia? Jagunço - criatura para crimes, impondo o sofrer no quieto arruado dos outros, matando e roupilhando. Que podia? Esmo disso, disso, queri, por pura toleima; que sensata resposta podia me assentar o Jõe, broeiro peludo do Riachão do Jequitinhonha? Que podia? A gente, nós, assim jagunços, se estava em permissão de fé para esperar de Deus perdão de proteção? Perguntei, quente. 
- 'Uai?! Nós vive...' - foi o respondido que ele me deu. 
Mas eu não quis aquilo. Não aceitei. Questionei com ele, duvidando, rejeitando. Porque eu estava sem sono, sem sede, sem fome, sem querer nenhum, sem paciência de estimar um bom companheiro. Nem o ouro do corpo eu não quisesse, aquela hora não merecia: brancura rosada de uma moça, depois do antes da lua-de-mel. Discuti alto. Um que estava com sua rede ali próximo, decerto acordou com meu vozeio, e xingou xíu. Baixei, mas fui ponteando opostos. Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado..."

"Uai?! Nós vive...".
É como se Jõe Bexiguento dissesse: "Nós também somos seres humanos" ou, para usar uma expressão que talvez agradasse a uma pessoa bastante religiosa (como era Guimarães Rosa), "Nós também somos filhos de Deus". De fato, "este mundo é muito misturado" e querer olhá-lo de forma puramente maniqueísta, com "todos os pastos demarcados", talvez não seja a melhor maneira de tentar lidar com ele (o que nos remete à inquietude de Riobaldo, especulando constantemente sobre a existência ou não do Diabo).

Na segunda passagem, o bando, neste momento sob a chefia de Zé Bebelo, arranchara-se durante vários dias num local chamado a Coruja. Alguns dos jagunços estavam doentes. Além disso, Zé Bebelo parecia não ter certeza do que fazer. Riobaldo conversa com companheiros mais próximos. É quando um tal de Sidurino sugere que o que eles deveriam fazer mesmo era promover um ataque qualquer a "alguma vila sertaneja dessas, e se pandegar, depois vadiando...". Atenção para o excerto a seguir:

"[...] Ao assaz confirmamos, todos estávamos de acordo com o sistema. Aprovei, também. Mas, mal acabei de pronunciar, eu despertei em mim um estar de susto, entendi uma dúvida, de arpêjo, e o que me picou foi uma cobra bibra. Aqueles, ali, eram com efeito os amigos bondosos, se ajudando uns aos outros com sinceridade nos obséquios e arriscadas garantias, mesmo não refugando a sacrifícios para socorros. Mas, no fato, por alguma ordem política, de se dar fogo contra o desamparo de um arraial, de outra gente, gente como nós, com madrinhas e mães - eles achavam questão natural, que podiam ir salientemente cumprir, por obediência saudável e regra de se espreguiçar bem. O horror que me deu - o senhor me entende? Eu tinha medo de homem humano. 
A verdade dessa menção, num instante eu achei e completei: e quantas outras doideiras assim haviam de estar regendo o costume da vida da gente, e eu não era capaz de acertar com elas todas, de uma vez! Aí, para mim - que não tenho rebuço em declarar isto ao senhor - parecia que era só eu quem tinha responsabilidade séria neste mundo; confiança eu mais não depositava, em ninguém. Ah, o que eu agradecia a Deus era ter me emprestado essas vantagens, de ser atirador, por isso me respeitavam. Mas eu ficava imaginando: se fosse eu tivesse tido sina outra, sendo só um coitado morador, em povoado qualquer, sujeito à instância dessa jagunçada? A ver, então, aqueles que agorinha eram meus companheiros, podiam chegar lá, façanhosos, avançar em mim, cometer ruindades. Então? Mas, se isso sendo assim possível, como era pois que agora eles podiam estar meus amigos?! O senhor releve o tanto dizer, mas assim foi que eu pensei, e pensei ligeiro. Ah, eu só queria era ter nascido em cidades, feito o senhor, para poder ser instruído e inteligente! E tudo conto, como está dito. Não gosto de me esquecer de coisa nenhuma. Esquecer, para mim, é quase igual a perder dinheiro".
Muitos tendem a considerar humanos apenas os nossos sentimentos e gestos tidos como bons. A passagem acima, entretanto, nos lembra que ser humano é também "cometer ruindades", sendo para alguns, como os jagunços, "questão natural", desobrigada de arrazoados éticos ou morais. Tudo se torna ainda mais grave num território fora da lei, como o sertão "onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal", lembrando um dos trechos mais famosos do livro de Rosa.

Mas, mesmo nesse lugar de despotismo e violência, um arremedo de ação legal, urdido e conduzido por facínoras, se deu...

Termino esta série de postagens na próxima semana.
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¹ TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. 4 ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2012.

² Emprego aqui, de maneira não rígida, o conceito sociológico de tipo ideal, ou seja, não se trata de um reflexo da realidade, mas um modelo que reúne traços essenciais do fenômeno/ente que se quer representar. É bom lembrar, contudo, que vários dos jagunços de Rosa escapam à simplificação inerente ao conceito de tipo ideal.

³  ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006

BG de Hoje

Tenho muitas lembranças de infância associadas a dois discos do grupo pernambucano QUINTETO VIOLADOBerra-Boi (1973) e Folguedo (1975). Passados tantos anos, não sei ao certo quem os comprara, se minha mãe ou minha irmã mais velha. Só sei que esses discos ficaram bem gravados na minha memória musical. No primeiro álbum, encontra-se a belíssima canção Vaquejada.