[Postagem atualizada em 04/07/2020]
Não sou diferente de outros apaixonados por Literatura que costumam, periodicamente, reler os mesmos livros.
Não sou diferente de outros apaixonados por Literatura que costumam, periodicamente, reler os mesmos livros.
A náusea, de Sartre; Angústia, de Graciliano Ramos; Lavoura arcaica, de Raduan Nassar; O senhor das moscas, de W. Golding; Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso; Admirável mundo novo, de Huxley; Brejo das Almas e Sentimento do mundo, ambos de Drummond; O deserto dos tártaros, de D. Buzzati; A educação pela pedra, de João Cabral de Melo Neto; Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski; Macunaíma, de Mario de Andrade; A vida: modo de usar, de Georges Perec... Essas são algumas das obras de arte que volto a procurar sempre, por uma razão ou outra.
Assim também é com Sagarana e Grande sertão:veredas, ambos de Guimarães Rosa. Embora goste muito mais do primeiro, foi o segundo que decidi reler nesses dias de distanciamento social.
Grande sertão:veredas é daqueles títulos cujo prestígio é reconhecido por bastante gente, mas não muitos querem se dar ao trabalho de lê-los. Ulisses, de Joyce (largado por este blogueiro antes da vigésima página), ou O processo, de Kafka, estão nessa categoria - e outras centenas de exemplos semelhantes poderiam ser facilmente aduzidos.
No caso do livro de Rosa, a pesquisadora e professora Marli Fantini ¹ observa que
Mas, se estiver suficientemente disposto a encarar esse desafio, "a particularíssima dicção rosiana" acaba capturando o leitor e este vai se tornando, progressivamente, mais "aclimatado" ao (e mais enfeitiçado pelo) texto.
Sabemos que falar desse autor é, sobretudo, falar da dimensão linguística de sua atividade. Segundo Fantini, "o árduo trabalho de carpintaria para o fabrico artesanal da linguagem constitui uma das fortes tônicas da escrita rosiana". Hoje e nas próximas semanas, porém, dada a feição deste blog ², vou me deter principalmente em aspectos e elementos do enredo de Grande sertão: veredas. E um dos momentos mais marcantes do romance, cujas implicações plasmam outros tantos momentos importantes dentro da trama, é o julgamento de Zé Bebelo.
O personagem em questão é assim apresentado:
Sujeito "imediatamente estúrdio", de acordo com Riobaldo, na primeira vez em que se conheceram: "nervoso, magro, um pouco mais para baixo do que o tamanho mediano, e com braços que pareciam demais de compridos, de tanto que podiam gesticular". Zé Bebelo é comparado à raposa - animal associado à esperteza no folclore - em pelo menos duas passagens do romance. Assumidamente, tinha ambição de entrar na política institucional/profissional: daí seu apodo - o Deputado. Suspeitava-se que fosse financiado pelo Governo, ainda mais quando se lançou na missão de "acabar com a jagunçagem".
O astuto personagem não tinha a imponência dos outros chefes, como Medeiro Vaz ou Joca Ramiro, mas foi aquele que mais exerceu influência sobre Riobaldo, até quando o narrador se tornou chefe ele mesmo, após afrontar o próprio Zé Bebelo, passando a ser o Urutú-Branco - e advinha quem lhe tinha dado a alcunha?
Os eventos narrados em Grande sertão:veredas, se pensarmos no tempo cronológico/histórico, deram-se entre a última década do século XIX e as primeiras do século XX, período que marca a instauração de uma titubeante república no Brasil. Se a época testemunhou algum lampejo de modernização em alguns centros urbanos, o interior do país parecia pertencer a outra era, com a maioria da população vivendo isoladamente, sem qualquer assistência e supervisão do Estado. Por isso, além de ilustrar a miséria do ambiente, a despeito da beleza encontrada ocasionalmente na natureza, o sertão descrito através da ficção por Guimarães Rosa é um território sem lei. Ou melhor dizendo, a lei é aquela imposta por potentados locais, grandes proprietários de terra e mandachuvas sanguinários.
Portanto, a ocorrência de um julgamento em meio a tanta ferocidade, desmando e arbitrariedade não poderia deixar de ser algo sui generis, extravagante e inusitado.
Aliás, como era o réu, Zé Bebelo.
Continuo a discussão na próxima postagem.
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¹ FANTINI, Marli. Guimarães Rosa: fronteiras, margens, passagens. 2 ed, Cotia, SP: Ateliê Editorial; São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008
No caso do livro de Rosa, a pesquisadora e professora Marli Fantini ¹ observa que
"desde seu início, o romance (o próprio pacto ficcional já o enuncia) gera a desconfiança de que estamos sendo provocados por insuspeitados protocolos discursivos a nos ameaçar com uma estética que corremos o risco de não compreender. É o desafio de um novo começo, obrigando-nos a reformular valores éticos, paradigmas estéticos e indagações filosóficas".
Mas, se estiver suficientemente disposto a encarar esse desafio, "a particularíssima dicção rosiana" acaba capturando o leitor e este vai se tornando, progressivamente, mais "aclimatado" ao (e mais enfeitiçado pelo) texto.
Sabemos que falar desse autor é, sobretudo, falar da dimensão linguística de sua atividade. Segundo Fantini, "o árduo trabalho de carpintaria para o fabrico artesanal da linguagem constitui uma das fortes tônicas da escrita rosiana". Hoje e nas próximas semanas, porém, dada a feição deste blog ², vou me deter principalmente em aspectos e elementos do enredo de Grande sertão: veredas. E um dos momentos mais marcantes do romance, cujas implicações plasmam outros tantos momentos importantes dentro da trama, é o julgamento de Zé Bebelo.
O personagem em questão é assim apresentado:
"Zé Bebelo - ah. Se o senhor não conheceu esse homem, deixou de certificar que qualidade de cabeça de gente a natureza dá, raro de vez em quando. Aquele queria saber tudo, dispor de tudo, poder tudo, tudo alterar. Não esbarrava quieto. Seguro já nasceu assim, zureta, arvoado, criatura de confusão. Trepava de ser o mais honesto de todos, ou o mais danado, no tremeluz, conforme as quantas. Soava no que falava, artes que falava, diferente na autoridade, mas com uma autoridade muito veloz. [...]
No regular, Zé Bebelo pescava, caçava, dansava as dansas, exortava a gente, indagava de cada coisa, laçava rês ou topava à vara, entendia dos cavalos, tocava violão, assoviava musical; só não praticava de buzo nem baralho - declarando ter receios, por atreito demais a vício e riscos de jogo. Sem menos, se entusiasmava com qual-me-quer, o que houvesse; choveu, louvava a chuva; trapo de minuto depois, prezava o sol. Gostava, com despropósito, de dar conselhos. Considerava o progresso de todos - como se mais esse todo Brasil, territórios - e falava, horas, horas". ³
Sujeito "imediatamente estúrdio", de acordo com Riobaldo, na primeira vez em que se conheceram: "nervoso, magro, um pouco mais para baixo do que o tamanho mediano, e com braços que pareciam demais de compridos, de tanto que podiam gesticular". Zé Bebelo é comparado à raposa - animal associado à esperteza no folclore - em pelo menos duas passagens do romance. Assumidamente, tinha ambição de entrar na política institucional/profissional: daí seu apodo - o Deputado. Suspeitava-se que fosse financiado pelo Governo, ainda mais quando se lançou na missão de "acabar com a jagunçagem".
O astuto personagem não tinha a imponência dos outros chefes, como Medeiro Vaz ou Joca Ramiro, mas foi aquele que mais exerceu influência sobre Riobaldo, até quando o narrador se tornou chefe ele mesmo, após afrontar o próprio Zé Bebelo, passando a ser o Urutú-Branco - e advinha quem lhe tinha dado a alcunha?
Os eventos narrados em Grande sertão:veredas, se pensarmos no tempo cronológico/histórico, deram-se entre a última década do século XIX e as primeiras do século XX, período que marca a instauração de uma titubeante república no Brasil. Se a época testemunhou algum lampejo de modernização em alguns centros urbanos, o interior do país parecia pertencer a outra era, com a maioria da população vivendo isoladamente, sem qualquer assistência e supervisão do Estado. Por isso, além de ilustrar a miséria do ambiente, a despeito da beleza encontrada ocasionalmente na natureza, o sertão descrito através da ficção por Guimarães Rosa é um território sem lei. Ou melhor dizendo, a lei é aquela imposta por potentados locais, grandes proprietários de terra e mandachuvas sanguinários.
Portanto, a ocorrência de um julgamento em meio a tanta ferocidade, desmando e arbitrariedade não poderia deixar de ser algo sui generis, extravagante e inusitado.
Aliás, como era o réu, Zé Bebelo.
Continuo a discussão na próxima postagem.
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¹ FANTINI, Marli. Guimarães Rosa: fronteiras, margens, passagens. 2 ed, Cotia, SP: Ateliê Editorial; São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008
² Como já escrevi noutras postagens, aqui, no Besta Quadrada, não se faz crítica literária no sentido rigoroso da expressão; o blogueiro não tem a formação requerida e nem os recursos adequados para exercer tal atividade. O que faço neste espaço é apenas comunicar e compartilhar impressões de leitura com um(a) outro(a), a quem chamo de eventual leitor(a). Por esse motivo, aprofundar-me na discussão da complexidade da língua literária elaborada por João Guimarães Rosa iria além, bem além, dos contornos estabelecidos para este blog.
³ ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006
BG de Hoje
Sempre que o adjetivo eclético aparece em alguma resenha cultural, costumo torcer o nariz. Acho meio preguiçoso dizer que algo é eclético; não é uma caracterização muito esclarecedora. Mas no caso do grupo carioca EL EFECTO, o qualificativo faz muito sentido (tanto que é empregado até no site oficial da banda). Apesar de estar na estrada há quase duas décadas, só ouvi esses artistas pela primeira vez no ano passado, o que demonstra a dificuldade que a música independente tem para chegar a um público mais amplo. Neste BG, aquela que talvez seja a mais conhecida canção do grupo: O encontro de Lampião com Eike Batista.