segunda-feira, 24 de abril de 2017

"É só televisão....". Que mal tem?



Atacar a televisão é um exercício fácil. Reclamar da (má) qualidade habitual de sua programação, da idiotização que promove ("a televisão me deixou burro, muito burro demais", cantavam os Titãs em priscas eras), está ao alcance de qualquer um. Reconhecer seu poder de manipulação não é novidade. Mas é exatamente isso que me disponho a fazer na postagem de hoje: remexer temas batidos.

Por que diabos então perderia meu tempo lendo este texto desenxabido? - com justiça, é o que pode estar se perguntando o(a) eventual leitor(a). Bem, talvez porque, diferentemente da maioria dos detratores da TV, este blogueiro gosta de assisti-la e não tem vergonha de admiti-lo - mas isso não quer dizer que seja incapaz de criticá-la.

Nós, os militantes da leitura e do livro, é preciso assumir, frequentemente lançamos nossas mais duras invectivas contra o entretenimento televisivo, considerando-o o mais deletério inimigo da cultura literária. Esses ataques, porém, deixam transparecer, não raro, um certo esnobismo hipócrita. É como se o analista escorraçasse essa "distração da gentalha ignara" em público, mas, escondidinho em casa, desse as suas zapeadas, buscando um pouco do divertimento que acabara de condenar.

As transmissões regulares de TV começaram nos anos 1930 (duas décadas depois, chegou a vez do Brasil). Ou seja, pode-se dizer que uma parte significativa dos seres humanos hoje vivos no planeta está acostumada com os televisores - e o conteúdo veiculado por estes - desde que era criancinha. Lembro-me perfeitamente do primeiro aparelho em cores adquirido em nossa família no início dos anos 1980: foi um deslumbramento, aquilo era considerado uma conquista, um símbolo de status (atualmente, encontramos a toda hora carcaças desses dispositivos sordidamente descartadas nas esquinas das grandes cidades). Indivíduos com a minha idade consumiram fervorosamente, na infância, "os enlatados USA/de 9 às 6", como cantava o Renato Russo em Geração Coca-Cola. Minha imaginação é até hoje povoada pelas tiradas do Pernalonga, a trágica e não recompensada obstinação do Coiote na perseguição ao Papa-Léguas, a divertida incompetência do Agente 86, a vida luxuosa do Casal 20 (desvendar crimes era o de menos...), a superficialidade estampada nos rostinhos bonitos das Panteras. O fato de ter assistido muita, muita TV na infância e início da adolescência (seria falsidade de minha parte negar) teve um peso enorme na minha formação cultural - para o bem e para o mal. Não me tornei um completo imbecil ao chegar na maturidade (bem, pelo menos eu acho que não). Felizmente, fui cercado de anteparos para a inundação televisiva: cresci em meio a bons leitores (duas irmãs e um irmão mais velho), estudei numa boa escola no ensino fundamental. Há "antídoto" para o "mal" da televisão,

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Neste fim de semana prolongado, assistir DVDs foi meu principal passatempo. Entre os filmes escolhidos, revi um que adoro: Quiz Show (1994 - direção de Robert Redford).

Baseado no escândalo (real) envolvendo a corporação televisiva NBC em uma fraude ocorrida num popular programa de perguntas e respostas que foi ao ar na segunda metade dos anos 1950, o filme tem três personagens centrais: Richard Goodwin, um advogado e investigador do Congresso americano (similar a um procurador, aqui do Brasil, para falar de um emprego da moda); Herbert Stempel (atuação magnífica de John Turturro), cidadão nada carismático, morador da periferia de Nova York, judeu e vencedor do Twenty-One, a atração de maior audiência da televisão norte-americana da época; e Charles Van Doren, (interpretado por Ralph Fiennes), um bem-apessoado e culto professor universitário, cuja família é composta por intelectuais e literatos.

Disposto a tentar a sorte num programa similar mas menos badalado que o Twenty-One, Van Doren acaba sendo notado pelos produtores. Percebendo de imediato o chamariz de audiência que eram a beleza e o sobrenome prestigioso do professor universitário, eles propõem a Van Doren participar da atração principal. A conversa entre eles é bem reveladora de como é o mundo da TV em matéria de negócios.

O contestante faz uma rápida descrição de sua vida profissional e pessoal. Os produtores, então, querem saber quanto ele ganhava como professor na Universidade Columbia. Diante do pequeno valor informado, eles perguntam:

" - Sabe quanto ganha o palhaço Bozo?
- Bem, nem todos podem ser o palhaço Bozo. [retruca Van Doren]
- Não estou questionando sua escolha profissional, de modo algum. Estou questionando os valores da sociedade que paga alguém como você [tão pouco]. Planeja ter uma família, professor?
- Espero que sim.
- Como pode sustentar uma família [ganhando tão pouco por semana]? Olhe a crise educacional neste país.
- Bem, sim, eu concordo. É um problema nacional.
- Pelo que sei, você veio tentar o jogo Tic-Tac-Dough.
- Bem, meus amigos dizem que tenho uma cabeça boa pra esse tipo de coisa. Eles me empurraram...
- O que acha de participar do Twenty-One? [...] Você é jovem, elegante, vem de uma família proeminente. As crianças vão querer ser como o Charles Van Doren". (Um dos produtores acrescenta: "Se você fosse um garoto, iria querer ser um judeu irritante, com um corte de cabelo horrível?", referindo-se, claro, a Herbert Stempel, o vencedor do Twenty-One, mal-acabado e antipático, que não estava mais agradando ao patrocinador e deveria ser retirado do programa). O professor diz, então, que, quando criança, queria ser Joe DiMaggio - o astro do beisebol, bastante feio, mas que ainda assim casou-se com a maior estrela de cinema da época, Marilyn Monroe. Para ser ainda mais persuasivo, o outro produtor dispara: "É disso que esse país precisa: um Joe DiMaggio intelectual. Com mulher, dinheiro e muito mais, mas com cérebro ao invés de um taco e uma bola".

É óbvio que ninguém na TV estava preocupado com a crise educacional ou estava querendo colocar pessoas inteligentes em sua programação: a única coisa que interessava era melhorar os índices de audiência. Stempel não era mais vendável; por outro lado, havia muito a explorar em Van Doren. Ambos eram apenas instrumentos para ganhar dinheiro. Cumprido seu papel, podiam ser descartados. Quiz Show é uma ótima história por mostrar como vários dos aspectos negativos da televisão apontados hoje - como, por exemplo, seu constante pouco-caso com a lisura e a sua imensa capacidade de manipulação - acompanham este veículo de comunicação de massa desde seus primórdios e não são um expediente recente. O personagem Richard Goodwin, ao final de sua investigação, percebe, desiludido, que não conseguiu incriminar nenhum dos indivíduos poderosos à frente desse negócio lucrativo.

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O princípio organizador, estruturante da TV comercial, o seu centro axiológico, é o índice de audiência. O sociólogo Pierre Bourdieu - num livro ¹ ao qual voltarei noutra postagem, quando for discutir o papel canalha desempenhado pelo jornalismo corporativo brasileiro nos últimos tempos - acredita que a "mentalidade-índice-de-audiência" é o imperativo no meio televisivo. Essa mentalidade estabelece o que merece ganhar evidência e o que deve ser dispensado por não "gerar interesse". Todos os envolvidos com a televisão são pressionados pelo índice de audiência. E, claro, isso produz consequências sobre tudo o que se faz e pode ser feito na TV - e, como se verifica facilmente, muitas vezes isso extrapola o campo do entretenimento de massa e "contamina" outras áreas da cultura. Como observa Bourdieu,

"Por meio do índice de audiência, é a lógica do comercial que se impõe às produções culturais. Ora, é importante saber que, historicamente, todas as produções culturais que considero - e não sou o único, espero - que certo número de pessoas considera como as produções mais elevadas da humanidade, a matemática, a poesia, a literatura, a filosofia, todas essas coisas foram produzidas contra o equivalente do índice de audiência, contra a lógica do comercial. Ver reintroduzir-se essa mentalidade-índice-de-audiência até entre os editores de vanguarda, até nas instituições científicas, que se põem a fazer marketing, é muito preocupante porque isso pode colocar em questão as condições mesmas da produção de obras que podem parecer esotéricas, porque não vão ao encontro das expectativas de seu público, mas que, com o tempo, são capazes de criar seu público".

Antes de prosseguir, preciso ser bem honesto com o(a) eventual leitor(a). Em nenhum momento de minha vida achei que a televisão deveria desempenhar um papel instrutivo ou educacional, em sentido estrito. TV é entretenimento. Se quero aguçar meu pensamento, refletir sobre o mundo, abro um livro, vou a um teatro, museu, ou ouço boa música. Quando chego em casa, porém, de saco cheio do meu trabalho inútil e sem sentido, só desejo comer alguma coisa, deitar no sofá e mergulhar em algumas horas de passatempo escapista - que, no meu caso caso, pode ser uma partida de basquete/vôlei/tênis ou alguns episódios de Os Simpsons (por que iria querer aumentar minha irritação e frustração pensando e aprendendo mais sobre esse mundo de merda através de um programa "educativo"?). Sou capaz de apostar que até o intelectual mais consciencioso do planeta recorre, de forma ocasional ou regular, a algum tipo de estupefaciente: podem ser as drogas propriamente ditas (entre estas o álcool, do qual também me valho com frequência) ou até mesmo os delírios religiosos, místicos, proporcionados por cultos e crenças no sobrenatural (estes, todavia, dispenso). Penso que a programação televisiva também pode desempenhar essa mesma função de entorpecente. Mas se é só isso, a TV não passa de uma fonte de alienação e conformismo, certo? Bem...

Reitero o que disse acima: TV é entretenimento. Quando esta tem a pretensão de ser explicitamente educativa, geralmente temos programas que não agradam a ninguém. Contudo - e isso me parece óbvio -, nem todas as formas de entretenimento são iguais. Nem tudo o que a televisão produz é puro lixo.

Tá maluco?!? E a TV aberta brasileira? - protesta o(a) eventual leitor(a).

Sem grana pra pagar todo o pacote da NET, cortaram-me os canais por assinatura (mantive apenas a internet e o telefone): será assim pelos próximos três longos meses. E tenho que admitir: é desesperador voltar ao mundinho da Globo, SBT, Band... Como ainda se suporta ver Sílvio Santos jogando dinheiro nas pessoas, José Luiz Datena e congêneres simulando indignação na frente das câmeras enquanto expõem acriticamente e com gozo a tragédia urbana brasileira, as telenovelas repetindo o mesmo formato narrativo e estético de 50 anos atrás? E a quantidade sufocante de programação religiosa? Um horror! NOTA: Convém dizer que a TV paga também está cheia dos seus horrores próprios. O que não falta por lá são coisas como Keeping up with The Kardashians,  Dance Moms ou Escola para maridos.

É curioso notar que a melhor programação do sinal aberto está na TV Brasil (que, acertadamente, deixou de se chamar TVE, ou TV educativa, como era conhecida). Samba na Gamboa, Estação Plural, Sr. Brasil, Café Filosófico, Manos e Minas (estes três últimos produzidos pela TV Cultura de São Paulo), Alto-falante e Diverso (ambos, pela Rede Minas) são ilhas de bom entretenimento em meio a tanta porcaria. A má qualidade predominante na televisão nos remete sempre àquele velho enigma: a programação é ruim porque é isso que o público deseja assistir (como alegam as empresas do setor) ou o público consome essa merda apenas porque as corporações de mídia só oferecem isso?

De todo modo - e mesmo com a premência da internet hoje em dia -, não é possível desconsiderar o poder exercido pela televisão, ainda mais num país com o nosso handicap educacional. Atentemos para essa passagem do livro de Pierre Bourdieu:

" 'Com bons sentimentos, dizia Gide, faz-se má literatura', mas com bons sentimentos, 'faz-se índice de audiência'. Seria preciso refletir sobre o moralismo das pessoas de televisão: frequentemente cínicas, proferem palavras de um conformismo moral absolutamente prodigioso. Nossos apresentadores de jornais televisivos, nossos animadores de debate, nossos comentaristas esportivos tornam-se pequenos diretores de consciência que se fazem, sem ter de forçar muito, porta-vozes de uma moral tipicamente pequeno-burguesa, que dizem 'o que se deve pensar' sobre o que chamam 'os problemas da sociedade', [...] A mesma coisa é verdade no domínio da arte e da literatura: os mais conhecidos dos programas ditos literários servem - e de maneira cada vez mais servil - aos valores estabelecidos, ao conformismo e o academicismo, aos valores do mercado".

Nunca tivemos por aqui, pelo que sei, os "programas ditos literários", aos quais se refere o sociólogo francês, mas, para que a análise permaneça válida, podemos substituí-los por algumas das (raras) tentativas de entretenimento não apelativas produzidas pelos canais comerciais brasileiros ao longo do tempo (penso, por exemplo, na adaptação do Sítio do Picapau Amarelo, da Globo, ou no programa Era uma vez uma História, que estreia esta semana na Band). Se, por um lado, acho que TV deve ser exclusivamente entretenimento - e entretenimento não quer dizer, necessariamente, coisa ruim -, esforço-me, por outro lado, para não ser engambelado pela conversa fiada desses "pequenos diretores de consciência" .

No filme Quiz Show, há uma cena em que Charles Van Doren procura explicar para o pai seu envolvimento na fraude investigada pelo Congresso norte-americano. Diz que era "só televisão", algo supostamente inofensivo, usando a mesma fala de seus produtores, tentando convencer a si mesmo de que não havia nada de errado com sua conduta. Gostar de televisão, penso eu, não é pecado, nem uma falha de caráter. Mas não sejamos ingênuos e digamos "é só televisão" quando constatarmos algo pernicioso ou degradante nela - e, como todos estamos carecas de saber, há muita coisa perniciosa e degradante na TV.

Não se pode esquecer nunca que o entretenimento televisivo - por mais que se goste dele - está a serviço, quase todo o tempo, dos valores de mercado, como pontua Bourdieu.

Não é recomendável ficar o tempo todo preso à "tirania" da TV. Um "antídoto" para isso é alargar nossas referências culturais, lendo cada vez mais, em quantidade e profundidade, aproximando-se de manifestações artísticas com as quais não estamos habituados, fugindo da mesmice.

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¹ BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Zahar, 1997 [Tradução de Maria Lúcia Machado]

BG de Hoje

Alô, Aécio Neves, João Doria, Luciano Huck (e todos aqueles que estão - ou estiveram - do lado desses indivíduos): "Meninos mimados não podem reger a nação". Ouçam o recado do CRIOLO nesse sambão de primeira: Menino mimado.


sexta-feira, 14 de abril de 2017

Falou e disse...

"A filosofia de Bertrand Russell não engendrou tantas interpretações quanto a de Heidegger. Por quê? Porque Russell é particularmente claro e inteligível, ao passo que Heidegger é obscuro. Não estou dizendo que um tinha razão e o outro estava errado. Da minha parte, desconfio de ambos. Mas quando Russell diz uma besteira, ele a diz de maneira clara, enquanto Heidegger, mesmo quando diz um clichê, temos dificuldade para percebê-lo. Portanto, passando à história, para durar mais é preciso ser obscuro. Heráclito já sabia disso..." *

* Umberto ECO in CARRIÈRE, Jean-Claude; ECO, Umberto. Não contem com o fim do livro. Rio de Janeiro: Record. 2010. p. 149 [Tradução de André Telles]


sexta-feira, 7 de abril de 2017

Relatos da violência: Diga que você é um deles, de Uwem Akpan


No último capítulo do indispensável livro Para quando a África? ¹, o historiador burquinense Joseph Ki-Zerbo diz ter "a impressão de que a Europa [e este blogueiro acrescentaria também os EUA] não consegue conceber que a África possa desempenhar um papel benéfico para a humanidade". O dito mundo desenvolvido

"Reduz o itinerário da África às últimas décadas em que foi colonizada e mal descolonizada. Enquanto não resolver esse mistério da dificuldade de sair de si, de escapar de si mesma, de ir ao encontro dos outros, de os conhecer e reconhecer, de os compreender e de adotar um mínimo de alteridade, a Europa [e acrescento, mais uma vez, também os EUA] não se compreenderá e todo o mundo sofrerá com isso. Ninguém acha que há alguma coisa de positivo a tirar da África, excetuando o folclore. Nisto, concede-se aos africanos um pouco de imaginação".

Vários são os elementos negativos comumente associados ao continente africano - fome, pobreza, endemias, guerras interétnicas e religiosas, corrupção generalizada. Mesmo nós, desgraçados latino-americanos, costumamos lançar à África um olhar em que se mesclam comiseração, estranheza e um ar de superioridade (afinal, somos caudatários do pensamento produzido nos centros do capitalismo mundial), como se não houvesse problemas idênticos ou mesmo mais acabrunhantes ao nosso redor. Esse olhar negativo, reducionista e carregado de estereótipos, perpetua-se por ignorância e desconhecimento deliberados: a quantas anda, por exemplo, a cobertura de nossos noticiários em se tratando de Angola, Zimbábue, Congo, Tanzânia...? Que lugar é dado à África nos programas de ensino escolar? Sendo uma região famosa pela musicalidade, por que quase não ouvimos falar de popstars africanos de fama internacional? ²

Ao que parece, quando se pensa sobre a África, escolhe-se ressaltar apenas o infortúnio.

Modificar nossa concepção, ampliar nosso entendimento a respeito da África (justamente para evitar o olhar preconceituoso e a atitude de menoscabo), não significa, por outro lado, negar a existência das muitas mazelas que afligem as populações dos países africanos diariamente. E disso - as mazelas - é que falam os cinco contos do aterrador livro Diga que você é um deles ³, de Uwem Akpan.

Logo nas primeiras páginas, o leitor não tem dúvida: o que o escritor nigeriano busca é a denúncia, que se torna ainda mais aguda (e aflitiva)  porque as histórias são contadas através de quatro crianças e um adolescente.

Há assimetrias, contudo, entre os textos, não apenas referente à extensão destes (alguns são bem curtos, outros, bem longos). O autor consegue realizar-se melhor nalgumas narrativas (literariamente falando, pois Akpan, com sabedoria, não adota a postura do documentarista), como no caso de Que língua é essa, Carros fúnebres de luxo e, principalmente, O quarto dos meus pais, do que nas outras - Uma ceia de Natal e Engordando para o Gabão. Embora não haja indicativos de tempo precisos nos contos, pode-se dizer que as histórias ocorrem na década de 1990. Falemos primeiramente dessas duas citadas por último, mas que, justamente, são as que iniciam o livro.

Uma ceia de natal  tem como protagonista - e narrador - o garoto Jigana, de 8 anos, que vive com sua família sem-teto num tabique miserável, erguido numa rua de Nairóbi (o texto integral pode ser encontrado aqui, na versão original, em inglês, caso o(a) eventual leitor(a) tenha interesse). Para ajudar no sustento da família, a filha mais velha, Maisha, de 12 anos, trabalha como prostituta na capital queniana. São 27 páginas brutais, um soco no estômago - e mal sabia o blogueiro o que o aguardaria nas histórias seguintes...

Ao optar pelo foco narrativo de primeira pessoa nesse conto, Uwem Akpan, a meu ver, comprometeu-o um pouco. Fica difícil aceitar que um menino de tão pouca idade consiga ter a capacidade de observação expressa no texto. Jigana conta a história como se tivesse acabado de vivenciá-la e não como uma lembrança de adulto; portanto, é pouco verossímil que uma criança manifestasse uma voz narrativa tão articulada (o escritor dá uma solução melhor para isso no conto seguinte, como veremos). Não posso deixar de mencionar uma ótima passagem. Não querendo que a noite de 24 de dezembro passasse despercebida,  a mãe de Jigana "pegou nossa Bíblia de família, que herdara do pai de Baba [que, em swahili, significa pai; portanto a Bíblia pertencera ao avô paterno de Jigana], para começar nosso culto de Natal". Ao longo das outras histórias, percebe-se que o autor enfatiza a existência de credos e práticas religiosas que se verificam em diversos países africanos. Voltemos à passagem de que falava:

"A capa da frente havia caído, deixando uma página suja coberta de nomes de parentes, mortos e vivos. Ela começou a lê-los. O falecido pai de Baba fizera questão de que todos os nomes de nossos familiares fossem incluídos, em reconhecimento da instabilidade da vida de rua. Mamãe começou pelo pai dela, que tinha sido morto por ladrões de gado antes que ela fugisse para Nairóbi e começasse a viver com Baba. Ela leu o nome da mãe de Baba, que viera para Nairóbi quando sua aldeia foi arrasada porque alguns políticos quiseram redesenhar as fronteiras das tribos. Um dia ela desapareceu na cidade com sua bengala, para sempre. Mamãe invocou os nomes de nossos primos Jackie e Solo, que foram viver em outra aldeia e nos escreveram por intermédio de nossa igreja, pedindo a nossos pais que lhes mandassem dinheiro para pagar a escola. Eu estava ansioso para contar a eles sobre os parques iluminados e os carros bonitos de Nairóbi; faria isso assim que meus professores me ensinassem a escrever cartas. Mamãe chamou pelo irmão, o tio Peter, que me mostrara o jeito de tomar banho nos chafarizes da cidade sem levar chicotadas dos funcionários. Ele foi morto a tiros pela polícia, num caso de confusão de identidade; o necrotério entregou seu corpo à escola de medicina, porque não podíamos pagar a conta. Ela chamou o nome de Mercy, a prima em segundo grau de Baba, a única parenta nossa que terminou o ensino médio. Mercy nunca mais escreveu para nós, desde que se apaixonou por um turista de Honolulu e fugiu com ele. Mamãe leu o nome da irmã de Baba, tia Mama, que, até morrer do coração, dois anos antes, havia todas as noites nos contado histórias e ensinado canções sobre nossas terras ancestrais, em voz doce e nostálgica".

Certamente, a esta pungente lista, juntar-se-iam mais tarde o nome do pequeno narrador e de sua irmã, Maisha.

O conto seguinte - o mais longo, com 114 páginas - foi o que me tocou mais fundo. Também narrado em primeira pessoa (por Kotchikpa, de 10 anos), Engordando para o Gabão dá melhor solução para a incongruência do foco narrativo mencionada acima; desde a abertura do texto, o leitor tem a sensação de que a história foi contada muito tempo depois de acontecida, quando o narrador já não era mais uma criança. Ponto para o autor.  A história me deixou particularmente perturbado por me fazer imaginar o destino terrível de tantos meninos e meninas como Kotchikpa e sua irmã de 5 anos, Yewa - uma das melhores personagens do livro - vítimas do tráfico de seres humanos. Confesso que chorei durante a leitura e não sei se terei coragem de lê-la novamente tão cedo.

Os três contos que completam o livro são os mais bem elaborados e acabados, do ponto de vista artístico, literário.

Que língua é essa? adota o discurso indireto, centrado, porém, nos pensamentos de uma menininha etíope de classe-média. Seu pequeno mundo entra em colapso quando uma conflagração violenta entre muçulmanos e cristãos acontece na cidade onde vivem. Pessoas até pouco tempo próximas tornam-se impedidas de se verem, inclusive a menininha e sua Melhor Amiga, Selam, a colega de escola muçulmana e vizinha do prédio da frente. É o conto menos desesperançado do livro.

Não há humor nestes textos de Uwem Akpan, mas arrisco dizer que em Carros fúnebres de luxo o autor praticou um pouco de ironia, ao elencar uma galeria de tipos caricaturais entre os passageiros de um ônibus que tenta sair do norte da Nigéria, região de imensa maioria islâmica, rumo ao sul, onde o cristianismo e os cultos tradicionais do país são predominantes. Um desses passageiros é o jovem Jubril, de 16 anos. O recurso do flashback é muito bem explorado aqui e o clima de tensão, permanente desde o início:

"O dia inteiro Jubril ansiava pela partida do ônibus, como um prisioneiro que antevisse a própria libertação da cadeia. Esperava junto com a multidão, consciente de não ser um deles, sabendo-se um alvo fácil para a violência esporádica que se apoderara do país, sujeito a ser denunciado por algo tão simples quanto seu sotaque".

Acho oportuno ratificar que o autor, provavelmente por também ser um padre jesuíta, dá muita ênfase à questão religiosa, com acertos e erros de abordagem. Entre os últimos, está o modo como foi caracterizada a personagem da senhora Aniema em Carros fúnebres de luxo, uma descarada puxada de brasa pra sardinha do catolicismo.

Por fim, O quarto dos meus pais é o conto mais elogiado nas resenhas críticas internacionais. Trata do sangrento conflito entre tutsis e hutus em Ruanda sob a ótica de uma garota de 9 anos de idade, Monique. É um texto maravilhosamente escrito mas duro de se ler pelo choque e o torvelinho de emoções que provoca. É nele que se encontra a frase que dá título ao livro de Akpan.

Nas cinco histórias, a fuga torna-se a única opção para personagens lançados em situações extremas.

Antes de encerrar a postagem, retorno a Joseph Ki-Zerbo. O historiador burquinense finaliza suas palavras dizendo:

"Conservo a esperança de que, um dia, os países do [hemisfério] Sul atinjam um mínimo vital, do ponto de vista do crescimento, sem abandonarem a sua própria cultura. Espero também que os países do [hemisfério] Norte ataquem obstinadamente alguns muros do crescimento desenfreado de hoje, feito segundo um modelo liberal que não tem nada a ver com a liberdade. Nesse momento, uns e outros ficarão libertos, como dizia Marx, dos aspectos puramente materialistas da produção. A humanidade poderá finalmente dar o poder à imaginação e à criatividade, isto é, à cultura. Na minha opinião, vale a pena, a partir da África, lançar um olhar sobre esse horizonte da humanidade, hoje reduzido à sua dimensão mais mesquinha, de modo que ela possa um dia exprimir-se abertamente na liberdade, na justiça, no respeito e na solidariedade".

Os problemas da África são muitos - vários deles decorrentes desse "modelo liberal que não tem nada a ver com a liberdade" colocado em prática pelo capitalismo global - e Ki-Zerbo, claro, sabe o desafio que é enfrentá-los. Ainda assim, conserva a esperança. Mesmo que este blogueiro não seja um sujeito otimista, após ler um livro tão impactante quanto Diga que você é um deles, acho que não faz mal sonhar com um futuro menos desumano.

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¹ KI-ZERBO, Joseph. Para quando a África?: entrevista com René Holenstein. Rio de Janeiro: Pallas, 2009 [Tradução de Carlos Aboim de Brito]

² Lembro, a esse respeito, um observação de Frei Betto (não me recordo agora em qual de seus textos). Ele diz mais ou menos o seguinte: é fácil encontrar um poster de um astro da música norte-americana em lojas de disco em Pequim, todavia não se encontra o poster de um artista chinês num estabelecimento congênere em Nova Iorque. A tão incensada globalização é via de mão única em muitos aspectos...

³ AKPAN, Uwen. Diga que você é um deles. São Paulo: Ediouro, 2009 [Tradução de Alice Xavier]

BG de Hoje

Vale a pena expandir nossos horizontes musicais. Nesse aspecto, a internet é uma ferramenta fantástica. Pode-se conhecer artistas de todo o mundo com apenas alguns cliques. Foi assim que eu cheguei à cantora e compositora malinesa FATOUMATA DIAWARA, aqui com a canção Clandestin.