segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Parando para pensar


CENA 1:

"Ponciá Vicêncio gostava de ficar sentada perto da janela olhando o nada. Às vezes, se distraía tanto que até se esquecia da janta e, quando via, o seu homem estava chegando do trabalho. Ela gastava todo o tempo com o pensar, com o recordar. Relembrava a vida passada, pensava no presente, mas não sonhava e nem inventava nada para o futuro. O amanhã de Ponciá era feito de esquecimento. Em tempos outros, havia sonhado tanto!". A personagem também desejava um outro nome pois "sentia-se ninguém". O homem com quem ela vivia e dividia o seu barraco acabara de chegar e "viu a mulher distraída na janela. Olhou para ela com ódio. A mulher parecia lerda. Gastava horas e horas ali quieta olhando e vendo o nada. [...] Uma noite ela passou todo o tempo diante do espelho chamando por ela mesma. Chamava, chamava e não respondia. Ele teve medo, muito medo. De manhã, ela parecia mais acabrunhada ainda. Pediu ao homem que não a chamasse mais de Ponciá Vicêncio. Ele, espantado, perguntou-lhe como a chamaria então. Olhando fundo e desesperadamente nos olhos dele, ela respondeu que poderia chamá-la de nada".

CENA 2:

"Ponciá Vicêncio deitou-se na cama imunda ao lado do homem e de barriga para cima ficou com o olhar encontrando o nada. Veio-lhe a imagem de porcos no chiqueiro que comem e dormem para serem sacrificados um dia. Seria isto vida, meu Deus? Os dias passavam, estava cansada, fraca para viver, mas coragem para morrer, também não tinha ainda. O homem gostava de dizer que ela era pancada da ideia. Seria? Seria! Às vezes, se sentia, mesmo, como se a sua cabeça fosse um grande vazio, repleto de nada e de nada.

Quando Ponciá Vicêncio resolveu sair do povoado onde nascera, a decisão chegou forte e repentina. Estava cansada de tudo ali. De trabalhar o barro com a mãe, de ir e vir às terras dos brancos e voltar de mãos vazias. De ver a terra dos negros coberta de plantações, cuidadas pelas mulheres e crianças, pois os homens gastavam a vida trabalhando nas terras dos senhores, e depois a maior parte das colheitas ser entregue aos coronéis. Cansada da luta insana, sem glória, a que todos se entregavam para amanhecer cada dia mais pobres, enquanto alguns conseguiam enriquecer-se a todo o dia".


As duas passagens acima fazem parte do romance Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo ¹. O fluxo da narrativa vai e volta no tempo por meio, sobretudo, das lembranças da protagonista - "Ponciá gastava a vida em recordar a vida. Era também uma forma de viver", registra a voz narradora à certa altura. No primeiro excerto destacado nesta postagem, pode-se perceber o peso conferido ao ato de lembrar na composição psicológica da personagem central.

A propensão para o ensimesmamento é um dos principais traços de Ponciá Vicêncio, pela necessidade dela de retornar ao passado através das recordações. Há também, por outro lado, um certo alheamento, ocasiões frequentes em que ela é "tomada pela ausência", contemplando "sempre um outro lugar de outras vivências". Esse sair de si não significa enlevo: por vezes identifica-se com o adoecimento mental (isso acabará sendo evidenciado no romance, sem contar as reiteradas menções à "herança" do avô da personagem). Observe-se a passagem a seguir:

"Nas primeiras vezes que Ponciá Vicêncio sentiu o vazio na cabeça, quando voltou a si, ficou atordoada. O que havia acontecido? Quanto tempo tinha ficado naquele estado? Tentou relembrar os fatos e não sabia como tudo se dera. Sabia apenas que, de uma hora para outra, era como se um buraco abrisse em si própria, formando uma grande fenda, dentro e fora dela, um vácuo com o qual ela se confundia. Mas continuava, entretanto, consciente de tudo ao redor. Via a vida e os outros se fazendo, assistia aos movimentos alheios se dando, mas se perdia, não conseguia saber de si. No princípio, quando o vazio ameaçava encher a sua pessoa, ela ficava possuída pelo medo. Agora gostava da ausência na qual ela se abrigava, desconhecendo-se, tornando-se alheia de seu próprio eu".
Esse "olhar para o vazio", esse "ver o nada", pode, a princípio, ser interpretado como a total passividade. Entretanto, seria um erro, pois, a meu ver, a postura de Ponciá revela ainda um outro sentido, relacionado ao profundo gesto de parar para pensar, de refletir sobre a existência e suas condições.

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Em outro texto escrito por Conceição Evaristo, O cooper de Cida ², testemunhamos um despertar de consciência.

Nesse conto, a personagem carregava, desde criança, "um sentimento de urgência". Acreditava que era preciso ser rápida, não perder tempo na competição representada pela própria vida em sociedade: "corria sobre a corda bamba, invisível e opressora do tempo. Era preciso avançar sempre e sempre". Em visita ao Rio de Janeiro pela primeira vez aos 11 anos, vinda de uma cidadezinha interiorana onde as pessoas "andavam, falavam e viviam de-va-gar-zi-nho", Cida encantou-se com a metrópole:

"Descobriu no turbilhão da cidade um jogo de caleidoscópio formado por peças, gente-máquinas se cruzando, entrecortando braços, rodas, cabeças, buzinas, motos, pernas, pés e corpos aromatizados pela essência da gasolina. Cida descobriu outras pessoas também portadoras da urgência de vida que ela trazia em si".

Aos 29 anos, já estabelecida na capital fluminense, "a vida seguia no ritmo acelerado de seu desejo. Trabalho, trabalho, trabalho. O dia entupido de obrigações". Afinal, "é preciso correr, para chegar antes, conseguir a vaga, o lugar ao sol, pegar a fila pequena no banco, encontrar a lavanderia aberta, testemunhar a metade da missa".

E, literalmente, Cida tinha o hábito de correr. "Todas as manhãs, os pés de Cida pisavam rápido o calçadão da praia. Iam e vinham em toques rápidos e furtivos, como se estivessem envergonhados dos carinhos que o solo pudesse lhes insinuar no decorrer da marcha".

Naquele dia, porém, algo diferente se deu: "um sentimento pachorrento", somado a "um desejo de querer parar, de não querer ir" apoderou-se dela. E "sem perceber, permitiu uma lentidão aos seus passos, e pela primeira vez viu o mar". É quando a personagem para pra pensar (nesse ponto, o conto assemelha-se a algumas narrativas de Clarice Lispector, como por exemplo, Amor, do livro Laços de família). A sensação inicial é de tédio - o oceano comporta-se sempre do mesmo modo há milhões de anos. Até perceber que a repetição vista no mar também pode ser constatada nos "principais atos dela: levantar, correr, sair, voltar".

Atenção para esta passagem:

"Contemplou os rostos que passavam, conhecia todos de relance. Todas as manhãs topava com aquelas faces suadas diante de si. Assustou-se. Percebeu que não estava correndo. Estava andando em câmera lenta, quase. Sentiu a planta dos pés, mesmo guardada nos tênis, tocando o solo. Ela estava andando, parando, andando, parando, parando. Todos os seus membros estavam lassos, só o coração batia estonteado. Cida levou a mão ao peito. Sentiu o coração e os seios. Lembrou-se então de que era uma mulher e não uma máquina desenfreada, louca, programada para correr-correr. Envergonhou-se dos orgasmos premeditados, cronometrados que vinha cultivando até ali. Ela não se entregava nunca e repudiava qualquer gesto de abandono que alguém pudesse ter diante dela. A corda bamba do tempo, varal no qual estava estendida a vida, era frágil, podendo se romper a qualquer hora. Era preciso, pois, um constante estado de alerta"

Pensar sobre a existência e suas condições é o que faz Cida, dirigindo o olhar para o mar e desacelerando. A transformação da personagem ocorre após um irrefreável e intenso exercício reflexivo.

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O que estou querendo dizer com a expressão parar para pensar?

Milhões e milhões de seres humanos, em todo o planeta, veem-se obrigados a realizar, quase diariamente, tarefas das quais não extraem qualquer satisfação ou alegria - e pior -, nem experimentam sentimentos de realização pessoal (sem mencionar que muitas dessas tarefas resultam em muito cansaço físico e/ou esgotamento mental). Desses milhões (poderia dizer bilhões), uma parcela imensa não conheceu outra vida que não aquela pautada pela precariedade. Entretanto, não são poucos os indivíduos submetidos a essas condições que, se perguntados sobre o porquê disso tudo, se a vida não reservaria outras possibilidades, prostram-se numa mudez resignada ou, quando se pronunciam, recorrem aos bordões que lhes foram inculcados ao longo do tempo: "As coisas são assim desde que o mundo é mundo" ou "É a vontade de Deus".

Há ainda aqueles que, menos ameaçados pela escassez material (ainda que igualmente imersos em atividades laborais alienadoras), aceitam sem questionar a ideia de que a vida não passa de uma disputa (a maioria não vence) e não se pode perder tempo - afinal, tempo é dinheiro.

Em todos esses casos, as pessoas são sujeitadas pela opressão socioeconômica. Trabalha-se até o limite da resistência física e mental para se alcançar a mera subsistência; trabalha-se em ritmo incessante - na "correria", como se costuma dizer -, pois esse é o éthos que se julga adequado para "não ficar para trás" (e ganhar, muitas vezes, resulta num processo de desumanização).

Pois bem, parar para pensar é subtrair-se, através do pensamento, dos condicionamentos e interdições impingidos a nós pelo ambiente sociocultural opressor e, nesse exercício, questionar a si e ao mundo. Parar para pensar pode ser subversivo, libertador, revolucionário.

Infelizmente, é de se supor, contudo, serem poucos, muito poucos, aqueles que - a despeito do cansaço físico e mental, da necessidade de obter o "pão de cada dia", da crença de que viver em sociedade significa apenas competir uns contra os outros - conseguem realizar a pausa necessária e erguer a cabeça para fora desse quadro de opressão, ainda que momentaneamente.

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Voltemos aos textos de Conceição Evaristo.

Num dos capítulos de Ponciá Vicêncio, a personagem se pergunta como o homem com quem vivia podia dormir tão tranquilamente, "como se estivesse com a vida resolvida".

"Deus meu, será que o homem não desejava mais nada? Para ele bastava o barraco, a comida posta na lata de goiabada vazia? O pó, a poeira das construções civis, o gole de pinga nos finais de semana? O papo rápido com os amigos? Será que só isso bastava?"

Apesar de tudo, porém, Ponciá percebe nele "um vislumbre de tristeza". Gostaria de conversar, desabafar, mas desiste em razão da brutalidade e mutismo do outro. Uma das lições extraídas após a leitura do romance é que a inclinação para o pensar, para o refletir, pode implicar muita solidão (e tanto pior para quem é como Ponciá Vicêncio, cheia de um "desesperado desejo de encontro").

Em O cooper de Cida, embora o leitor não saiba que rumo a vida da personagem seguirá após a sua tomada de consciência quando parou para pensar diante do oceano Atlântico, pode-se especular que ela pelo menos tentará não sucumbir por completo diante da opressão.

Posso dizer também que há uma valiosa lição nesse conto. Cida observa um nadador brincando na água. Ela

"Aguardou cá fora desejando ansiosa que ele saísse. Ela queria saber do tempo dele, barganhar momentos, pedir um tempo emprestado talvez. Como uma pessoa, em plena terça-feira, às seis e cinquenta e cinco da manhã podia estar tão tranquilamente brincando no mar? Deveria ser extremamente rico. Viver de juros. Lembrou-se dos mendigos que constantemente cruzavam o seu caminho. Eram extremamente pobres. Ou o tempo não se media com moeda, ou as horas, os dias, os anos não seriam medidas justas do tempo".

Entre os muitos sinais de uma vida carregada de privilégios está a maneira como se pode dispor do tempo.

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Antes de encerrar, acho oportuno reproduzir aqui um trecho da entrevista de Conceição Evaristo feita pela Carta Capital em maio de 2017. Quando perguntada sobre a publicação propriamente dita de seus textos, Evaristo respondeu que

"as feministas brancas usam uma máxima quando elas falam que escrever é um ato político. Para nós mulheres negras, escrever e publicar é um ato político. Por causa da minha primeira publicação, Ponciá Vicêncio, fiquei um ano no vermelho para pagar a editora Mazza, em 2003. Eu paguei a primeira e segunda edição e, anos depois, esse livro foi para o vestibular da Universidade Federal de Minas Gerais. A partir daí a editora assumiu sozinha. Becos da Memória, outro livro meu, a editora assumiu sozinha. Com outros livros, eu dividi os custos [Hoje os livros da autora fazem parte do catálogo da editora Pallas]. Então esse processo de publicação infelizmente ainda hoje é necessário. Eu tenho dito para as mulheres negras que a gente precisa encontrar formas coletivas de publicar. Publicar é um ato político para nós e precisamos jogar isso na cara de quem está aí para confrontar".

É preciso não ter ilusões: ainda é muito difícil para a obra de autores afro-brasileiros (sobretudo a das mulheres afro-brasileiras) ganhar visibilidade. Os entraves são consideráveis (inclui-se, como visto no relato acima, arcar com custos de publicação/impressão). O racismo estrutural manifesta-se também no campo literário. Como observa Conceição Evaristo na mesma entrevista, "a literatura ainda é um espaço de interdição. A literatura como sistema, porque o texto é uma coisa, mas o sistema literário é formado por editoras, por críticos, pela mídia, pelas bibliotecas, livrarias, prêmios" e esse sistema "está na mão das pessoas brancas".

Caso o(a) eventual leitor(a) tenha interesse, escrevi sobre outro romance de Conceição Evaristo, Becos da Memória, em novembro de 2009 (para acessar, clique aqui).

Na próxima postagem, destacarei um dos meus livros prediletos: O senhor das moscas, de William Golding.

__________
¹ EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2003

² EVARISTO, Conceição. O cooper de Cida. In: ___________. Olhos d'água. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2016. p. 65-70

BG de Hoje

Acho que todo mundo tem uma lista de canções que, mesmo sendo muito tocadas (no rádio, por exemplo), nunca cansamos de escutar. Fallin', da talentosíssima ALICIA KEYS, faz parte da lista deste blogueiro.