quinta-feira, 14 de julho de 2016

Não se pode esquecer que somos seres de linguagem: discutindo o politicamente correto


Estamos cercados de não-leitores (anti-leitores, diria até). Numa situação tal, difundir Filosofia através de textos é tarefa inglória. Deve ser por isso, talvez, que encontramos na atualidade tanta pop philosophy, com representantes em solo brasileiro, inclusive: Mario Sergio Cortella, Viviane Mosé, Luiz Felipe Pondé, entre outros. Márcia Tiburi, cujo trabalho, diferentemente dos citados, me interessa e agrada (mas que eu incluiria nessa categoria sem hesitação), publicou um manifesto a respeito dessa modalidade de filosofia na revista Cult, um tempinho atrás (disponível aqui). Além disso, a autora lançou em 2011 um livro cujo título é justamente Filosofia Pop.

Independentemente do posicionamento assumido (ou não) dentro do espectro político-ideológico, todos os pop thinkers - chamemo-los assim, sem qualquer intenção depreciativa - tornam flagrante aquela característica de trabalho menos admitida pelos filósofos quando descrevem a si mesmos: a de serem os grandes palpiteiros profissionais no universo da intelectualidade (calma, pessoal: é só uma provocaçãozinha). Isso pode explicar a considerável presença de alguns deles nos meios de comunicação de massa e/ou nas mídias sociais da Internet, sobretudo através de registros em vídeo (e nota-se claramente que alguns/algumas têm maior talento oratório e performático do que outros/as). 

Uma "tarefa" frequente dos pop thinkers é aliviar o esforço de leitura daquele indivíduo motivado para a Filosofia (raro até entre os poucos ainda leitores) mas não tanto a ponto de encarar as páginas e páginas de uma fonte primária, original (seja esta um texto de Aristóteles, Descartes, Husserl ou qualquer outro pensador clássico/canônico) ou mesmo algumas linhas que sejam de obras elaboradas por comentadores e especialistas em determinado filósofo ou tópico da área.

O mundo de Sofia, do norueguês Jostein Gaarder, é provavelmente o mais conhecido livro de pop philosophy publicado nas últimas décadas (embora muitos talvez não deem a ele essa rotulação) NOTA¹: Gosto desse livro. De gênero completamente diverso do romance de Gaarder - mas pertencente à mesma linha pop - estão as compilações organizadas pelo norte-americano William Irwin, tais como Seinfeld e a Filosofia: um livro sobre Tudo e Nada, Os Simpsons e a Filosofia: o D'oh! de Homer e Matrix: bem-vindo ao deserto do real (gosto do último, mas não tanto dos dois primeiros). NOTA²: Vale muito a pena ler o ótimo artigo de John Shelton Lawrence, Pop Culture 'and Philosophy' books, publicado em 2007 na revista Philosophy Now (disponível aqui, em inglês). No texto, o autor se pergunta sobre a validade ou não deste tipo de publicação para a difusão do entendimento filosófico.  Na França, alguns livros de Luc Ferry (excelente escritor, diga-se de passagem) e André Comte-Sponville são claramente pop philosophy. Isso sem falar em praticamente todos os trabalhos água-com-açúcar lançados pelo suíço Alain de Botton. Ah, e vale acrescentar alguns escritos de Slavoj Zizek... Incluirei também na linha pop o livro do catalão Xavier Rubert de Ventós, Deus, entre outros inconvenientes*.

Embora afirme não pretender fazer "uma crônica do nosso tempo", Rubert de Ventós acaba por reunir em sua publicação uma série de... crônicas (não consigo achar outro termo para classificar o gênero textual empregado pelo autor nessa publicação)**, abordando temas variados -     dos desafios éticos da
biotecnologia à programação televisiva, dos percalços da democracia às vicissitudes da moda no vestuário - e recorrendo, ligeira e competentemente, a pensadores como Kierkegaard, Nietzsche, Hegel, Pascal, Rousseau, Kant, Wittgenstein e figuras do período helenístico (entre outros).

No cômputo geral, entretanto, considero Deus, entre outros inconvenientes um livro com mais contras do que prós - a despeito de minha simpatia com o ateísmo do autor, motivo, aliás, que me levou a comprar o título há três anos. De todo modo, um texto ali - Ser politicamente (e esteticamente) correto - servirá de base para a discussão da postagem de hoje.

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Após argumentar que o fenômeno da correção política foi uma "invenção" norte-americana vista de maneira desdenhosa pelos europeus (como várias coisas provenientes dos EUA), Rubert de Ventós considera que não se trata, contudo, apenas de uma "maquiagem" usada para encobrir os verdadeiros conflitos e desigualdades. Segundo o catalão,

"[...] os estudos modernos de 'longa duração' [das ciências sociais] revelaram que muitos fenômenos que víamos como inscritos na natureza humana não são senão obra sua; o lento produto do enfrentamento e adaptação de uma espécie a seu ambiente. E também que as características ou funções atribuídas a homens ou mulheres, adolescentes ou doentes, judeus ou estrangeiros são uma construção que hoje nos permite falar de uma 'história natural' da infância, da morte, da homossexualidade, etc,"

Ou seja, grande parte dos atributos que "identificamos" nos indivíduos ou grupos de indivíduos tem origem histórica, não são inatos; foram construídos, moldados, pré-concebidos. Tudo isso ficará inscrito na cultura, graças a ação dos grupos dominadores, com evidentes reflexos na linguagem, obviamente. 

"Vista dessa perspectiva" - prossegue Rubert de Ventós - "a ação de lutar tanto pela contratação (discriminação positiva para minorias) como pela designação (linguagem politicamente correta) dos grupos marginais ou minoritários não parece mais que uma tímida tentativa de amenizar ou compensar a desigualdade de oportunidades de que eles partem. Reconhece-se com isso pelo menos que o passado foi construído em boa medida às suas custas e que a própria linguagem com que são nomeados serve para reforçar e perpetuar essa condição. 'A maravilha da linguagem', dizia Merleau-Ponty, 'é que se faz esquecer por trás do dito'. Essa é sua maravilha, de fato, e esse é também seu maior perigo: o de nos levar a tomar as palavras pelas coisas - ou as definições por meras e assépticas definições".

Discordo do autor quando usa a expressão discriminação positiva; prefiro pensar em reparação histórica (uma vez que o próprio filosofo admite que se trata de reconhecer que "o passado foi construído em boa medida às custas" dos grupos marginalizados/minoritários). Seriam as atitudes politicamente corretas, de fato, apenas uma "tímida tentativa"? Deixo essa questão em aberto. Pensemos agora noutro aspecto bastante discutido quando o assunto é o chamado politicamente correto: o humor e a atividade humorística.

Em sua Carta aberta aos humoristas do Brasil, Alex Castro (também conhecido como Xandelon, foi colaborador da extinta revista MAD, em sua edição brasileira) afirma que muitos comediantes e profissionais ligados ao humor costumam reclamar de uma patrulha, isto é, certa vigilância que os impediria de fazer o que fazem, configurando até uma restrição para a liberdade de expressão. Castro observa que 

"Torcer o nariz para as piadas racistas, homofóbicas ou machistas não é 'patrulha': é o público exercendo pacificamente sua liberdade de expressão de considerar babaca uma pessoa que faça piadas racistas, homofóbicas ou machistas. Esses pobres humoristas 'perseguidos' que reclamam da 'patrulha politicamente correta' não estão defendendo a liberdade de expressão: liberdade de expressão de verdade é comediantes poderem fazer piada sobre mulheres estupradas e nós podermos fazer críticas severas a isso. Na verdade, a liberdade que querem essas pessoas paladinas do 'politicamente incorreto' é a liberdade de falar os maiores absurdos sem nunca sofrerem críticas. Aí é fácil, né?"

As pessoas precisam assumir responsabilidade não só pelo que fazem, mas também pelo que dizem. Somos, essencialmente, seres de linguagem. Portanto, palavras não são "só" palavras; seu uso produz consequências. Foi-se o tempo, felizmente, em que alguém podia chamar, só "de brincadeirinha" outro alguém de macaco, fazer graça com uma mulher agredida, dizer que "esses viados precisam é de porrada" e esperar que todo mundo ache divertido ou simplesmente engula o sapo sem reclamar. 

Alex Castro, a meu ver, é certeiro quando diz: "não existe piada inofensiva: se alguém gargalhou é porque alguém se deu mal". Mas "a questão é: quem se dá mal nessa piada?". Fazer piada com os alvos de sempre - homossexuais, mulheres, negros, pobres -, além de revelar falta de criatividade, é reforçar preconceitos e discriminações por meio da linguagem. É adular a opressão. Por isso, Castro aconselha: "façam graça das pessoas que agridem, não das que são agredidas". Voltemos à crônica da qual falávamos.

É importante ressaltar que Rubert de Ventós também incluiu em seu texto reflexões sobre a discriminação que ocorre em relação à aparência dos indivíduos (é preciso ter isso em mente para compreender melhor o excerto abaixo):

"O dogma liberal desejaria que a aparência e outros fatores genéticos não tivessem influência decisiva na vida dos indivíduos. 'A ideia implícita que existe em nossa sociedade', dizia E. Bescherd, 'é de que vivemos num mundo onde cada qual recebe aquilo que merece'. A face obscura dessa ideia é a convicção de que, se nos coube a desgraça ou a miséria, algo fizemos para merecê-la, já que o ponto de partida era igual para todos. Essa é a crença liberal que culpa o desgraçado por suas desgraças ao mesmo tempo em que exime o agraciado ou privilegiado de qualquer responsabilidade para com os outros. Vem daí a tese que expus neste capítulo, que resumo agora em três pontos: 1) contra a desigualdade social de oportunidades é preciso lutar; 2) com a desigualdade de oportunidades físicas ou psíquicas é preciso, além disso, aprender a contar; e 3) diante da desigualdade sancionada pelos usos e pela própria linguagem é preciso compensar seus efeitos, embora até agora não se tenha inventado um expediente mais eficaz que a 'discriminação positiva' nem nada menos brega que o 'politicamente correto' ".

Deixando de lado o qualificativo brega adotado acima, há que se destacar duas coisas importantes nessa passagem. Primeiramente, a advertência, correta a meu ver, acerca da falácia do discurso meritocrático (principalmente quando se pensa em nações tão desiguais, socioeconomicamente falando; ora, deveria ser evidente para todos que o desgraçado, em grande parte dos casos, não pode ser culpado por sua desgraça e que o privilegiado precisa ter consciência de seus privilégios). E, segundo, a constatação de que nossos usos da linguagem sancionam situações de desigualdade.

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O(a) eventual leitor(a) pode não ter entendido o porquê da primeira seção desta postagem - tratando do reduzido número de leitores na sociedade e da filosofia pop -, já que o assunto central aqui é outro (o chamado politicamente correto). Convém explicar.

Uma de minhas constantes preocupações (e não apenas pelo lado profissional) é com a baixíssima atividade de leitura imersiva entre as pessoas de um modo geral (para saber do que estou falando, clique aqui). Determinados tipos de texto - como a literatura mais sofisticada/de vanguarda e o discurso filosófico, por exemplo - são mais difíceis de circular entre (e serem assimilados por) um público não-restrito (ou seja, não-elitizado). Como contornar essa situação (caso seja importante ou desejável fazê-lo, claro)?

Talvez uma alternativa possível, no caso da Filosofia, pelo menos, seja a publicação de livros "mais leves" (e um exemplo seria o próprio Deus, entre outros inconvenientes).

Mas não é simples produzir (bons) textos de conteúdo filosófico com essa característica (a "leveza"). A propósito, há uma crônica excelente a esse respeito no livro de Rubert de Ventós. Em Passar as ideias a ferro, o filósofo espanhol relata algumas das dificuldades de se escrever artigos que não compliquem a leitura, dificuldades surgidas sobretudo para "nós, para quem sempre falta um último remate, cujas sinapses se cruzam e cujas ideias se multiplicam, ramificam e complicam como um conto de Arce".

Noutra oportunidade falarei mais dessa crônica.
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* RUBERT DE VENTÓS, Xavier. Deus, entre outros inconvenientes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011 [Tradução de Eliana Aguiar]

** Acho que o termo ensaio não seria adequado para descrever o tipo de texto encontrado na maioria dos escritos do autor nesse livro.

BG de Hoje

Num momento em que a legitimidade das ações policiais (dada a violência e o viés racista manifestado nelas) está sendo questionada em várias partes do mundo (no Brasil e nos EUA, de forma mais aguda nos últimos anos), é no mínimo estranho que o blogueiro use como BG uma canção que homenageia um dos heróis mais sinistros dos quadrinhos, o juiz Dredd. Estou falando de I Am The Law, do ANTHRAX, faixa que faz parte do ótimo disco Among The Living (gravado em 1987 e que eu ouvi quase até furar). Mas quando eu era garoto (e aposto ter sido assim também com os caras do Anthrax), aquela história nos interessava simplesmente como narrativa de ação e aventura. O juiz-policial-carrasco foi adaptado para o cinema em duas oportunidades: uma vez na década de 1990, com Sylvester Stallone no papel principal (é uma bosta!), e mais recentemente, em 2012, num bom filme protagonizado por Karl Urban (na apresentação abaixo, há um cara no palco fantasiado como o Dredd desta última adaptação cinematográfica).