Há certos trechos de Grande sertão: veredas que são exaustivamente citados e, assim tão repetidos, acabam por se tornar clichês, perdendo muito do encantamento inicial. Quer um exemplo?
"O senhor... mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam, verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso me alegra de montão".
Mesmo desgastado pela repetição, o trecho acima ainda me leva a refletir sobre muitas coisas (afinal, Guimarães Rosa será sempre Guimarães Rosa). Não estamos condenados a mantermos as mesmas velhas visões de mundo, a carregarmos os inexplicáveis preconceitos e opiniões que sempre tivemos e aos quais nos acostumamos preguiçosamente. Somos livres - ao menos sob certas circunstâncias - para mudarmos nosso modo de pensar e agir; devemos fazê-lo, inclusive, em muitas situações, para que novos compromissos éticos sejam firmados - "as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando". Ser um indivíduo mais sábio depende do modo como damos acabamento ao eu que queremos apresentar ao mundo, o quanto conseguimos afinar em meio a tanta desafinação.
O parágrafo anterior não difere da autoajuda barata, admito. Não quer dizer, entretanto, que eu esteja necessariamente mentindo. Falei sobre o eu que se quer apresentar ao mundo e não posso deixar de pensar nessa forma contemporânea de construção da subjetividade que são as ditas mídias sociais. Já insisti aqui no blog em outras oportunidades que nos Facebooks, Twitters, Instagrams e Snapchats da vida estamos lidando, a maior parte do tempo, com um perfil e não com uma pessoa. Nesse perfil, o indivíduo publica algo de si, sem dúvida, mas seleciona, em geral, somente aquilo que o deixa bem na fita. Por isso, não costumo confiar em perfis na web. Além do narcisismo e da autorreferência sufocantes que os caracterizam, eles omitem muito da babaquice de que fomos (e, na maioria dos casos, ainda somos) feitos.
Em geral, alinho-me a causas progressistas, humanistas e "do bem" (argh, como odeio essa expressão!). E posso às vezes dar a impressão de que sou culto e intelectualmente bem aparelhado. Tudo bobagem! Este é o perfil que tento projeto na web. É altamente provável que, no fundo, permaneça sendo um indivíduo desprezível (como boa parte dos sujeitos que conheço pessoalmente, aliás).
Mas se "as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas", creio valer a pena não ser mais aquele cara que (e eis uma pequena amostra do merda que já fui)
- contou piadas racistas, machistas e homofóbicas sem se dar conta do mal que estava fazendo
- endossou discursos de ódio dirigidos a gays, lésbicas e transgêneros
- já tentou justificar, por rancor pessoal, discursos misóginos e sexistas
- já foi um leitor preguiçoso e desleixado (e ainda hoje tem grande resistência na hora de largar a TV para pegar um livro)
- alvo de bullying nalgumas ocasiões, não deixou, contudo, de praticá-lo impiedosamente também durante parte da infância e da adolescência
- já disse grosserias para mulheres na rua porque acreditava que "homem que é homem tem que fazer isso"
- já colecionou a revista Playboy, um símbolo da objetificação da mulher (e ainda não conseguiu se livrar totalmente do hábito nefasto de olhar as mulheres como objetos algumas vezes)
- já pré-julgou grupos de jovens negros como "arruaceiros" e "marginais" sem que eles fizessem nada de errado, mesmo sendo negro ele(eu) próprio
- já votou em péssimos candidatos, por desinformação e baixa preocupação com a coletividade
- já achou graça em programas do tipo Pânico
- já se recusou a pelo menos repensar seu consumo de carne
Definitivamente, não quero mais ser esse cara. Embora (pessimista crônico) não acredite mais na viabilidade da espécie humana e não ache que nos tornaremos seres melhores algum dia, pretendo ao menos combater minha babaquice interior enquanto eu puder.
BG de Hoje
Pessoas de minha geração (nascidos nos anos 1970 e que viveram a maior parte de sua adolescência na década seguinte) têm alguns surtos nostálgicos que me dão nos nervos às vezes. Estranhamente, contudo, acabei tendo um desses hoje, ao lembrar desta faixa Talking in your sleep, da banda one-hit-wonder THE ROMANTICS. Como eu gosto dessa música (e como ela me lembra coisas legais)!