sexta-feira, 1 de julho de 2016

Esse tal de paradigma...


Algo une gurus de autoajuda a profissionais do entretenimento; jornalistas encanecidos a youtubers imberbes; líderes sindicais a marqueteiros da moda: o (ab)uso da palavra paradigma. É mudança de paradigma pra cá, quebra de paradigma pra lá... Como todo chavão, torna-se oco, esvaziado de sentido com o passar do tempo.

O Dicionário Houaiss* nos dá três acepções para o termo. As duas últimas referem-se a usos em contextos bem delimitados (na gramática e na linguística estrutural) e não vem ao caso agora. Vamos à primeira, então: "um exemplo que serve como modelo, padrão". O verbete nos fornece também a etimologia: vem do grego parádeigma, significando, justamente, modelo, exemplo. Por que, então (diabos me carreguem!), ao invés de dizer simplesmente "modelo", "padrão" ou "exemplo", tanta gente faz questão de soltar logo um "paradigma"? Tem a ver, claro, com exibicionismo discursivo. Entretanto, deixarei isso para um outro momento da postagem.

Paradigma fez (e ainda faz) parte do jargão acadêmico em algumas áreas. Difundiu-se a partir dos anos 1960-70 graças, principalmente, a um livro surpreendentemente agradável de se ler, a despeito de seus temas interessarem mais a um público restrito e intelectualizado: A estrutura das revoluções científicas, de Thomas S. Kuhn** (mas nem por isso se tornou um best-seller, convenhamos).

O físico e ensaísta norte-americano propôs em seu livro um novo enfoque para os estudos históricos dedicados à atividade dos cientistas: "talvez a ciência não se desenvolveu pela acumulação de descobertas e invenções individuais", escreve ele no prefácio. Também é nessa seção que se pode encontrar sua primeira definição de paradigma:

"Considero "paradigmas" as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência".

E logo adiante, no primeiro capítulo, Kuhn acrescenta que tais realizações precisam apresentar duas características essenciais para serem consideradas paradigmas: "[serem] suficientemente sem precedentes para atrair um grupo duradouro de partidários, afastando-os de outras formas de atividade científica dissimilares", bem como "[serem] suficientemente abertas para deixar toda espécie de problemas para serem resolvidos pelo grupo redefinido de praticantes da ciência"

Essas realizações acontecem no âmbito daquilo que o autor chama de "ciência normal", que "significa a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações científicas passadas. Essas realizações são reconhecidas durante algum tempo por alguma comunidade científica específica como proporcionando os fundamentos para sua prática posterior"

Ou seja, na maior parte das vezes, a ciência segue padrões e parâmetros já estabelecidos. E é rígida. O que não implica defeito intrínseco: isso a faz ser operacional e bem sucedida, por incrível que pareça.

Como se vê, o termo paradigma, empregado da maneira que acabamos de mostrar, distancia-se do sentido popularizado a partir dos anos 1980-90. Porém, quando um comentarista esportivo, num desses inúteis programas de debate futebolístico na TV, diz que o treinador Fulano precisa "partir para um novo paradigma tático" (sim, eu ouvi essa bobagem dias atrás)***, está fazendo um uso do vocábulo, acredito eu, como sendo quase uma reverberação (ainda que longínqua e equivocada) do termo paradigma tal como este foi adotado por Thomas S. Kuhn. E esse uso estranho é "culpa" dos cursos universitários das (muitas vezes pejorativamente) chamadas ciências humanas e áreas afins. Tentarei me fazer entender

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De acordo com Thomas Kuhn, os cientistas precisam "assumir um corpo qualquer de crenças comuns [relacionadas a uma determinada concepção de como a natureza "funciona"]". Caso contrário, não estão fazendo ciência, pois poderiam, nesse caso, simplesmente aderir ao pressuposto metafísico que mais lhes agrade no momento. O autor exemplifica com a óptica:

"Por não ser obrigado a assumir um corpo qualquer de crenças comuns, cada autor de óptica física sentia-se forçado a construir novamente seu campo de estudos desde os fundamentos. A escolha das observações e experiências que sustentavam tal reconstrução era relativamente livre. Não havia qualquer conjunto-padrão de métodos ou de fenômenos que todos os estudiosos da óptica se sentissem forçados a empregar e explicar. Nessas circunstâncias o diálogo dos livros resultantes era frequentemente dirigido aos membros das outras escolas tanto como à natureza. Hoje em dia esse padrão é familiar a numerosos campos dos estudos criadores e não é incompatível com invenções e descobertas significativas. Contudo, esse não é o padrão de desenvolvimento que a óptica física adquiriu depois de Newton e nem aquele que outras ciências da natureza tornaram familiar hoje em dia".

A ciência normal põe fim aquilo que Kuhn chama de "incomensurabilidade de maneiras de ver o mundo". A prática desse tipo de ciência estabelece o conjunto-padrão de métodos e indica quais fenômenos os estudiosos se sentem forçados a empregar e explicar.

"A ciência normal" - escreve o ensaísta -, "atividade na qual a maioria dos cientistas emprega inevitavelmente quase todo o seu tempo, é baseada no pressuposto de que a comunidade científica sabe como é o mundo. Grande parte do sucesso do empreendimento deriva da disposição da comunidade para defender esse pressuposto - com custos consideráveis se necessário".

Surgem, então, regras para se aprender e para se praticar tal ciência. Segui-las significa manter o(s) paradigma(s) que a sustenta(m) fortalecido(s). "A aquisição de um paradigma [...] é um sinal de maturidade no desenvolvimento de qualquer campo científico que se queira considerar". E como se adquire um paradigma? "Para ser aceita como paradigma, uma teoria deve parecer melhor que suas competidoras mas não precisa (e de fato isso nunca acontece) explicar todos os fatos com os quais pode ser confrontada".

Assumido o paradigma, os cientistas prosseguem com seu trabalho, que consiste, basicamente, em reforçar e incrementar o próprio paradigma. Peço agora a atenção mais detida do(a) eventual leitor(a) para o excerto a seguir. É extenso, mas julgo que valerá a pena, principalmente porque me ajudará a explicar a "culpa" pelo uso indiscriminado do termo paradigma aludida acima.

Segundo Thomas Kuhn,

"Poucos dos que não trabalham realmente com uma ciência amadurecida dão-se conta de quanto trabalho de acabamento [...] resta por fazer depois do estabelecimento do paradigma ou de quão fascinante é a execução desse trabalho [...]. A maioria dos cientistas, durante toda a sua carreira, ocupa-se com operações de acabamento. Elas constituem o que chamo de ciência normal. Examinado de perto, seja historicamente, seja no laboratório contemporâneo, esse empreendimento parece ser uma tentativa de forçar a natureza a encaixar-se dentro dos limites preestabelecidos e relativamente inflexíveis fornecidos pelo paradigma. A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômeno; na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma frequentemente não são vistos. Os cientistas também não estão constantemente procurando inventar novas teorias; frequentemente mostram-se intolerantes com aquelas inventadas por outros. Em vez disso, a pesquisa científica normal está dirigida para a articulação daqueles fenômenos e teorias já fornecidos pelo paradigma".

O ensaísta não menciona a ciência a-normal (incluirei-a aqui apenas como provocação); porém, ele trata, no decorrer do livro, do período extraordinário - no sentido de não previsto, fora da normalidade - no qual uma ciência amadurecida vivencia uma crise (em cujo interior pode ocorrer uma revolução, que leva à mudança de paradigma). Quero, entretanto, insistir na minha provocação e pensar um pouco sobre o que seria uma ciência a-normal.

No excerto incluído logo acima, Kuhn defende que, na ciência normal, o trabalho habitual e típico do cientista é o acabamento do paradigma: não há busca frenética por novas teorias. Por quê? Porque a prática da ciência normal predomina sobretudo em áreas científicas já amadurecidas (por exemplo, Física, Química e, em grande parte, a Biologia), com paradigmas mais confiáveis. Sou tentado a conjecturar: a ciência a-normal ocorreria então, com mais frequência, nas áreas científicas imaturas?

Antes de prosseguir, quero deixar claro que sou um sujeito das Humanidades (que expressão mais fora de moda!...) e afeito às soft sciences, OK? Sou - para minha vergonha e opróbrio - um quase analfabeto científico que pouco (ou quase nada) conhece das hard sciences. Nem por isso deixarei de lado a provocação (até mesmo como exercício de autocrítica).

As áreas científicas imaturas - e estou me referindo aqui às ciências sociais em sentido amplo (Sociologia, Psicologia, Economia, etc.) - são marcadas pela quase inexistência da assunção de crenças comuns. Disso decorrem concepções incompatíveis sobre os seres humanos como objeto de escrutínio científico (antropológica e psicologicamente falando), passando por visões distintas sobre a organização social e sobre os fenômenos culturais, metodologias tão variadas quanto a criatividade individual dos pesquisadores permitir, até chegar na abrangência colossal dos fenômenos passíveis de estudo pelos cientistas sociais. É difícil reconhecer paradigmas consensuais estabelecidos nas ciências imaturas e, portanto, pouca prática de ciência normal (basta observar a profusão de teorias conflitantes no interior da Sociologia, Economia, Psicologia, Linguística, etc.). Pode-se argumentar, entretanto, que isso não seria um defeito; afinal, quão complexos são a mente e o comportamento humanos, bem como as suas organizações socioeconômicas e suas manifestações culturais! E quão diferente dos objetos das ciências da natureza tudo isso é! Daí o fato de diversos manuais de introdução às ciências sociais insistirem em destacar a especificidade de seu objeto em relação ao das ciências naturais.

Tudo isso é verdade. O problema, porém, é que as soft sciences estão a todo momento querendo emular a cientificidade das hard sciences na sua busca por legitimação. Não seria o caso de tentar trilhar e estabelecer um outro modelo investigativo? É também o caso de perguntar se estamos verdadeiramente ganhando alguma coisa com essa situação, em matéria de um melhor nível de conhecimento sobre o social e o mental. É, contudo, uma discussão que vai além do objetivo desta postagem e da capacidade do blogueiro.

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Por que os cursos universitários das ciências humanas e disciplinas afins (como a Filosofia, a Comunicação Social e a Pedagogia, por exemplo) têm "culpa" pelo uso indiscriminado do temo paradigma?

Bem, eu diria que, mesmo sem dispor de paradigmas estabelecidos e reconhecíveis (de acordo com os conceitos de Thomas Kuhn, convém dizer), as ciências sociais/humanas adoram usar essa palavrinha (paradigma) para se referir a simples formulações conceituais ou escolas de pensamento em determinado campo de estudo. E como a palavra não sai da boca de milhares de professoras e professores universitários de Sociologia, Antropologia, Psicologia, Economia, Direito, Ciência Política, História, Jornalismo, Biblioteconomia, Geografia e por aí vai, seus ex-alunos e ex-alunas não param de repeti-la - em boa parte das vezes, com resultados ridículos ou simplesmente não significando nada, tentando apenas exibir um vocabulário mais apurado do que de fato possuem. 
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* PARADIGMA. In: HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 2127

** KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 10 ed. São Paulo: Perspectiva, 2011 [Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira]

*** É provável que o(a) eventual leitor(a) já tenha reparado que os jornalistas da área esportiva (sobretudo ligados ao futebol) são especialmente criativos (aqui estou sendo irônico) na hora de escrever e/ou falar sobre o assunto com o qual trabalham. E, não raro, submetem o leitor-ouvinte-telespectador a verdadeiros "enchimentos de linguiça" enfeitados.

BG de Hoje

Adorada pela crítica musical, a banda ALABAMA SHAKES ainda não me convenceu totalmente. Claro, são apenas dois discos lançados e sua trajetória está apenas começando. Ao comprar o primeiro CD (Boys & Girls), impressionado que fiquei com a poderosa canção Hold on, terminei um pouco decepcionado com o resultado - o grupo prometia mais. Acho que os outros integrantes precisam incorporar um pouco da pujança e do carisma da frontwoman Brittany Howard, sei lá. Ainda não consegui adquirir o segundo trabalho, Sound & Color, mas ouvi algumas faixas pela web, como o BG de hoje, Don't wanna fight. Estou gostando até agora.