terça-feira, 28 de setembro de 2021

Sobre a propalada "cultura do cancelamento"

[Postagem atualizada em 13/10/2021]


Penso que o chamado cancelamento às vezes mostra-se pouco razoável em virtude de excessos cometidos por uma parte dos(as) adeptos(as) da prática ¹.

Em alguns casos - friso, em alguns casos -, certas pessoas a serem canceladas não são suspeitas/acusadas de agressão, crime sexual ou crime contra a vida, não difamaram, não caluniaram, não insultaram, não mentiram, não ameaçaram outrem, não promoveram discurso de ódio. Essas pessoas também não exorbitaram no seu direito à liberdade de expressão. Em alguns casos, o que esses indivíduos fizeram foi apenas realizar um ato, dizer algo ou manifestar uma opinião que está fora de um regimento bastante específico e não compartilhado - mas seguido de forma estrita - pelo(a) zeloso(a) "cancelador(a)".

O resultado é que, em várias ocasiões, interdita-se o debate, mesmo entre indivíduos que compartilham visões de mundo bem próximas e que defendem compromissos éticos similares. Isso sem falar no opróbrio que pode atingir a pessoa cancelada, ainda que ela não tenha - repito - sido acusada/considerada suspeita de agressão, crime sexual ou contra a vida, difamado, caluniado, insultado, mentido, ameaçado outrem, promovido discurso de ódio ou exorbitado no seu direito à liberdade de expressão. NOTA: Isto posto, não estou alheio à velhacaria de determinados jornalistas, políticos, influenciadores digitais e até acadêmicos que, com desonestidade intelectual (e, não raro, má-fé), contaminam o debate público apenas para vencer a disputa ideológica.

Na contemporaneidade, é magnífico que vozes até então impedidas de falar e comunidades tornadas invisíveis por opressões diversas consigam ser ouvidas e reconhecidas no espaço público (e é preciso admitir o papel das mídias sociais nesse processo). É formidável também que o trabalho organizado de ativistas consiga, às vezes, fazer com que celebridades, políticos e até grandes empresas com enorme poder sejam mais responsáveis e conscientes em suas ações e declarações ². Entretanto, a disposição para o "cancelamento", uma das resultantes desse ativismo, pode estar fazendo com que a livre troca de informações e ideias se torne mais restrita, como afirmam os signatários daquela famosa (e duramente criticada) Carta sobre justiça e debate aberto , publicada em julho de 2020 (entre os que a assinam, destaco Noam Chomsky, Margaret Atwood e Salman Rushdie). "Embora esperemos isso da direita radical [a restrição da livre troca de informações e ideias], a censura também está se espalhando mais amplamente em nossa cultura: uma intolerância a pontos de vista opostos, um furor para a vergonha pública e ostracismo e a tendência de dissolver questões políticas complexas em uma certeza moral cegante", lê-se em determinado trecho.

Esse, aliás, é um dos aspectos que mais me deixa agastado às vezes com a propalada "cultura do cancelamento": o(a) "cancelador(a)" não duvida nem por um segundo da sua superioridade (pior, da sua infalibilidade) moral em relação a toda e qualquer pessoa que não se ajuste (nem que seja só um pouco) ao seu regimento.

Eu havia escrito e publicado um texto sobre esse tema no ano passado. Decidi excluí-lo, porém, porque não me agradou. Aí, no último domingo, dei de cara com esta excepcional crônica de Antonio Prata, publicada na Folha de S. Paulo. Tenho obrigação de reproduzi-la aqui, pois retrata bem um pouco do que penso sobre o assunto.

(Obrigado mais uma vez, Antonio Prata, um dos pouquíssimos motivos que me fizeram voltar a assinar o deplorável jornal da família Frias)


CANCELAMENTOS POSSÍVEIS
Tudo abaixo é ficção; menos, talvez, a última frase
Antonio Prata


J. foi o primeiro antropólogo a traduzir os fundamentais cânticos fúnebres da língua Baruna. Num debate entre J. e o pajé Wa’am’biipi, parte da comemoração pela demarcação das terras Baruna —vitória para a qual os trabalhos e o ativismo do antropólogo não podem ser desconsiderados—, alguém gritou da plateia: “usurpador!”. Tratava-se de M., membro da bancada ativista de São Joaquim D´Oeste. Segundo M., receber os louros pela tradução de uma obra indígena e comemorar a demarcação ao lado do pajé fazia de J. a versão intelectual dos Pizarros, dos Cortéses, dos Pedro Álvares Cabrais, um “neoextrativista dos bens culturais ameríndios”.

Em alguns meses, a campanha “antitradução”, corrente segundo a qual apenas um membro de sua própria etnia, aprendendo uma língua alheia, poderia verter para ela seu idioma, levou J. de herói a facínora. J. foi afastado da faculdade. Seus artigos encomendados por publicações acadêmicas foram cancelados.

Com o caso J., M. acabou ficando bombadinho nas redes e foi filmado numa praça batendo boca com a namorada. Surgiu então uma campanha barulhenta exigindo a expulsão de M. da bancada ativista de São Joaquim D´Oeste, pois tratava-se de um “machistx em pelx dx cordeirx”. “Trata as mulheres com a mesma opressão colonialista que finge combater! Lixo humano!”.

M. e a namorada, com quem tinha feito as pazes na mesma tarde, na mesma praça, acharam que seria uma boa estratégia divulgar a foto dos dois num sex-shop, segurando uma cinta peniana, com a qual, revelariam, ela costumava penetrá-lo. Provariam, assim, o quanto M. estava, “através da desdomesticação heteronormativa colo-colonial”, engajado “na subversão dos afetos patriarcais”.

O brinquedo erótico, porém, tinha tiras de couro e suscitou a ira de ativistas veganos, que lançaram nas redes montagens de imagens do casal sobrepostas a de bois ensanguentados em matadouros, trespassados por enormes cintas penianas. Uma semana depois, toda a bancada ativista de São Joaquim D´oeste renunciou ao mandato — dando mais espaço, aliás, para a vereança ruralista, dona dos abatedouros.

Nas redes, os ruralistas chamaram M. de homossexual. M. disse que, se fosse, seria feliz, pois na Grécia clássica e em Roma, por exemplo, relações sexuais entre homens não eram nenhuma vergonha, eram motivo de orgulho.

M. certamente não estava à par das últimas polêmicas sobre o período clássico. Como era comum, àquela época, homens feitos terem relações sexuais com mancebos, Sócrates, Platão, Aristóteles, Ésquilo, Sófocles, Aristófanes e companhia não passavam de pedófilos, abusando de menores “no gozo perverso do privilégio gerontocrático”. Gregos e latinos foram cancelados.

Há quem diga que as únicas obras dignas de mérito em toda a história do pensamento são os livros da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. Uma tendência mais recente, contudo, contesta Chimamanda ferozmente, por ter se mudado para os Estados Unidos e escrever em inglês, não em uma das 510 línguas atualmente faladas no país africano. “Feminista e antirracista sendo filha de professor universitário e ganhando em dólar, é fácil”, escreveu um membro do movimento #fuckfakeafrican —em seu iPhone, nos Jardins. “Mas e as mulheres que ficaram na Nigéria? As que não têm o auxílio imperialista de uma Chimamanda? O palanque etnocêntrico de um J.? O privilégio machista e especista de um M.? Todo o lobby branco dos gregos e latinos? Quem as lê? Quem as enxerga, sequer?”.

A. escrevia na Folha de S. Paulo, até que.

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¹ Sendo realista, contudo, não acredito que haja um número expressivo de indivíduos engajados, metódica e sistematicamente, no tal cancelamento, como se se tratasse de ações orquestradas (não me surpreenderia, porém, se isso acontecesse eventualmente). Em resumo: vejo a "ação de cancelar" mais como uma disposição do que como um procedimento calculado.

² Essa passagem me faz recordar uma postagem que publiquei aqui no Besta Quadrada em 2016, defendendo o chamado politicamente correto: Não se pode esquecer que somos seres de linguagem: discutindo o politicamente correto.

BG de Hoje

"What do they want from me?/They never told me the failure I was meant to be"
Sem mais a acrescentar.
SLIPKNOT, People = Shit