sexta-feira, 5 de junho de 2009

O que desconhecemos (1)

 "Não acredito na discussão dos meus problemas, não acredito mais em troca de pontos de vista, estou convencido, pai, de que uma planta nunca enxerga a outra".

Do personagem-narrador André, em Lavoura arcaica - Raduan Nassar

 
 
Arrisco-me a dizer que os dois principais escritos de Raduan Nassar - Lavoura arcaica e Um copo de cólera - remetem às mesmas preocupações: a fragilidade e a precariedade do pensamento racional como (supostamente melhor) forma para compreender os seres humanos. E com este intento, Nassar busca expor, sobretudo, os limites das palavras, incapazes, muitas vezes, de exprimir o que somos ou o que acreditamos ser.


É bastante curioso que um escritor - justamente um escritor - fale da insuficiência da linguagem. Mas é por isso que se trata de um autor excepcional, principalmente em Lavoura arcaica*, romance único, transformador, da Literatura brasileira.

Da primeira vez que o li, enxergava a narrativa como uma amarga e, ao mesmo tempo, lírica perquirição sobre a instituição familiar, no que ela guarda de menos sublime, mergulhando as mãos em seus cestos de roupa suja, como nos conta o narrador:

"[...] ninguém sentiu mais as manchas da solidão, muitas delas abortadas com a graxa da imaginação, era preciso surpreender nosso ossuário quando a casa ressonava, deixar a cama, incursionar através dos corredores, ouvir em todas as portas as pulsações, os gemidos e a volúpia mole dos nossos projetos de homicídio, ninguém ouviu melhor cada um em casa [...]"


Mesmo entre pais, mães e filhos, irmãos e irmãs, existe opacidade de um indivíduo para outro, a despeito da convivência forçada. Há camadas, véus que encobrem nossas pulsões, nossos instintos, sentimentos primários que só podem ser dissimulados com esforço repressivo (e quem sabe, necessário?).

São vários e diversos os níveis de leitura proporcionados pelo livro de Nassar. Hoje quando volto a Lavoura Arcaica, interessa-me sua cruel - não obstante precisa - constatação de que estamos fadados a cada vez mais nos estranharmos, ainda que tentemos nos valer das palavras para impedirmos nosso desconhecimento mútuo. No capítulo 25, antológico, que reproduz o diálogo entre pai e filho, após a volta deste último, lê-se este trecho, de beleza inaudita:

"Já disse que não acredito na discussão dos meus problemas, estou convencido também de que é muito perigoso quebrar a intimidade, a larva só me parece sábia enquanto se guarda no seu núcleo e não descubro de onde tira a sua força quando rompe a resistência do casulo; contorce-se com certeza, passa por metamorfoses, e tanto esforço só para expor ao mundo a sua fragilidade".


Uns para outros, somos completos desconhecidos. E, a dizer a verdade, existe algum modo de que deixemos de sê-lo um dia?

Na próxima postagem falo sobre Um copo de cólera.
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* NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989