Quando escrevi, recentemente, sobre Lavoura arcaica, observei que se tratava de um texto no qual se tenta apontar a fragilidade e a precariedade do pensamento racional como (supostamente melhor) forma para compreender os seres humanos, do mesmo modo como ocorre em Um copo de cólera*. E a fúria que explode no diálogo dos dois amantes reforça a convicção de que as trocas de palavras desempenham um papel pífio nos modos como as pessoas procuram (inutilmente, a meu ver) conhecer-se. É o que nos joga na cara um dos narradores: "[...] e já que tudo depende do contexto, que culpa tinham as palavras? existiam, isto sim, eram soluções imprestáveis".
Antes de prosseguir, porém, com nossa linha de observação, é preciso deixar claro que é na minuciosa forma adotada por Nassar, para nos transmitir os pequenos raciocínios e reações dos dois contendedores durante sua colérica discussão, que reside o maior valor da novela. Afinal, trata-se de Literatura. Contudo, voltemos ao nosso ponto.
Há um trecho do livro demonstrando uma certa crença que tem sido também a minha, de uns anos para cá, e que se intensificou muito nos últimos meses. Leiamos o que escreveu Nassar:
"[...] ao mesmo tempo em que acreditava piamente que as palavras - impregnadas de valores - cada uma trazia, sim, no seu bojo, um pecado original (assim como atrás de cada gesto sempre se escondia uma paixão), me ocorrendo que nem a banheira do Pacífico teria água bastante pra lavar (e serenar) o vocabulário [...]"
Geralmente, interagimos com outros indivíduos, na maioria das vezes, através de trocas de palavras. Nem sempre - quase nunca, melhor dizendo - podemos atingir uma conciliação minimamente satisfatória, ainda que haja sexo (e do bom) no meio, como ocorre em Um copo de cólera. O que quero dizer simplesmente é o seguinte: os outros não são confiáveis porque nós mesmos não o somos; só temos as palavras, e estas possuem um valor de face duvidoso. Somos "todos portadores das mais escrotas contradições", como se lê na novela de Raduan Nassar. E, no entanto, não se tem outra maneira de convivermos, mesmo que nos desconheçamos totalmente, apesar de não admitirmos isso. E pensar a respeito adianta bem pouco, já que "a reflexão não passava da excreção tolamente enobrecida do drama da existência", completa o narrador.
Na próxima postagem, prossigo com esse assunto, falando de Nabokov e Umberto Eco.
______________* NASSAR, Raduan. Um copo de cólera. 5 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992