Primeiramente, leiamos este excerto (longo, peço boa vontade), extraído de Lolita*, a obra mais famosa de Vladimir Nabokov:
"Observo, com frequência, que tendemos a atribuir a nossos amigos aquela estabilidade de caráter que as personagens literárias adquirem na mente do leitor. Não importa quantas vezes relemos o Rei Lear, jamais encontraremos o bom monarca levantando seu canecão de cerveja, todas as desventuras esquecidas, num festim palaciano a que estão presentes as três filhas e seus cãezinhos de estimação. Jamais veremos Emma se curar, reavivada pelos sais contidos na lágrima oportunamente vertida pelo pai de Flaubert. Qualquer que seja a evolução desta ou daquela personagem entre as capas do livro, seu destino está cristalizado em nossas mentes, e, da mesma forma, esperamos que nossos amigos sigam esta ou aquela trajetória lógica e convencional que traçamos para eles. Assim, X jamais comporá a música imortal que conflitaria com as sinfonias de segunda classe a que nos habituou. Y jamais cometerá assassinato. Aconteça o que acontecer, Z nunca nos trairá. Temos tudo arranjado em nossas mentes e, quanto mais raramente vemos determinada pessoa, maior é o nosso prazer ao verificar, quando ouvimos falar dela, como se vem adaptando obedientememte ao padrão de comportamento que lhe impusemos. Qualquer desvio nos destinos que decretamos nos ofenderia como algo não apenas anômalo, mas imoral. Preferiríamos nem ter conhecido nosso vizinho, o vendedor aposentado de cachorros quentes, caso venhamos a saber que ele acaba de publicar o melhor livro de poesias dos últimos tempos".
Você ainda está comigo? Fico contente. Então vamos lá.
Nabokov, acredito, fez acima um dos maiores elogios à ficção já escritos - de forma cruelmente irônica, convenhamos. O que nos diz ele? Diz que a ficção é confiável (lembre-se do que foi discutido na postagem anterior). Podemos nos valer de seu próprio romance para exemplificarmos.
Por mais vezes que leiamos Lolita não alteraremos o fato de que Humbert Humbert está preso e será julgado. Qualquer que seja o sentimento que a personagem nos provoque, não conseguiremos mudar esse fato.
Umberto Eco, em livro indispensável**, nos lembra que toda ficção guarda vínculos - mais firmes aqui, menos evidentes acolá - com a chamada realidade. O autor italiano afirma que "os mundos ficcionais são parasitas do mundo real". Ainda assim, ele não deixa de enaltecer a Literatura.
Sempre reconheci na ficção uma superioridade (para mim, incontestável) em relação ao mundo real. Tenho poucos amigos; para além da esfera do trabalho, sigo uma vida social insignificante. No geral, as pessoas são bastante ordinárias; eu, mais que todos. Por outro lado - e isso é paradoxal - a existência que se leva hoje em dia é cada vez mais complexa, intensa, e os indivíduos (a não ser que estejam no topo da pirâmide econômica) controlam bem pouco o que ocorre ao redor de seus "mundinhos", todos imersos num universo de constante e angustiante incerteza. Por isso, sinto-me bem ao ler estas palavras de Eco:
"À parte as muitas e importantes razões estéticas, acho que lemos romances porque nos dão a confortável sensação de viver em mundos nos quais a noção de verdade é indiscutível, enquanto o mundo real parece um lugar traiçoeiro".
Posição ingênua e alienada de minha parte? É possível. Alguém me oferece coisa melhor? Prefiro "os parasitas do mundo real".
* NABOKOV, Vladimir. Lolita. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003 (tradução de Jorio Dauster)
** ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994 (tradução de Hildegard Feist)