quarta-feira, 18 de julho de 2018

É possível abstrair-se da política?: Lendo As meninas, de Lygia Fagundes Telles


Não saberia dizer se As meninas - passados 45 anos de seu lançamento - é um livro ao qual os leitores têm retornado (pois talvez seja considerado uma obra datada). Mas acho que deveriam.

É um escrito ambicioso, muito embora não se divise a sua ambição à primeira vista. Tratemos, pois, de evidenciá-la.

Lygia Fagundes Telles lançou mão de um formato narrativo não empregado em nenhum de seus dois romances até então publicados (Ciranda de Pedra e Verão no aquário), nem em nenhum de seus contos (até onde sei). A adoção do discurso indireto livre e a utilização do fluxo de consciência não eram novidades em sua prosa; entretanto, a escritora procurou ser, digamos, um pouco mais experimental do que vinha sendo. Isso pode ser verificado com facilidade nas passagens em que a voz narradora cabe a Ana Clara. Observemos o seguinte excerto ¹ , tirado do oitavo capítulo:

"Viro na boca a garrafa e meus poros se abrem e meu peito se abre. Vidão. Não fosse esse negro aí berrando não gosto mesmo de negro. Nem de branco. Não gosto de ninguém. Todos uns bons sacanas que não perdem a chance de mijar na cabeça da gente. Agora quem vai mijar sou eu! grito e fico rindo de feliz. Max eu te amo eu te amo eu te amo. Beijo seu sapato que está em cima do meu biquíni. O sapato. Amo o sapato dele amo tudo mas tenho que ir tenho que ir. Quando me desbloquear a gente vai rolar de gozo. Beijo meu Agnus Dei que prendi no biquíni amo meu Agnus Dei amo Madre Alix minha santa não fique triste que em janeiro minha santa santa. E minhas roupas pomba? Sumiu tudo. Queria ser invisível e sair como o cara dos quadrinhos como era o nome dele. Ele sai e entra e ninguém vê".

No esquema de As meninas, o tema do amor (e da expectativa em torno do sexo) é explorado, sobretudo, em Lorena; Lia retrata, na maior parte das vezes, a militância ideológica e a oposição à ditadura; Ana Clara, por sua vez, sintetiza, principalmente, o tópico do abuso e da dependência no consumo de drogas. Não é de se surpreender, portanto, que as passagens narradas por Ana Clara sejam aquelas com maior incidência de dizeres fragmentários, com rupturas bruscas no encadeamento das sentenças e das frases (efeitos perceptíveis graças a ausência de determinados sinais de pontuação) ². Atenção para este outro excerto, de um capítulo bem anterior:

"Meu joelho está molhado. Uísque? Uísque é evidente. Como pode ser baba? Teria que ser um crocodilo. Abro os braços de alegria ah aquela estrada. Falar. É preciso falar tudo é ir falando o tempo todo deixar correr a confissão como vai correndo o mijo. Quero mijar vou de rastros até o banheiro agora sou vegetal se alastrando. Trono alto tenho que fazer na banheira levantar a perna como o Lulu. Vou ter daqueles cachorros bacanérrimos com pintinhas pretas e olho azul como é o nome? Aquele. Mas também quero um vagabundo com a cara do Lulu. A única coisa decente que tive a única que me amou vem Lulu eu chamava".

Vamos nos deter um pouco no trecho "É preciso falar tudo e ir falando o tempo todo deixar correr a confissão como vai correndo o mijo". Das três personagens centrais, Ana Clara é a única a se submeter a sessões de psicanálise, custeadas por Madre Alix, a freira que dirige o pensionato N.S.F. (Nossa Senhora de Fátima, talvez?) onde elas moram. É propício fazer notar que foi nos anos 1960-70 que o Brasil experimentou o boom das terapias dessa natureza entre as parcelas mais privilegiadas da sociedade. Ao longo de As meninas, encontrar-se-ão várias outras referências à psicanálise, bem como a seus praticantes (destaco, a esse respeito, o capítulo 10, quando Lia, involuntariamente, fica na posição de "analista" da mãe de Lorena). Isso demonstra uma certa preocupação de Telles em contextualizar o período histórico no qual o romance está inserido - ainda que de um ponto de vista de classe restrito. Outro exemplo simples, mas ilustrativo: o gato de estimação de Lorena chamava-se Astronauta, óbvia alusão às então recentes missões espaciais da NASA. As menções a determinados músicos (Jimi Hendrix, Caetano Veloso, Gilberto Gil) e até a determinadas marcas de automóvel fazem parte do mesmo expediente de contextualização. Nesse sentido, deve-se também destacar a questão da linguagem, intimamente relacionada com a questão do foco narrativo discutida acima. Numa entrevista a Edla van Steen ³, Telles declarou:
"Em As meninas quis dar às minhas personagens toda a liberdade. À medida que elas iam vivendo, o enredo ia se modificando, soltei as rédeas, confesso que em determinado momento não conduzi mais, fui conduzida: sim, houve muito de imprevisível, deixei as meninas na sua exaltação para me concentrar na linguagem. A pesquisa era na direção da linguagem. Da revolução dessa linguagem. Alguns críticos sentiram minha ânsia de renovar, e foi essa a recompensa para tanto trabalho e aflição: reescrevi o livro três vezes, tomada pelo demônio da insatisfação".
A autora incluiu gírias e coloquialismos da época, sem receio - afinal, tínhamos que ter acesso (da forma mais vívida possível) à corrente de pensamentos (intensos e passionais, muitas vezes) de três jovens universitárias, bem diferentes entre si, vivendo na maior cidade brasileira, entre os anos 1960-70 e em meio a um golpe militar. Sabemos, contudo, que são os registros idiomáticos os principais "culpados" pela "datação" de um texto literário. O risco, porém, valeu a pena.

Entretanto, creio que As meninas notabiliza-se, principalmente, por seu dimensionamento político. E aqui cabe uma reflexão.

Noutra entrevista, concedida ao programa Roda Viva em outubro de 1996 (disponível aqui), Lygia Fagundes Telles diz a certa altura: "O bom escritor, sem arrogância eu digo isso, está naturalmente
engajado na política [...] Nós nos comprometemos, nós somos escritores comprometidos com a política". Pessoalmente, não consigo (com poucas exceções) ter grande disposição de leitura quando percebo que determinado texto literário adota um tom supostamente isento, evitando comprometer-se com os problemas de seu tempo ou ignorando fenômenos sociais - e isso vale também para gêneros erroneamente considerados imunes à política, como a ficção científica e a fantasia. Por isso, concordo com a autora. Para muitos(as) bons(boas) escritores(as), não dá pra esquecer a política, abstrair-se dela e simplesmente escrever uma história neutra. Significaria uma falta de compromisso consigo mesmos(as). NOTA: Até textos mergulhados no subjetivismo ou com arrojados projetos estetizantes, não raro, presumem o cenário sociopolítico. É possível que as duas atitudes representem inclusive reações a esse cenário.

Quanto a Telles, o que podemos dizer?

Obviamente, falando de As meninas, a ditadura é o dado histórico que salta aos olhos. Enquanto a rica Lorena fica em sua "concha" (segundo suas próprias palavras) e Ana Clara, de infância miserável e embrutecida, busca refúgio no torpor das drogas e no sonho delirante do casamento milionário, Lia integra uma das muitas células de resistência ao regime. E embora a personagem por vezes seja mais uma caricatura dos jovens de esquerda na segunda metade do século XX do que qualquer outra coisa, é através dela que a contestação à ditadura pode ganhar corpo dentro do livro (não custa lembrar que As meninas foi publicado em 1973, com os militares ainda no poder e a censura em plena vigência). E muito embora Lia não aja ("[...]ah, tão longe a fala do ato. Se eu não falasse tanto em fazer amor, se Ana Clara não falasse tanto em enriquecer, se Lião não falasse noite e dia em revolução", pensa Lorena em dada passagem), é numa conversa entre ela e Madre Alix, por exemplo, que a autora aproveita para escrever um depoimento no qual a prática da tortura é descrita com toda a sua crueldade e torpeza (capítulo 6).

Mas a palavra política, sabemos, tem um significado mais amplo, ligado às relações humanas em geral. E nesse ponto o romance de Lygia Fagundes Telles é valioso, ao promover a abordagem de questões fundamentais para aquele período (a liberação sexual, por exemplo) e algumas primordiais até hoje (a desigualdade).

Antes de encerrar, gostaria de reproduzir um trecho do terceiro capítulo. A voz narradora é de Lorena:

"Nasci num tempo de violência. Orfeu chegou a comover as feras com sua lira e eu não consegui comover nem o Astronauta. Enfim, um gato é um gato mas como gostaria de mandar minha palavra de equilíbrio, de amor ao mundo mas sem entrar nele, é lógico [...] Bom é ficar olhando a sala iluminada de um apartamento lá adiante, as pessoas tão inofensivas na rotina. Comem e não vejo o que comem. Falam e não ouço o que dizem, harmonia total sem barulho e sem braveza. Um pouco que alguém se aproxime e já sente odores. Vozes. Um pouco mais e já nem é espectador, vira testemunha. Se abre o bico para dizer boa-noite passa de testemunha para participante. E não adianta fazer aquela cara de nuvem se diluindo ao largo porque nessa altura já puxaram a nuvem para dentro e a janela-guilhotina fechou rápida. Eram laços frouxos? Viraram tentáculos. Ah, que alegria quando fico aqui sozinha. Sozinha".

Será que "entrar no mundo" nunca será algo desejável de se fazer? Preferiremos (falo por mim e a personagem) ficar sempre numa distância supostamente segura, recusando-nos a ser testemunhas (que dirá participantes)? E, portanto, a satisfação só se dá no isolamento?

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¹ TELLES, Lygia Fagundes. As meninas. 16 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 1985

² Outro exemplo da nova técnica narrativa empregada pela escritora no romance está nesta passagem (a voz agora é de Lia):
" ' Se você acredita no homem você acredita em Deus', disse Madre Alix. Não sei explicar mas o que quero dizer é que acreditar nessas histórias absurdas que os homem contam. Quanto mais simples e inocentes forem mais me envolvem com suas façanhas de heróis e santos, vem, mãe, vem me encher de superstições que não entram na minha rotina mas também não esqueço, vem de noite me coçar as costas e depois abrir meu cabelo, a Ivanilda, aquela porcalhona passou piolho pra classe inteira. O avental cor de café-com-leite tinha um sabiá no bolso".  
³ TELLES, Lygia Fagundes. Entrevista concedida a Edla van Steen e publicada em VAN STEEN, Edla. Viver e escrever: volume 3. 2 ed. Porto Alegre: L&PM, 2008. p. 146-160

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O Colonized?, meu outro blog, escrito em inglês, também voltou a ser atualizado. Não dei a devida atenção a ele no ano passado, mas tentarei remediar as coisas agora. Como já disse noutra oportunidade, os textos de lá não são nada parecidos com os daqui, pois meu objetivo é apenas me exercitar num idioma que não é o meu. Caso esteja interessado(a), eventual leitor(a), o endereço é https://lousantino.blogspot.com . 
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BG de Hoje

Eu ia incluir essa canção como BG numa postagem sobre Verão no aquário, um outro romance de L. F. Telles. Mas acabei desistindo daquele texto (decidi, pelo menos por um tempo, trazer aqui para o blog apenas os livros de que gosto. E como não sou um grande fã de Verão no aquário...). De todo modo, Princesa (Torta de maçã), do SCATOLOVE, precisava aparecer por aqui, de um jeito ou de outro, simplesmente porque adoro essa canção. Então, lá vai.