"Na verdade, nos enganamos redondamente quando queremos distinguir-nos do gênero humano, recusando-nos a nos adaptar aos tempos. [...] O contrário seria pretender que a comédia deixe de ser comédia. Além disso, se a natureza vos fez homens, a verdadeira prudência exige que não vos eleveis acima da condição humana. Em poucas palavras, de duas uma: ou dissimular intencionalmente com os seus semelhantes, ou correr ingenuamente o risco de se enganar com eles. E não será esta - indagam os sábios - outra espécie de loucura? - Quem o nega? Que me concedam, porém, que é essa a única maneira de cada qual fazer a sua pessoa aparecer na comédia do mundo".
Erasmo de Rotterdam - Elogio da Loucura
A burrice sempre triunfa.
Ao longo da história sempre houve mais (muito mais) pessoas burras do que pessoas inteligentes. Melhor dizendo: sempre houve mais (muito mais) indivíduos confortavelmente (e, às vezes, alegremente) adaptados à sua ignorância do que indivíduos dispostos a mitigar (dentro das condições possíveis) seu desconhecimento sobre as coisas e os fenômenos à nossa volta. A burrice, precisamos admitir, é mais disseminada entre a população do que a inteligência.
Basta olhar ao seu redor.
Quando me preparava para escrever este texto lembrei-me de uma passagem de Crime e castigo. Estamos no capítulo IV, sexta (e última) parte do romance. Raskólnikov, já sem forças para não se deixar apanhar, decide revelar à pobre Sônia o seu segredo. Mais uma vez o protagonista retoma a sua tese do "homem extraordinário", cujos atos só devem ser julgados tendo em vista aquilo que ele realizou ou as forças que mobilizou e arregimentou, sendo irrelevantes os meios empregados para isso (o exemplo paradigmático de sua tese é Napoleão Bonaparte). O estudante então começa a recordar a época em que passava horas e horas trancafiado na sua apertada e mísera habitação em São Petersburgo ¹:
Claro que qualquer um poderia simplesmente desprezar todo esse papo de Raskólnikov por se tratar de alguém (um ser ficcional, sei disso, OK?) que não está nada bem, psicologicamente falando, além de ter cometido dois assassinatos (convém dizer que, fiel à sua queda pelo melodrama - não obstante sua genialidade -, Dostoiévski garantirá uma humilde redenção ao seu personagem). Ainda, porém, que a tese do "homem extraordinário" de Raskólnikov seja inaceitável, sob um ponto de vista moral/ético, o excerto acima permanece válido para mim e interessa-nos sobretudo pelo seguinte trecho:
Alguma escapatória possível?
Dias atrás li a seguinte observação do filósofo italiano Nuccio Ordine numa matéria sobre o seu livro A utilidade do inútil:
Apesar de achar a palavra barbárie meio fora de lugar nessa declaração, concordo com Ordine em relação ao papel, teimoso e digno, que a literatura, a arte, a filosofia e a ciência pura podem ainda desempenhar num mundo excessivamente pragmático e hostil à imaginação. A questão que se coloca, entretanto, é: sendo a burrice (estreitamente relacionada, aliás, com os "egoísmos do presente" mencionados acima) a regra geral, como convencer outros de que o esforço voltado para esses conhecimentos, mesmo o pouco que se puder aprender, vale a pena?
E não se trata apenas disso. Esses conhecimentos "imunes a qualquer expectativa de benefício" levam, quase sempre, a uma visão menos ingênua e mais crítica da existência. Não são uma promessa de bem-aventurança, muito pelo contrário. Promovem um necessário desconforto em relação às noções - e pretensões - arrumadinhas de como viver. E pessoas burras não querem experimentar um tal abalo do pensamento. A ignorância, como vimos, é quase uma consolação. Pode até produzir a ilusão de felicidade. "Ignorance is bliss": não é o que diz o ditado?
"Quem no mundo viverá mais feliz do que os vulgarmente chamados bobos, tolos, insensatos e imbecis?": é uma das perguntas feitas na obra-prima de Erasmo de Rotterdam, Elogio da Loucura ², um de meus livros prediletos. Pouco antes, no parágrafo anterior a essa passagem, a "autopanegirista" (ou seja, a própria Loucura) já havia dito: "[...] infiro que os verdadeiros felizardos são os que mais se aproximam da índole e da estupidez dos brutos". Tenhamos em mente, contudo, que ainda não se trata aqui propriamente daqueles a quem estou chamando burros - indivíduos que, deliberadamente, permanecem imersos na sua ignorância. Os "bobos, tolos, insensatos e imbecis", nesse caso, correspondem àqueles a quem avaliaríamos hoje como pessoas com algum tipo de deficiência mental/intelectual (o Elogio da Loucura foi escrito em 1509 e publicado em 1511: outro zeitgeist, outra sensibilidade, outro vocabulário, distintos da atualidade - lembremos disso, por mais óbvio que seja, antes de dirigir increpações ao autor).
Todavia, o livro de Erasmo tem muito a dizer sobre os burros. E com o perdão do(a) eventual leitor(a), precisarei ser um pouco pedante.
Elogio da loucura, como a quase totalidade das obras elaboradas por eruditos naquela época, foi escrito em latim. Seu título original é Encomium, id est, Stultitiae Laus (em tradução literal, Louvor, isto é, Elogio da Loucura). A palavra stultitia deu origem, no português, às palavras estultícia e estultice, cujos sinônimos atuais costumam ser "tolice", "insensatez", "imbecilidade" e também "necedade", "inaptidão" e "estupidez". Portanto, estultice (que, antigamente, tinha a acepção de "loucura") e burrice são hoje termos equivalentes.
Há pouco eu escrevi que as pessoas burras são indivíduos deliberadamente ignorantes. "A ignorância" - lê-se no texto de Erasmo - "tem, pois, dois grandes privilégios: um que consiste em estar de perfeito acordo com o amor-próprio, e outro, que consiste em trazer em si a maior parte do gênero humano". Ou seja, o burro costuma ter a si mesmo em alta conta e nunca se sente sozinho, pois a maior parte da população é igualmente burra.
Escrevi também que a burrice é reconfortante. Erasmo - ou melhor, a Loucura - afirma que existe um "furor" dentro dos seres humanos compelindo-nos a "uma certa alienação de espírito que afasta do nosso ânimo qualquer preocupação incômoda, infundindo-lhe os mais suaves deleites. É justamente essa divagação que, como um insigne dom dos supremos deuses, deseja Cícero para si quando diz a Ático que não pode mais suportar o peso de tantos males". E arremata logo adiante:
Verdades perturbadoras impedem a felicidade alienada daquele que optou pela burrice. E numa espécie de mecanismo defensivo, quanto mais essas verdades perturbadoras irrompem, mais os indivíduos parecem entrincheirar-se na ignorância deliberada.
Como se sabe, Erasmo valeu-se de seu escrito satírico para criticar determinadas práticas e instituições de seu tempo. Sem, infelizmente, qualquer traço do talento e da ironia do pensador holandês, pretendo fazer o mesmo e, nesse caso, miro a pretensa sociabilidade da internet, especialmente nas mídias sociais.
Reafirmar um chavão neste momento acaba sendo inevitável. Vamos a ele.
Em si, a web é só uma ferramenta. Revolucionária, sem dúvida, tão importante quanto e mais poderosa até do que a difusão do texto impresso iniciada séculos atrás, além de ser tentacular de uma maneira tal nem sequer imaginada pelos meios de comunicação de massa surgidos no final do último milênio. Mas ainda assim, apenas uma ferramenta. O uso (humano, demasiado humano) desse instrumento fabuloso, contudo, é suscetível a juízos valorativos.
Provavelmente seja bastante precoce emitir julgamentos sobre o proveito (falo apenas das pessoas comuns) que tiramos da rede mundial de computadores atualmente (afinal, para usar uma expressão de Carlos Heitor Cony, vivemos na "era da internet lascada": difícil saber o que o futuro ainda nos reserva nesse campo, caso, claro, o planeta não se acabe numa catástrofe ambiental ou numa guerra nuclear). Arriscarei-me, contudo.
Em grande parte do tempo, tenho notado, as pessoas lançam mão da internet como uma espécie de "brinquedão", sejam elas crianças, adolescentes ou adultos. Explico. O uso é majoritariamente para diversão ou entretenimento (isso sem falar na propensão de muitos para bisbilhotar a vida alheia). Não me entenda mal, eventual leitor(a). Muitas vezes também estou apenas atrás de distração na web. Meu ponto, contudo, é: uma ferramenta tão transformadora como essa só está nos servindo para nos enternecermos com gifs de gatinhos e afundarmos a cara nos vídeo games? E, saindo dos passatempos inofensivos: a web conseguirá manter-se um ambiente saudável, sendo tão utilizada, como é nos dias de hoje, para o bullying virtual, a propagação do ódio e a instilação do obscurantismo e da intimidação? Aquelas projeções otimistas dos anos 1990 (penso, por exemplo, em livros como A vida digital, de Nicholas Negroponte, ou Cibercultura, de Pierre Lévy), que imaginavam tempos favoráveis ao desenvolvimento da compreensão, da inteligência e da educação colaborativa por meio da web, talvez precisem ser revistas. Para não me perder em generalizações e avaliações simplistas, entretanto, deixarei essa questão de lado para voltar ao Elogio da Loucura.
Muitos são os alvos de Erasmo nesse livro. Os advogados, os comerciantes, os soldados e guerreiros, os religiosos e teólogos... E também os filósofos. Peço a atenção do(a) eventual leitor(a) para esta passagem:
Ao indicar como podem ser ridículos os sábios/filósofos ou como seriam estes inábeis para "essas coisas que diariamente sucedem a cada um", Erasmo tem duas intenções, a meu ver. A primeira é transmitir um recado: nossas tentativas para sermos menos ignorantes, nossas buscas por maior sabedoria, não precisam ser, necessariamente, empreitadas sem prazer, feitas de modo enfezado ou desgostoso. Um pouco de bom humor não faz mal a ninguém. Além disso, essas tentativas e buscas não deveriam ser desculpas para descuidarmos dessas "coisas que diariamente sucedem a cada um", sob pena de ingressarmos numa outra forma de alienação, pretensamente mais "sublime". A segunda intenção - não imediatamente perceptível no excerto acima, mas expressa noutras partes do Elogio da Loucura - é reivindicar, apesar da derrisão aparente do texto, a importância dos sábios/filósofos (afinal, o autor tenciona estar entre eles), esses indivíduos que se colocam costumeiramente "em oposição às opiniões e aos costumes da universalidade dos cidadãos".
Como escrevi antes, a burrice é reconfortante, entre outros motivos, porque ela é partilhada pela maioria. Faça um rápido exercício, eventual leitor(a). Olhe com atenção para os(as) "amigos(as)" perfilados(as) na sua conta do Facebook. Quantos(as) destes(as) você considera inteligentes? Eu sei, eu sei, é muita soberba achar que se tem condição para fazer uma avaliação dessas, além de ser descortês e meio malvado. Não esquecendo também que temos a tendência - irresistível - de considerar inteligentes somente aqueles(as) cujas ideias e opiniões vão ao encontro das nossas. Ainda assim, mantenho a proposta. Ceda à tentação, eventual leitor(a). Este blogueiro já fez o exercício. O resultado? Bem, vá acompanhando...
Numa das melhores passagens do Elogio da Loucura (cheguei inclusive a reproduzi-la no Twitter semana passada, na tradução inglesa), Erasmo escreveu:
Todos estamos carecas de saber que as mídias sociais (sobretudo Facebook e Instagram) servem para edulcorar a imagem de muita gente. Uma olhada mais atenta ou o simples contato face-a-face são suficientes para desmontar o embuste. Há também, claro, quem não seja tão falso. Mas isso não melhora o quadro geral, pelo menos do meu ponto de vista.
Recentemente, contrariei uma decisão tomada ano passado de não reatar contato no Facebook com gente que conheci noutras fases de minha vida: ex-colegas de escola, ex-colegas de trabalho, parentes, companheiros de esbórnia da juventude, etc. Entretanto, a quantidade de autoajuda barata, anti-intelectualismo, endosso a discursos de ódio e intolerância, proselitismo religioso, compartilhamento de notícias falsas e analfabetismo político encontrados na maioria dos perfis fizeram com que me arrependesse completamente de voltar a "rever" essas pessoas. Não estou disposto, pelos menos nesse caso, a "dissimular intencionalmente com [meus] semelhantes". Então voltei ao estágio anterior, desfazendo os contatos.
Narro essa situação pessoal porque ela ajuda a concluir o texto desta postagem. No trecho mais famoso do Elogio da Loucura, lê-se:
Ir contra a corrente - e a corrente, quase sempre, é um fluxo de ignorância deliberada - é tarefa ingrata, árdua. Inútil talvez, já que, como disse lá no início, a burrice sempre vence. Combatê-la é quase como que se retirar para o deserto, pois acabamos sendo isolados - ao mesmo tempo em que nos isolamos - da "torrente da multidão", formada pelas pessoas estúpidas. Eu me pergunto quantas dessas pessoas incrivelmente burras vivendo no planeta conseguiriam deixar de lado sua estultice, pelo menos por uns poucos momentos, para ler um livro como o Elogio da Loucura. Mas pensando bem, isso não serviria para nada. Porque dificilmente essas pessoas realizariam a autocrítica ali sugerida. Ah, e certamente um grande número desses indivíduos participa do Facebook, já que a corporação criada por Mark Zuckerberg chegou aos 2 bilhões de usuários. Assim sendo, é possível dizer que, caso fosse publicado hoje - e talvez, para aumentar a ironia, sob a forma de "textões" dentro dessa mídia social -. um livro como Elogio da Loucura não ganharia muitos likes, pois expõe "a comédia do mundo" da qual a maioria de nós não quer nem saber.
Na próxima postagem, escreverei sobre duas narrativas do livro Felicidade demais, da escritora canadense Alice Munro.
__________
¹ DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e castigo. São Paulo: Ed. 34, 2001 [Tradução e notas de Paulo Bezerra]
Ao longo da história sempre houve mais (muito mais) pessoas burras do que pessoas inteligentes. Melhor dizendo: sempre houve mais (muito mais) indivíduos confortavelmente (e, às vezes, alegremente) adaptados à sua ignorância do que indivíduos dispostos a mitigar (dentro das condições possíveis) seu desconhecimento sobre as coisas e os fenômenos à nossa volta. A burrice, precisamos admitir, é mais disseminada entre a população do que a inteligência.
Basta olhar ao seu redor.
Quando me preparava para escrever este texto lembrei-me de uma passagem de Crime e castigo. Estamos no capítulo IV, sexta (e última) parte do romance. Raskólnikov, já sem forças para não se deixar apanhar, decide revelar à pobre Sônia o seu segredo. Mais uma vez o protagonista retoma a sua tese do "homem extraordinário", cujos atos só devem ser julgados tendo em vista aquilo que ele realizou ou as forças que mobilizou e arregimentou, sendo irrelevantes os meios empregados para isso (o exemplo paradigmático de sua tese é Napoleão Bonaparte). O estudante então começa a recordar a época em que passava horas e horas trancafiado na sua apertada e mísera habitação em São Petersburgo ¹:
"Vê, naquela época eu estava sempre me perguntando: por que eu sou tão tolo que, se os outros são tolos, se eu sei ao certo que são tolos, por que eu mesmo não quero ser mais inteligente? Mais tarde fiquei sabendo, Sônia, que se a gente for esperar que todos fiquem inteligentes, isso irá demorar demais... Depois fiquei sabendo ainda que isso nunca vai acontecer, que as pessoas não vão mudar, que não há ninguém que possa refazê-las e não vale a pena perder tempo. Sim, isso é assim! É a lei delas. A lei, Sônia! É assim!..."
Claro que qualquer um poderia simplesmente desprezar todo esse papo de Raskólnikov por se tratar de alguém (um ser ficcional, sei disso, OK?) que não está nada bem, psicologicamente falando, além de ter cometido dois assassinatos (convém dizer que, fiel à sua queda pelo melodrama - não obstante sua genialidade -, Dostoiévski garantirá uma humilde redenção ao seu personagem). Ainda, porém, que a tese do "homem extraordinário" de Raskólnikov seja inaceitável, sob um ponto de vista moral/ético, o excerto acima permanece válido para mim e interessa-nos sobretudo pelo seguinte trecho:
"[...] se a gente for esperar que todos fiquem inteligentes, isso irá demorar demais... Depois fiquei sabendo ainda que isso nunca vai acontecer, que as pessoas não vão mudar, que não há ninguém que possa refazê-las e não vale a pena perder tempo".Raskólnikov olha para a burrice dos seres humanos como algo inextirpável. Tornar-se inteligente exige um esforço que poucos desejarão fazer ao longo da vida porque a burrice já está à mão, é reconfortante e se adequa muito bem aos "itens" mentais "de fábrica" da nossa espécie. Ser burro é gratuito e nada exige do sujeito: não requer aprendizado, tempo de dedicação, nem tampouco a mais módica das curiosidades ou o mais primário dos ceticismos. Dentro da "economia" psíquica, a burrice ocupa pouco espaço e tem custo baixíssimo. Daí ser perda de tempo, inútil mesmo, "esperar que todos fiquem inteligentes": há certas "vantagens" na ignorância. Na sua presunção e impaciência para contornar esse problema, contudo, o personagem dostoieviskiano seguiu por um caminho violento, trágico - e malogrado.
Alguma escapatória possível?
Dias atrás li a seguinte observação do filósofo italiano Nuccio Ordine numa matéria sobre o seu livro A utilidade do inútil:
"O fato de [conhecimentos como o literário, o artístico, o filosófico e a ciência pura/não aplicada] serem imunes a qualquer expectativa de benefício [representa] uma forma de resistência aos egoísmos do presente, um antídoto contra a barbárie do útil, que chegou a corromper inclusive nossas relações sociais e nossos afetos íntimos".
Apesar de achar a palavra barbárie meio fora de lugar nessa declaração, concordo com Ordine em relação ao papel, teimoso e digno, que a literatura, a arte, a filosofia e a ciência pura podem ainda desempenhar num mundo excessivamente pragmático e hostil à imaginação. A questão que se coloca, entretanto, é: sendo a burrice (estreitamente relacionada, aliás, com os "egoísmos do presente" mencionados acima) a regra geral, como convencer outros de que o esforço voltado para esses conhecimentos, mesmo o pouco que se puder aprender, vale a pena?
E não se trata apenas disso. Esses conhecimentos "imunes a qualquer expectativa de benefício" levam, quase sempre, a uma visão menos ingênua e mais crítica da existência. Não são uma promessa de bem-aventurança, muito pelo contrário. Promovem um necessário desconforto em relação às noções - e pretensões - arrumadinhas de como viver. E pessoas burras não querem experimentar um tal abalo do pensamento. A ignorância, como vimos, é quase uma consolação. Pode até produzir a ilusão de felicidade. "Ignorance is bliss": não é o que diz o ditado?
. . . . . . .
"Quem no mundo viverá mais feliz do que os vulgarmente chamados bobos, tolos, insensatos e imbecis?": é uma das perguntas feitas na obra-prima de Erasmo de Rotterdam, Elogio da Loucura ², um de meus livros prediletos. Pouco antes, no parágrafo anterior a essa passagem, a "autopanegirista" (ou seja, a própria Loucura) já havia dito: "[...] infiro que os verdadeiros felizardos são os que mais se aproximam da índole e da estupidez dos brutos". Tenhamos em mente, contudo, que ainda não se trata aqui propriamente daqueles a quem estou chamando burros - indivíduos que, deliberadamente, permanecem imersos na sua ignorância. Os "bobos, tolos, insensatos e imbecis", nesse caso, correspondem àqueles a quem avaliaríamos hoje como pessoas com algum tipo de deficiência mental/intelectual (o Elogio da Loucura foi escrito em 1509 e publicado em 1511: outro zeitgeist, outra sensibilidade, outro vocabulário, distintos da atualidade - lembremos disso, por mais óbvio que seja, antes de dirigir increpações ao autor).
Todavia, o livro de Erasmo tem muito a dizer sobre os burros. E com o perdão do(a) eventual leitor(a), precisarei ser um pouco pedante.
Elogio da loucura, como a quase totalidade das obras elaboradas por eruditos naquela época, foi escrito em latim. Seu título original é Encomium, id est, Stultitiae Laus (em tradução literal, Louvor, isto é, Elogio da Loucura). A palavra stultitia deu origem, no português, às palavras estultícia e estultice, cujos sinônimos atuais costumam ser "tolice", "insensatez", "imbecilidade" e também "necedade", "inaptidão" e "estupidez". Portanto, estultice (que, antigamente, tinha a acepção de "loucura") e burrice são hoje termos equivalentes.
Há pouco eu escrevi que as pessoas burras são indivíduos deliberadamente ignorantes. "A ignorância" - lê-se no texto de Erasmo - "tem, pois, dois grandes privilégios: um que consiste em estar de perfeito acordo com o amor-próprio, e outro, que consiste em trazer em si a maior parte do gênero humano". Ou seja, o burro costuma ter a si mesmo em alta conta e nunca se sente sozinho, pois a maior parte da população é igualmente burra.
Escrevi também que a burrice é reconfortante. Erasmo - ou melhor, a Loucura - afirma que existe um "furor" dentro dos seres humanos compelindo-nos a "uma certa alienação de espírito que afasta do nosso ânimo qualquer preocupação incômoda, infundindo-lhe os mais suaves deleites. É justamente essa divagação que, como um insigne dom dos supremos deuses, deseja Cícero para si quando diz a Ático que não pode mais suportar o peso de tantos males". E arremata logo adiante:
"Dizem os sábios que é um grande mal estar enganado; eu [a Loucura], ao contrário, sustento que não estar é o maior de todos os males. É uma grande extravagância querer fazer consistir a felicidade do homem na realidade das coisas, quando essa realidade depende exclusivamente da opinião que dela se tem. Tudo na vida é tão obscuro, tão diverso, tão oposto, que não podemos certificar-nos de nenhuma verdade. [...] Porque, se há verdades que, tendo sido bem demonstradas, não deixam lugar às dúvidas, quantas não serão - pergunto - as que perturbam a tranquilidade e os prazeres da vida? Os homens, enfim, querem ser enganados e estão sempre prontos a deixar o verdadeiro para correr atrás do falso".
Verdades perturbadoras impedem a felicidade alienada daquele que optou pela burrice. E numa espécie de mecanismo defensivo, quanto mais essas verdades perturbadoras irrompem, mais os indivíduos parecem entrincheirar-se na ignorância deliberada.
. . . . . . .
Como se sabe, Erasmo valeu-se de seu escrito satírico para criticar determinadas práticas e instituições de seu tempo. Sem, infelizmente, qualquer traço do talento e da ironia do pensador holandês, pretendo fazer o mesmo e, nesse caso, miro a pretensa sociabilidade da internet, especialmente nas mídias sociais.
Reafirmar um chavão neste momento acaba sendo inevitável. Vamos a ele.
Em si, a web é só uma ferramenta. Revolucionária, sem dúvida, tão importante quanto e mais poderosa até do que a difusão do texto impresso iniciada séculos atrás, além de ser tentacular de uma maneira tal nem sequer imaginada pelos meios de comunicação de massa surgidos no final do último milênio. Mas ainda assim, apenas uma ferramenta. O uso (humano, demasiado humano) desse instrumento fabuloso, contudo, é suscetível a juízos valorativos.
Provavelmente seja bastante precoce emitir julgamentos sobre o proveito (falo apenas das pessoas comuns) que tiramos da rede mundial de computadores atualmente (afinal, para usar uma expressão de Carlos Heitor Cony, vivemos na "era da internet lascada": difícil saber o que o futuro ainda nos reserva nesse campo, caso, claro, o planeta não se acabe numa catástrofe ambiental ou numa guerra nuclear). Arriscarei-me, contudo.
Em grande parte do tempo, tenho notado, as pessoas lançam mão da internet como uma espécie de "brinquedão", sejam elas crianças, adolescentes ou adultos. Explico. O uso é majoritariamente para diversão ou entretenimento (isso sem falar na propensão de muitos para bisbilhotar a vida alheia). Não me entenda mal, eventual leitor(a). Muitas vezes também estou apenas atrás de distração na web. Meu ponto, contudo, é: uma ferramenta tão transformadora como essa só está nos servindo para nos enternecermos com gifs de gatinhos e afundarmos a cara nos vídeo games? E, saindo dos passatempos inofensivos: a web conseguirá manter-se um ambiente saudável, sendo tão utilizada, como é nos dias de hoje, para o bullying virtual, a propagação do ódio e a instilação do obscurantismo e da intimidação? Aquelas projeções otimistas dos anos 1990 (penso, por exemplo, em livros como A vida digital, de Nicholas Negroponte, ou Cibercultura, de Pierre Lévy), que imaginavam tempos favoráveis ao desenvolvimento da compreensão, da inteligência e da educação colaborativa por meio da web, talvez precisem ser revistas. Para não me perder em generalizações e avaliações simplistas, entretanto, deixarei essa questão de lado para voltar ao Elogio da Loucura.
. . . . . . .
Muitos são os alvos de Erasmo nesse livro. Os advogados, os comerciantes, os soldados e guerreiros, os religiosos e teólogos... E também os filósofos. Peço a atenção do(a) eventual leitor(a) para esta passagem:
"Convidai um sábio para um banquete, e vereis que ou conservará um profundo silêncio ou interromperá os demais com frívolas e importunas perguntas. Convidai-o para um baile, e dançará com a agilidade de um camelo. Levai-o a um espetáculo, e bastará o seu aspecto para impedir que o povo se divirta. [...] Entra o sábio em alguma palestra alegre? Logo todos se calam, como se tivessem visto o lobo. Trata-se porém, de comprar, de vender, de concluir um contrato, em suma, de fazer uma dessas coisas que diariamente sucedem a cada um? Tomareis o sábio mais por uma estátua do que por um homem a tal ponto se mostra ele embaraçado em cada negócio. Assim, o filósofo não é bom, nem para si, nem para o seu país, nem para os seus. Mostrando-se sempre novo no mundo, em oposição às opiniões e aos costumes da universalidade dos cidadãos, atrai o ódio de todos com sua diferença de sentimentos e de maneiras".
Ao indicar como podem ser ridículos os sábios/filósofos ou como seriam estes inábeis para "essas coisas que diariamente sucedem a cada um", Erasmo tem duas intenções, a meu ver. A primeira é transmitir um recado: nossas tentativas para sermos menos ignorantes, nossas buscas por maior sabedoria, não precisam ser, necessariamente, empreitadas sem prazer, feitas de modo enfezado ou desgostoso. Um pouco de bom humor não faz mal a ninguém. Além disso, essas tentativas e buscas não deveriam ser desculpas para descuidarmos dessas "coisas que diariamente sucedem a cada um", sob pena de ingressarmos numa outra forma de alienação, pretensamente mais "sublime". A segunda intenção - não imediatamente perceptível no excerto acima, mas expressa noutras partes do Elogio da Loucura - é reivindicar, apesar da derrisão aparente do texto, a importância dos sábios/filósofos (afinal, o autor tenciona estar entre eles), esses indivíduos que se colocam costumeiramente "em oposição às opiniões e aos costumes da universalidade dos cidadãos".
Como escrevi antes, a burrice é reconfortante, entre outros motivos, porque ela é partilhada pela maioria. Faça um rápido exercício, eventual leitor(a). Olhe com atenção para os(as) "amigos(as)" perfilados(as) na sua conta do Facebook. Quantos(as) destes(as) você considera inteligentes? Eu sei, eu sei, é muita soberba achar que se tem condição para fazer uma avaliação dessas, além de ser descortês e meio malvado. Não esquecendo também que temos a tendência - irresistível - de considerar inteligentes somente aqueles(as) cujas ideias e opiniões vão ao encontro das nossas. Ainda assim, mantenho a proposta. Ceda à tentação, eventual leitor(a). Este blogueiro já fez o exercício. O resultado? Bem, vá acompanhando...
Numa das melhores passagens do Elogio da Loucura (cheguei inclusive a reproduzi-la no Twitter semana passada, na tradução inglesa), Erasmo escreveu:
"[...] que é, afinal a vida humana? Uma comédia. Cada qual aparece diferente de si mesmo; cada qual representa o seu papel sempre mascarado, pelo menos enquanto o chefe dos comediantes não o faz descer do palco. O mesmo ator aparece sob várias figuras, e o que estava sentado no trono, soberbamente vestido, surge em seguida, disfarçado em escravo, coberto por miseráveis andrajos. Para dizer a verdade, tudo neste mundo não passa de uma sombra e de uma aparência, mas o fato é que esta grande e longa comédia não pode ser representada de outra forma".Conviver com outros é fingir. É isso o que Erasmo quer dizer com "comédia". Sabemos que sem dissimulação e hipocrisia não existiria vida civilizada. É o preço a se pagar. E para "aparecer na comédia do mundo", ou seja, para não ser ignorado pelos outros, o melhor alvitre, como diz o pensador lá na epígrafe deste texto, é não procurar qualquer meio de diferenciação individual: trata-se de "dissimular intencionalmente com seus semelhantes ou correr ingenuamente o risco de se enganar com eles".
Todos estamos carecas de saber que as mídias sociais (sobretudo Facebook e Instagram) servem para edulcorar a imagem de muita gente. Uma olhada mais atenta ou o simples contato face-a-face são suficientes para desmontar o embuste. Há também, claro, quem não seja tão falso. Mas isso não melhora o quadro geral, pelo menos do meu ponto de vista.
Recentemente, contrariei uma decisão tomada ano passado de não reatar contato no Facebook com gente que conheci noutras fases de minha vida: ex-colegas de escola, ex-colegas de trabalho, parentes, companheiros de esbórnia da juventude, etc. Entretanto, a quantidade de autoajuda barata, anti-intelectualismo, endosso a discursos de ódio e intolerância, proselitismo religioso, compartilhamento de notícias falsas e analfabetismo político encontrados na maioria dos perfis fizeram com que me arrependesse completamente de voltar a "rever" essas pessoas. Não estou disposto, pelos menos nesse caso, a "dissimular intencionalmente com [meus] semelhantes". Então voltei ao estágio anterior, desfazendo os contatos.
Narro essa situação pessoal porque ela ajuda a concluir o texto desta postagem. No trecho mais famoso do Elogio da Loucura, lê-se:
"Tudo o que fazem os homens está cheio de loucura. São loucos tratando com loucos. Por conseguinte, se houver uma única cabeça que pretenda opor obstáculo à torrente da multidão, só lhe posso dar um conselho: que, a exemplo de Timão, se retire para um deserto, a fim de aí gozar à vontade dos frutos de sua sabedoria".
Ir contra a corrente - e a corrente, quase sempre, é um fluxo de ignorância deliberada - é tarefa ingrata, árdua. Inútil talvez, já que, como disse lá no início, a burrice sempre vence. Combatê-la é quase como que se retirar para o deserto, pois acabamos sendo isolados - ao mesmo tempo em que nos isolamos - da "torrente da multidão", formada pelas pessoas estúpidas. Eu me pergunto quantas dessas pessoas incrivelmente burras vivendo no planeta conseguiriam deixar de lado sua estultice, pelo menos por uns poucos momentos, para ler um livro como o Elogio da Loucura. Mas pensando bem, isso não serviria para nada. Porque dificilmente essas pessoas realizariam a autocrítica ali sugerida. Ah, e certamente um grande número desses indivíduos participa do Facebook, já que a corporação criada por Mark Zuckerberg chegou aos 2 bilhões de usuários. Assim sendo, é possível dizer que, caso fosse publicado hoje - e talvez, para aumentar a ironia, sob a forma de "textões" dentro dessa mídia social -. um livro como Elogio da Loucura não ganharia muitos likes, pois expõe "a comédia do mundo" da qual a maioria de nós não quer nem saber.
Na próxima postagem, escreverei sobre duas narrativas do livro Felicidade demais, da escritora canadense Alice Munro.
__________
¹ DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e castigo. São Paulo: Ed. 34, 2001 [Tradução e notas de Paulo Bezerra]
² ERASMO DE ROTTERDAM. Elogio da Loucura. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979 [Tradução e notas de Paulo M. Oliveira] (Col. Os pensadores)
BG de Hoje
Minha adolescência foi uma bosta, do início ao fim. Mas apenas no término dessa fase desgraçada é que a canção A vida não presta, gravada pelo LEO JAIME, fez todo o sentido pra mim.