quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Luis Fernando Verissimo e a sinceridade de um escritor profissional (I)


Num ensaio cujo título é um tanto lúgubre - A literatura e o direito à morte ¹ -, publicado, se não me engano, no final dos anos 1940, o escritor e crítico literário Maurice Blanchot escreveu:

"Desde o seu primeiro passo, diz mais ou menos Hegel, o indivíduo que quer escrever é impedido por uma contradição: para escrever, precisa de talento para escrever. Mas nele mesmo os dons não são nada. Enquanto não se puser à mesa e escrever uma obra, o escritor não é escritor e não sabe se tem capacidade para vir a ser um. Só terá talento após ter escrito, mas dele necessita para escrever".

É possível que muitos(as) - talvez a maioria - dos(as) escritores(as) tenham estacado frente à contradição mencionada por Blanchot, nem que seja ao menos no início de suas trajetórias. "Terei jeito pra coisa?", perguntaram-se, hesitantes, nalgum momento. Mas só há um modo de saber: escrevendo. O texto resultante (a obra resultante) dirá se existe ou não talento. O ensaísta francês acrescenta:

"O escritor não é um sonhador idealista, não se contempla na intimidade da sua bela alma, não se enterra na certeza interior de seus talentos. Seus talentos, ele os põe na obra, isto é, necessita da obra que produz para se conscientizar deles e de si mesmo. O escritor só se encontra, só se realiza em sua obra; antes de sua obra, não apenas ignora o que é, mas também não é nada".

Maurice Blanchot tinha em mente neste ensaio os(as) escritores(as), digamos, com amplas veleidades literárias. Digo isso porque suas observações talvez pouco tenham a ver com autores mais modestos em suas aspirações artísticas, como Luis Fernando Verissimo, por exemplo. Ou talvez não. Vejamos.

Aos 81 anos, o escritor gaúcho acaba de doar parte significativa de seu acervo pessoal (incluindo textos não publicados, rascunhos, traduções, cartuns, etc.) para a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), que, segundo ele, bem-humorado, vai compor "um cantinho ali da biblioteca" central do novo campus da instituição, recém-inaugurado em Porto Alegre. Sinal inequívoco de que o reconhecido trabalho de Luis Fernando Verissimo já faz parte da história (afinal, acervos do tipo costumam ser demandados por pesquisadores e estudiosos interessados na obra e vida dos autores). E, penso eu, também sinal de aclamação de seu talento, muito embora o criador d'O analista de Bagé e um dos idealizadores da Comédia da vida privada, mesmo após quase cinco décadas de carreira, não costume olhar para si como um literato, na acepção mais requintada do termo. Bem recentemente, em entrevista concedida no mês passado ao jornal Extra Classe, Verissimo declarou:

"A quase totalidade de meus romances foi feita por encomenda, só Os espiões (2009) que partiu de uma ideia própria, achei que era hora e fiz. Ficou direitinho. Mas meu preferido é Borges e os orangotangos eternos (Cia das Letras, 2000), que é um pouco melhor do que os outros. Não tenho, de verdade, grandes pretensões literárias".
Esse escritor, contudo, não se notabilizou nacionalmente por obras de grande fôlego (ao contrário do pai, Erico Verissimo) e sim por sua atividade de cronista. O que nos obriga a fazer a velha pergunta, meio embaraçosa, chata e deselegante, mas ainda não completamente vencida: "E a crônica, deve ser considerada Literatura ou não?" Mas melhor seria, pra começo de conversa, perguntar que diabos é a própria Literatura?

Voltemos a Maurice Blanchot.

Em seu ensaio, lemos:

"Constatamos com surpresa que a pergunta: 'O que é a literatura?' só recebeu respostas insignificantes. Mas existe algo mais estranho: na forma dessa pergunta, algo parece retirar-lhe toda a seriedade. Perguntar: O que é a poesia?, O que é a arte? ou mesmo: O que é o romance?, podemos fazê-lo e foi feito. Mas a literatura, que é poema e romance, parece ser elemento do vazio, presente em todas essas coisas graves, e sobre que a reflexão, com sua própria gravidade, não se pode voltar sem perder sua seriedade. Se a reflexão imponente se aproxima da literatura, esta se torna uma força cáustica, capaz de destruir o que nela e na reflexão se poderia impor. Se a reflexão se afasta, então a literatura volta a ser, com efeito, algo importante, essencial, mais importante do que a filosofia, a religião e a vida do mundo que ela abarca".

Por que perguntar o que é a literatura retiraria, aparentemente, a seriedade da própria pergunta, como pensava Blanchot? Bem, antes de responder, é preciso dizer de saída que o pensador francês foi muito influenciado por Hegel e, especialmente, por Heidegger, dois filósofos famosos pelas ideias meio herméticas e pelos escritos difíceis de ler. Mas procuremos simplificar.

Tentar encontrar o ser da literatura, buscar situá-la ontologicamente -  ou seja, responder, afinal, o que é a literatura -, não pareceria algo sério porque a literatura, segundo Maurice Blanchot, tem como ideal "nada dizer, falar para nada dizer". A literatura se liga a uma linguagem, claro, mas essa linguagem expressa, no fim das contas, o vazio, diz Blanchot, ao modo heideggeriano. Podemos definir determinadas formas de organização da linguagem e chamá-las literárias - romances, poemas, contos -, mas a essência do que responde pelo literário nelas mesmas nos escaparia.

Suponhamos que você receba uma folha de papel na qual esteja escrito, sem qualquer indicativo, apenas o seguinte:

"As coisas têm peso, massa, volume, tamanho, tempo, forma, cor, posição, textura, duração, densidade, cheiro, valor, consistência, profundidade, contorno, temperatura, função, aparência, preço, destino, idade, sentido. As coisas não têm paz".

É um texto literário ou não?

Adianto que sim.

Mas o que, precisamente, demonstra a sua literariedade?

A disposição formal do texto? Creio que não. Um léxico particularmente especial, raro, fora do comum? Menos ainda. Então o que é?

Penúltima parte de um ótimo livro de Arnaldo Antunes ², o poema reproduzido acima, se colocado numa folha de papel avulsa, sem indicação de autor, pouco diferiria de um texto convencional, não-poético. Mas há algo difícil de precisar (um nada? um vazio?) naquela organização de palavras que alguns de nós percebemos e interpretamos prontamente como literatura. Um fenômeno assim acontece com as crônicas?

O falecido jornalista (e político) Artur da Távola escreveu certa vez que a crônica é "a literatura do jornal. O jornalismo da literatura". Sérgio Roberto Costa, no seu Dicionário de gêneros textuais ³, afirma que a "crônica é o único gênero literário produzido essencialmente para ser veiculado na imprensa, seja nas páginas de uma revista, seja nas de um jornal. Quer dizer, ela é feita com uma finalidade utilitária e predeterminada: agradar aos leitores dentro de um espaço sempre igual e com a mesma localização, criando-se assim, no transcurso dos dias ou das semanas, uma familiaridade entre o escritor e aqueles que o leem".

Quanto ao estilo, "deve dar a impressão de naturalidade e a língua escrita aproximar-se da fala. Daí porque a crônica seja considerada por muitos críticos um gênero menor: aquela vontade de forma que todo grande artista possui termina subjugada pela necessidade de ser acessível a todos. Mesmo assim, alguns desses prosadores são capazes de alcançar uma linguagem de singular beleza".

Estariam todos os cronistas condenados a uma escrita destituída de qualidade artística por causa dessa "necessidade de ser acessível a todos", dessa obrigação de "agradar aos leitores", decorrente, por sua vez, da "finalidade utilitária e predeterminada" do gênero textual que produzem? É óbvio que não. Há centenas de textos - assinados por Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Rachel de Queiroz, pelo próprio Luis Fernando Verissimo, por Antonio Prata (na minha opinião, um dos melhores cronistas da atualidade), entre muitos outros - nos quais a composição e  o acabamento primorosos (entre outros elementos) não nos fazem duvidar de que se trata de arte literária. Ainda assim, dedos acusadores são apontados para os cronistas por estes fazerem demasiadas concessões ao leitor... Na entrevista anteriormente mencionada, quando perguntado se obedece a alguma metodologia quando escreve, Luis Fernando Verissimo não faz rodeios: "Escrevo sempre para ser publicado, nunca para deleite próprio. Só com esse foco. Nunca fiz isso de escrever para mim".  E ele não se sente nem um pouco incomodado. Seus leitores, idem. Sou remetido, então, a outra passagem de A literatura e o direito à morte:

"O autor que escreve especialmente para um público", diz Maurice Blanchot, "na realidade, não escreve: é esse público que escreve, e, por essa razão, esse público não pode mais ser leitor; a leitura o é apenas em aparência, no fundo é nula. Daí a insignificância das obras feitas para serem lidas - ninguém as lê. Daí o perigo de escrever para os outros, para despertar a palavra dos outros e descobri-los eles mesmos: é que os outros não querem ouvir suas próprias vozes, mas sim a voz de um outro, uma voz real, profunda, que incomoda como a verdade".

Ao que tudo indica, o critico francês, por meio desse ensaio, visava rebater a concepção de literatura engajada (e, portanto, assumidamente política), defendida por Jean-Paul Sartre em Que é a Literatura? (publicado originalmente em 1948). Percebe-se essa intenção no trecho "daí o perigo de escrever para os outros, para despertar a palavra dos outros e descobri-los eles mesmos" encontrado no excerto acima. No entanto, o que mais me chama a atenção é a sentença "Daí a insignificância das obras feitas para serem lidas - ninguém as lê". É um tipo de arrogância aristocrática - diríamos, nos dias de hoje, elitista - antipática até para um cara esnobe como Maurice Blanchot, não obstante seu traquejo intelectual. Ora, quando diz que ninguém lê as "obras feitas para serem lidas" (ou seja, textos artisticamente menos ambiciosos e, em boa parte dos casos, bastante populares), ele quer denotar, com o pronome indefinido ninguém, simplesmente o seguinte: nenhuma-daquelas-raras-pessoas-que-tiveram-uma-educação-literária-como-a-minha-ou-que-compartilham-do-mesmo-substrato-cultural-no-qual-cresci.

Luis Fernando Verissimo escreve para o público, escreve para ser lido. E como seria possível, se seguíssemos de perto o que diz Maurice Blanchot, afirmar que ninguém lê seus textos, quando sabemos ser o escritor gaúcho um dos mais estimados autores brasileiros? Pode-se contra-argumentar, contudo, lembrando que o trabalho de Verissimo não se encaixaria naquilo que o ensaísta francês considera ser literatura.

Precisarei, então, deixar pra lá Maurice Blanchot.

. . . . . . .

Só agora, eventual leitor(a), estou me dando conta de que a postagem seguiu por direções não planejadas quando comecei a escrevê-la. O objetivo inicial era apenas destacar alguns pontos da entrevista de Veríssimo ao jornal Extra Classe, mas acabei enveredando por outros rumos, pois também tinha acabado de ler o ensaio A literatura e o direito à morte. E nem sei por que acabei juntando as duas coisas nesta mistura estranha.

Prossigo com a discussão na próxima semana, retomando de onde parei hoje e tentando tornar tudo um pouco menos confuso. Mas não garanto nada.
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¹ BLANCHOT, Maurice. A literatura e o direito à morte. In: _________. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. p. 309-351 [Tradução de Ana Maria Scherer]

² ANTUNES, Arnaldo. As coisas. 9 ed. São Paulo: Iluminuras, 2000.

³ COSTA, Sérgio Roberto. Dicionário de gêneros textuais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

BG de Hoje

Nos meus dias ruins (e estes suplantam, com folga, os dias bons) costumo escolher determinadas canções para ouvir pela madrugada afora e tentar aliviar a barra. Uma das que mais tenho escutado ultimamente é a linda Enjoy the Ride, do MORCHEEBA. Ah, importante dizer que essa faixa, na gravação, é interpretada pela cantora Judie Tzuke. A "titular" do Morcheeba, Skye Edwards, estava fora da banda em 2008, quando foi lançado o disco Dive Deep, do qual faz parte Enjoy the ride (Edwards retornaria algum tempo depois).