Na semana passada fiz uma mistureba daquelas aqui no Besta Quadrada.
Se o(a) eventual leitor(a) tiver a amabilidade de conferir a postagem anterior, verificará que iniciei o texto com duas citações do filósofo e crítico literário francês Maurice Blanchot (extraídas de um ensaio¹ publicado, creio eu, em 1949), nas quais há reflexões sobre a condição dos escritores (lá, na acepção de literatos). A seguir, mencionei uma entrevista de Luis Fernando Verissimo ao jornal Extra Classe e comentei o fato do autor gaúcho habitualmente ter aspirações modestas como artista, a despeito de seu talento. Ao enfatizar que Verissimo é reconhecido sobretudo por escrever crônicas, obstinei-me - não sei por que cargas d'água - em estabelecer se estas deveriam ou não ser consideradas literatura, o que me volveu para outra questão ainda mais ampla: afinal, que diabos seria a própria literatura? Retornei, então, a Maurice Blanchot e ao seu ensaio A literatura e o direito à morte, observando que o crítico francês, influenciado por Martin Heidegger, acreditava que o ideal da escrita literária é "nada dizer, falar para nada dizer" - expressar, pois, um vazio. Assim sendo, como localizar a literariedade de um texto, se é que isso existe? Como detectá-la nas crônicas? Por que, para muitos, a crônica teria menos "investidura" literária do que outros gêneros? Como se vê, as perguntas assomam. Porém, ao invés de respondê-las, fui citar outro trecho da entrevista de Luis Fernando Verissimo, no qual ele afirma nunca escrever para si, querendo dizer com isso que trabalha seu texto visando o público leitor. Algo execrado por Maurice Blanchot: segundo ele, as obras feitas para serem lidas acabam não sendo lidas por ninguém. Mas, quando paramos para pensar, percebemos que esse ninguém a quem o afetado pensador francês se refere são aquelas raras (e privilegiadas) pessoas que tiveram uma educação literária como a dele ou que compartilharam do mesmo substrato cultural no qual ele cresceu. Senti que precisava desvencilhar-me do enfoque excludente de Blanchot.
E aqui estamos.
E aqui estamos.
Meu objetivo hoje é apresentar um outro conceito de literatura, para, a partir deste, defender o genuíno lugarzinho da crônica junto aos demais gêneros literários. Mantenho também, desde a postagem anterior, a intenção de desmitificar um pouco o ofício dos(as) escritores(as) e, para isso, as declarações de um autor nada deslumbrado como Luis Fernando Verissimo serão muito oportunas.
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No livro Teoria da Literatura: uma introdução ², de Terry Eagleton, encontramos a seguinte passagem:
"John M. Ellis [atualmente professor de Literatura Alemã na University of California, Santa Cruz] argumentou que a palavra 'literatura' funciona como a palavra 'mato': o mato não é um tipo específico de planta, mas qualquer planta que por uma razão ou outra, o jardineiro não quer no seu jardim. 'Literatura' talvez signifique exatamente o oposto: qualquer tipo de escrita que, por alguma razão, seja altamente valorizada. Como os filósofos diriam, 'literatura' e 'mato' são termos antes funcionais do que ontológicos: falam do que fazemos, não do estado fixo das coisas. Eles nos falam do papel de um texto ou de um cardo num contexto social, suas relações com o ambiente e suas diferenças com esse mesmo ambiente, a maneira pela qual se comporta, as finalidades que lhe podem ser dadas e as práticas humanas que se acumularam à sua volta. 'Literatura' é, nesse sentido, uma definição puramente formal, vazia. Mesmo se pretendermos que ela seja um tratamento não-pragmático da linguagem, ainda assim não teremos chegado a uma 'essência' da literatura, porque isso também acontece com outras práticas linguísticas, como as piadas".
A literatura não é uma coisa - não é um ente com a mesma, digamos, "densidade" ontológica das rochas ou das células do nosso corpo, por exemplo. Também não seria o caso de classificá-la como algo etéreo, inefável. É claro que o literário se dá por meio da linguagem, sendo os diversos idiomas do mundo o seu sustentáculo. Muitos estudiosos, inclusive, entendem a literatura como uma forma peculiar no uso de um sistema linguístico (o tal "tratamento não-pragmático" mencionado acima), empregando propositalmente determinados artifícios e, com isso, transformando, intensificando ou mesmo deformando esse sistema (Terry Eagleton cita aquele famoso aforismo de Roman Jakobson, segundo o qual a literatura seria uma "violência organizada contra a fala comum"). No momento, interessa-nos mais de perto, porém, a sugestão de que um texto literário é aquele ao qual atribuímos um alto valor, distinguido-o do conjunto dos outros textos produzidos na sociedade. E isso gera "uma consequência bastante devastadora", segundo Terry Eagleton:
"Significa que podemos abandonar, de uma vez por todas, a ilusão de que a categoria 'literatura' é 'objetiva', no sentido de ser eterna e imutável. Qualquer coisa pode ser literatura, e qualquer coisa que é considerada literatura, inalterável e inquestionavelmente - Shakespeare, por exemplo - , pode deixar de sê-lo. Qualquer ideia de que o estudo da literatura é o estudo de uma entidade estável e bem definida, tal como a entomologia é o estudo dos insetos, pode ser abandonada como uma quimera. Alguns tipos de ficção são literatura, outros não; parte da literatura é ficcional, e parte não é; a literatura pode se preocupar consigo mesma no que tange ao aspecto verbal, mas muita retórica elaborada não é literatura. A literatura, no sentido de uma coleção de obras de valor real e inalterável, distinguida por certas propriedades comuns, não existe".
Importante: sendo um qualificativo um tanto flutuante, o adjetivo literário não deveria ser empregado de forma taxativa ³.
A literatura é, pois, uma modalidade de escrita à qual costumamos atribuir um alto valor e que não partilha da estabilidade de outros objetos de conhecimento/estudo (como as rochas e as células, por exemplo). Sua vicissitude "resulta do fato de serem notoriamente variáveis os juízos de valor". Uma obra pode receber (ou perder) o status de literatura com a passagem do tempo, mudar de classe. Além do mais, "pode variar o conceito do público sobre o tipo de escrita considerado como digno de valor". Os critérios para avaliar uma boa escrita literária modificam-se dentro de uma cultura - o que era aclamado em um texto no século XVIII pode não ter nenhum apelo para o leitor atual, do mesmo modo que técnicas de escritura e composição hoje em alta sejam desprezadas daqui a algumas décadas.
"Isso" - escreve Eagleton - "não significa necessariamente que venha a ser recusado o título de literatura a uma obra considerada menor: ela ainda pode ser chamada assim, no sentido de pertencer ao tipo de escrita geralmente considerada como de valor. Mas não significa que o chamado 'cânone literário', a 'grande tradição' inquestionada da 'literatura nacional', tenha de ser reconhecido como um construto modelado por determinadas pessoas, por motivos particulares, e num determinado momento. Não existe uma obra ou uma tradição literária que seja valiosa em si, a despeito do que se tenha dito, ou se venha a dizer, sobre isso. 'Valor' é um termo transitivo: significa tudo aquilo que é considerado como valioso por certas pessoas em situações específicas, de acordo com critérios específicos e à luz de determinados objetivos. Assim é possível que, ocorrendo uma transformação bastante profunda em nossa história, possamos no futuro produzir uma sociedade incapaz de atribuir qualquer valor a Shakespeare. Suas obras passariam a parecer absolutamente estranhas, impregnadas de modos de pensar e sentir que essa sociedade considerasse limitados ou irrelevantes. Em tal situação, Shakespeare não teria mais valor do que muitos grafitos de hoje. E embora para muitos essa condição social possa parecer tragicamente empobrecida, creio que seria dogmatismo não considerar a possibilidade de que ela resultasse de um enriquecimento humano em geral".
(Bem, como pessimista crônico, este blogueiro, apesar de concordar com o crítico literário britânico a respeito da transitividade da noção de valor, não crê que os seres humanos progridam como espécie ou sociedade e, portanto, não acredita na possibilidade de melhoria aventada acima)
Todavia, não pensemos que os valores são cambiantes simplesmente por causa da arbitrariedade e dos caprichos de nossas inclinações pessoais. Valores tem muito menos a ver com nossa subjetividade e são menos particulares do que costumamos supor. Como observa Terry Eagleton, "todas as nossas afirmações descritivas se fazem dentro de uma rede, frequentemente invisível, de categorias de valores; de fato, sem essas categorias nada teríamos a dizer uns aos outros". Além do mais, os juízos de valor "têm suas raízes em estruturas mais profundas de crenças, tão evidentes e inabaláveis quanto o edifício Empire State". Embora um pouco fora de moda hoje em dia, há uma palavra adequada para designar "essas estruturas mais profundas de crenças": ideologia ⁴.
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A literariedade de um texto, como acabamos de ver, é um valor atribuído, escorado, em última análise, nas diversas ideologias em circulação. Creio não ser difícil imaginar aquele que lê - seja um acadêmico ou crítico experimentado, seja um diletante sem maiores credenciais do que seu interesse, curiosidade ou paixão - nesse papel atribuidor. Mas e quanto àquele que escreve? Suponho que boa parte dos(as) autores(as), ao elaborarem seus textos - sejam estes romances, poemas, contos ou crônicas (porque, a esta altura, já não temos dúvida de que a crônica é um gênero literário, não é mesmo?) -, agem, intencional e conscientemente, para que sua escrita exiba certos elementos e traços passíveis de serem valorizados (e isso diz respeito ao aspecto verbal/formal do texto) como literatura, do mesmo modo que o fazem outros artistas nos seus respectivos campos.
Imagino, porém, que os artistas, independentemente do talento individual, não são capazes de produzir obras-primas o tempo todo. Noutras vezes, aquilo que o artista considera um trabalho estupendo pode não ir ao encontro daquilo que os atribuidores de valor - crítica, academia, imprensa, público em geral - têm em mente. Convém também lembrar que os artistas, até segunda ordem, estão sujeitos ao implacável capitalismo, assim como você e eu. E é nesse ponto que entra o tema do escritor profissional.
Parece haver certa vergonha (ou pudor, sei lá) da parte de muitos autores(as) em se assumirem como profissionais. Certamente não é o caso de Luis Fernando Verissimo. Em diversas ocasiões, até mesmo em algumas de sua crônicas, ele trata sem melindres dessa questão.
Já fui, noutros tempos, dessas pessoas que concebem a atividade literária como compromisso puramente artístico, sem qualquer transigência de natureza comercial. E isso é uma tolice! Nem todo(a) escritor(a) que "vende" é, necessariamente, um(a) mau(má) escritor(a) - embora muitos(as) o sejam. E vários(as) autores(as) populares ou bem sucedidos(as) nas livrarias não deixam de estabelecer para si padrões de escrita que avaliaríamos como literários, caso usássemos os critérios empregados no julgamento de obras mais "respeitáveis". Luis Fernando Verissimo, penso eu, é um desses.
Antes de terminar, gostaria de lembrar uma resposta do cronista gaúcho na entrevista ao jornal Extra Classe mencionada lá no início da postagem. Ele dissera, a respeito dos romances de sua autoria, que não tem grandes pretensões literárias. O entrevistador, então, pergunta: "Por escrever entretenimento?". E Verissimo diz:
"É, acho que sim. No Brasil é uma literatura considerada não muito respeitável, por isso os autores relutam em se dedicar a ela. Como não busco respeito... (risos). Mas é um gênero que precisa existir, até para a sobrevivência do mercado editorial".
Nós que gostamos de literatura temos a mania de só pensar na sublimidade da arte e não costumamos dar a devida atenção à dimensão material e mercadológica dessa atividade cultural. Por isso é sempre bom ouvir o que tem a dizer sobre isso sujeitos lúcidos e sinceros (além de talentosos) como Luis Fernando Verissimo.
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¹ BLANCHOT, Maurice. A literatura e o direito à morte. In: __________. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. p. 309-351 [Tradução de Ana Maria Scherer]
² EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006 [Tradução de Waltensir Dutra]
³ "Quando, deste ponto em diante, eu utilizar as palavras 'literário' e 'literatura' neste livro, eu o farei com a reserva de que tais expressões não são de fato as melhores; mas não dispomos de outras no momento", registra Terry Eagleton em seu livro
⁴ Eagleton faz ainda um importante acréscimo: "Não entendo por 'ideologia' apenas as crenças que têm raízes profundas, e são muitas vezes inconscientes; considero-a, mais particularmente, como sendo os modos de sentir, avaliar, perceber e acreditar, que se relacionam de alguma forma com a manutenção e reprodução do poder social".
BG de Hoje
Tenho gostado muito do som da banda potiguar FAR FROM ALASKA. Ouvindo direto nos últimos dias, sobretudo a faixa Cobra.