sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Chupar laranja, (tomar) aspirina, catar feijão


Voltei a trabalhar numa biblioteca escolar. Quase seis anos se passaram e me deparo, nesse retorno, com as mesmíssimas situações problemáticas que eu acreditava terem ficado para trás. Bem, pelo menos está mais fácil agora reaproximar-me da literatura infantil e infantojuvenil depois de um longo hiato. Uns dias atrás, fui percorrer as prateleiras de poesia e fiquei contente ao achar o livro  Dia brinquedo,  de Fernando Paixão (Ed. Abril, 2009, com ilustrações de Suppa). Numa oportunidade anterior, noutra escola pública, eu havia selecionado três poemas deste livro para apresentá-los (junto com outros, de poetas diferentes) a um conjunto de turmas, num minissarau. Naquela ocasião, a coisa saiu melhor do que o esperado, tendo em vista as dificuldades de se obter adesão e envolvimento nas ações ligadas à literatura, por incrível que pareça, dentro de determinadas unidades escolares.

Um dos poemas selecionados tinha sido este:

 

ENCONTRO DAS FRUTAS
 
Na fruteira nova
alta luz da tarde
as laranjas têm bunda
brilha o batom das maçãs.
 
Trinta e nove uvas
de mãozinhas dadas
dão boas risadas
da cara feia do abacaxi.

 

"Funciona" muito bem com vários estudantes do início do Fundamental, as imagens ocorrendo-lhes rapidamente, achando graça nos traseiros das laranjas e se perguntando como seria ter um rosto de abacaxi.

Há uma disponibilidade muito maior de temas e assuntos aos quais recorrer nos poemas endereçados às crianças do que nos outros, destinados aos leitores mais experimentados. Pode-se imaginar, por exemplo, um diálogo de amor entre um garfo e uma colher (como se vê nesse mesmo livro de Fernando Paixão citado acima) ou compor uma cena em que uma vaca entra num bar e pede refrigerante com canudinho (lembrei-me agora de um dos muitos textos engraçados do Sérgio Caparelli), sem se preocupar se isso vai ou não comprometer a imagem de poeta sério que muitos temem colocar em risco. E Fernando Paixão é um poeta sério, lido por adultos meticulosos, professor da USP e tal, mas que fez questão de colocar nas páginas centrais do seu  Dia Brinquedo :  "O poeta escreve poesia para ser criança todo dia".  

A menção de nádegas cítricas me fez lembrar de um poema bem fraquinho de Drummond ¹, do qual praticamente ninguém fala, mas que acho bem divertido, em sua peculiaridade :

 

CHUPAR LARANJA 
 
A laranja, prazer dourado.
A laranja, prazer redondo.
A laranja, prazer fechado.
A laranja, prazer de faca.
 
Ou canivete. Cada golpe
anuncia: já se aproxima
o íntimo prazer da laranja,
que se dá sem sacrifício.
 
A laranja não se espedace,
para mais intenso prazer.
A laranja fique redonda,
mesmo sem casca, esfera nívea.

Então corte rápido a lâmina
um dos polos; a mão aperte,
e a boca sorverá, sensual,
a líquida alma da laranja.
 
Quem foi que, anônimo, inventou
o prazer de chupar laranja
em forma global de mamucha?
Gerações antigas sorriem
neste mestrado de volúpia.

 

Chupar laranja  integra  Boitempo,  conjunto de poemas de teor memorialista, ligados à meninice e a adolescência, publicado originalmente em 1968. Assim como vários dos textos ali reunidos, seus versos derivam da evocação de um ato simples, ligado à vida doméstica.

Durante muitos anos, eventual leitor(a), principalmente na infância, fiz pouca questão da laranja. Fruta trivial, da mesma categoria da banana e do mamão - todas sem qualquer mirabolância. Hoje, envelhecido, praguejo se não encontro alguma para saborear depois de um bom almoço em casa, sendo justamente a sua modéstia e despojamento o que passou a me agradar.

Levei um certo tempo para desenvolver a habilidade de descascar laranjas (só de lembrar os "machucados" que, no passar da lâmina, deixei em muitas delas, fico irritado, inclusive por uma questão estética, pois alcançar a "esfera nívea", quase homogênea, deveria ser o objetivo). Agora, com orgulho, posso arvorar-me um perito e, apesar da invencível desorganização e do caos permanente em minha moradia, guardo em local especial há anos uma faca jeitosa exclusivamente para o descascamento (por isso assimilo tão bem o verso "A laranja, prazer de faca"  ). 

O eu lírico presume que o  corte em "dois polos"  é o modo padrão de consumo da fruta. Entretanto, vê-se bastante mundo afora o  corte em xis ou cruz   (sem necessidade de tirar a casca, aliás) e até a  separação por gomos  (procedimento supérfluo e trabalhoso, devo dizer), tal qual uma tangerina que perdeu a vocação. A  "forma global de mamucha"  não é, portanto, planetária (a propósito, que palavra deliciosa é  mamucha , indisfarçavelmente mineira e com os dois pés no arcaico!).

Não recriminaria quem achasse insólito a laranja ser o tópico central de um poema (que não visava o público infantil) elaborado por um dos bambas da nossa poesia. Estranhamento parecido talvez se repita numa outra composição cujo tema principal, desta vez, é um fármaco ²:

 

NUM MONUMENTO À ASPIRINA
 
Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio dia. 
 
Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.


O autor, desta feita, é João Cabral de Melo Neto e o texto em questão é bem mais conhecido do que o anterior. Faz parte de  A educação pela pedra,  lançado em 1966.

Uma nota biográfica vem a calhar. O poeta pernambucano sofreu por décadas com uma enxaqueca crônica. Em entrevista, afirmou ter consumido, durante muitos anos, cerca de seis comprimidos de aspirina diariamente. O medicamento tornou-se parte da sua vida - uma homenagem, portanto, não soaria despropositada. Em se tratando da poética cabralina, contudo, não devemos esquecer como o autor gostava de tornar matéria de poesia aquilo que ordinariamente não é considerado poético, evitando vocábulos por demais polissêmicos, preterindo a abstração e valorizando a concretude. Frente a um comprimido de aspirina, pouco pode fazer o subjetivismo.

Para encerrar essa mirada de poemas, busquemos mais um de Melo Neto ³,  célebre, também extraído de  A educação pela pedra :

 

CATAR FEIJÃO
 
Catar feijão se limita com escrever:
jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
 
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que sempre entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá a frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.


A quem ocorreria a comparação entre o prosaico ato de catar feijão e o ato de escrever (no caso, escrever literatura)? Está demonstrado que eles  se limitam  (ou seja, fazem fronteira um com o outro, são próximos embora não idênticos). Quem escreve distingue, precisa separar e depois suprimir "o leve e oco", a "palha e eco" - ou, às vezes, incorporar conscientemente a  pedra, indesejada no preparo do feijão, mas bem-vinda na escrita,  se esta atende a necessidade do artista de desafiar o leitor. Para João Cabral, o poema é sobretudo resultado de um empenho do pensar: o derramamento da inspiração é secundário na hora de compô-lo.

Esse é um dos textos cabralinos em que a sonoridade combinada das palavras contribui imensamente para sua beleza: "jogam-se os grãos na água do alguidar" ;  "e jogar fora o leve e oco, palha e eco" "obstrui a leitura fluviante, flutual/ açula a atenção, isca-a com o risco".  Justamente num autor que,  aparentemente,  não dava muita bola para esses efeitos...

 

Na próxima postagem, continuarei no terreno do verso, falando do último livro de poemas de Affonso Romano de Sant'Anna que veio a público antes de seu falecimento.

_________________ 

¹ ANDRADE, Carlos Drummond de. Chupar laranja. In: ____________. Boitempo I. 4 ed. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 78-79 

² MELO NETO, João Cabral de. Num monumento à aspirina. In: ___________. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 32

³ MELO NETO, João Cabral de. Catar feijão. In:___________. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 16-17  

BG de Hoje

Não tenho dados para confirmar, mas o Rio de Janeiro é provavelmente o município mais cantado do Brasil. É compreensível: além da antiguidade e da importância ao longo da história, muitos de seus moradores e visitantes frequentes amam de paixão aquele lugar (pessoalmente, tenho muita antipatia  pela  cidade maravilhosa  , além de muito pavor - opinião que não vale quase nada pois só estive por lá uma única vez,  num breve período). Rio 40 graus, composição de FERNANDA ABREU, FAUSTO FAWCETT e Laufer, lançada em 1992, é um breviário poético e musical da cidade como nenhum outro já feito, admiravelmente sintetizado na expressão "purgatório da beleza e do caos"

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