quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Poesia para o envelhecimento e a morte

Em seu voto no julgamento de Jair Bolsonaro e seus comparsas pelo conluio golpista, a ministra Cármen Lúcia citou trechos de Que país é este?,  provavelmente o poema mais conhecido de Affonso Romano de Sant'Anna, que veio a público há cerca de 45 anos (onde se pode ler que  "Este é um país de síndicos em geral,/ este é um país de cínicos em geral,/ este é um país de civis e generais" , versos não mencionados pela magistrada). A cobertura jornalística em torno da decisão do STF (considerada histórica por um bocado de gente) fez com que essa alusão ao escritor chegasse a pessoas não muito afeitas à literatura e que, especulo, nada conheciam dele. Quem sabe, talvez, surja entre novos leitores aqui e ali alguma curiosidade pelo autor, falecido no primeiro semestre de 2025.

Meu primeiro contato com a obra de Sant'Anna foi através de sua vertente ensaística e educativa (embora de vez em quando lesse uma ou outra de suas crônicas publicadas nos jornalões, em especial o  Estado de Minas ). Utilizei  Análise estrutural de romances brasileiros  principalmente para complementar um estudo (realizado junto com colegas de curso) sobre o  Vidas Secas  e lancei mão muitas vezes do livrinho Paródia, paráfrase & cia (daquela série Princípios, da Editora Ática, mão na roda para estudantes recém-ingressados em cursos universitários, como eu, lá no início da década de 1990). Mas até hoje - vergonha, vergonha! - não me dispus sequer a passar os olhos pela sua tese sobre Drummond (escrita nos anos 1960).

Já o primeiro poema de Affonso Romano que vi (num fanzine distribuído na faculdade, se não me engano) foi o seguinte¹:

O LEITOR E A POESIA

Poesia
       não é o que o autor nomeia,
       é o que o leitor incendeia.
       
      Não é o que o autor pavoneia,
      é o que o leitor colhe à colmeia.
      
      Não é o ouro na veia,
      é o que vem na bateia.
Poesia
      não é o que o autor dá na ceia,
      mas o que o leitor banqueteia.

Não que sejam versos extraordinários, mas naquela época a Estética da Recepção era uma proposição teórica que me interessava muito (na verdade, me interessa até hoje) e o teor deles, assim penso, vai ao encontro dessa corrente. Por isso, anotei-os num caderno e mantive-os na memória por muitos anos. Apesar disso, não sou nem de longe um cultor do trabalho poético de Sant'Anna.

A despeito de minha pouca frequentação, creio que posso apontar uma característica geral de seus poemas, possível de se verificar inclusive no texto acima: a fluidez. O fato de ter sido um cronista de jornal bastante produtivo tem muito a ver com isso. A mensagem direta e a linguagem próxima do cotidiano, tanto lexicalmente quanto no aspecto rítmico, marcam sua produção, sobretudo a partir dos anos 1980.

Em 2017, apareceu, pela Editora Rocco,  A vida é um escândalo, o último livro de versos. Como observou Miguel Sanches Neto², "seus poemas de agora renunciam a adornos líricos, acréscimos sonoros, jogos de linguagem, e inversões ou neologismos, para buscar o fluxo natural das palavras. O poeta não escreve; fala". A velhice, a inelutável passagem do tempo e a dissolução próxima aparecem em quase todas as composições ali reunidas. Um exemplo:

TODA MANHÃ

Toda manhã
(como se fosse numa batalha)
leio os jornais
e digo à minha mulher:
- Sabe quem morreu?
E digo um, às vezes mais, nomes
dos que se vão.
 
Assim
me despeço de escritores, pintores, jornalistas
diplomatas, parentes, políticos
 e até dos levemente conhecidos.
 
Um dia, noutra casa
- ecos dessa batalha -
alguém lendo os jornais, dirá:
- Sabe quem morreu?
 
E eu não estarei mais lá.

Não posso deixar de apontar que em  O lado esquerdo do meu peito,  conjunto de poemas lançado por Sant'Anna em 1992, encontramos na última das cinco seções em que se divide o volume ( Aprendizagem da morte ) composições percorrendo as mesmas temáticas, quando o autor ainda não atingira os 60 anos de idade. Reproduzo abaixo uma delas³, convidativa por sua musicalidade:

DE REPENTE, A MORTE
 
Digamos
que me restem 20/30 anos.
É pouco? Demais?
Os últimos 20/30 anos
passaram-me rápidos/
demorados
                  - fatais.
 
Volto do cemitério, onde deixei
de uma amiga, o que se diz
"restos mortais".
Volto para casa
meditativo, mudo
com algumas perdas a mais.
Há dois meses, eu e ela num grupo
combinávamos salvar esta cidade
e o mundo, aliás.
 
Semana próxima, prevejo, já se despede
outro amigo, que não sei se digo, que amo
ou amei.
 
Em 20/30 anos 
quantas mortes morrerei
na morte dos demais?
 
20/30 anos é muito pouco, meu Pai!
E, no entanto, pode ser em nove meses
quem sabe, daqui a pouco
enquanto leio os jornais.

A vida é um escândalo, por sua vez, foi lançado para marcar seus 80 anos, reunindo poemas compostos, em sua maioria, a partir dos 75: ao que parece, o poeta viu-se cada vez mais compelido a refletir sobre a morte. Acho oportuno incluir aqui uma observação feita por André Argolo : "O eu lírico da poesia de Affonso normalmente é Affonso mesmo. Fosse prosa e seria autoficção, beirando o ensaio ou vice-versa". Ou seja, quando em determinado poema nos deparamos com a pergunta "O que deve um homem de 75 anos/sentir, pensar?", o que vemos é a franqueza do autor "vencendo" a disputa contra a expressão artificiosa inerente ao discurso literário.

Leiamos mais um poema - aquele que abre o conjunto - de  A vida é um escândalo 

O QUE TE LEVA A PENSAR
 
O que te leva pensar
que teu livro é necessário
às bibliotecas do mundo?
 
As antigas
estão repletas de textos sem vida.
- Você não é um clássico.
 
Nas livrarias modernas
há tantas sensaborias
que ninguém vai te encontrar.
 
Eis a questão:
sossega teu ego.
O mundo não necessita de ti.
Tuas palavras
têm a concretude desnecessária
e solitária
 das pedras do Deserto de Atacama.

Eis o despojamento esperado de quem sabe que  não estará mais aqui  por muito mais tempo. A obra encontra-se feita e soma-se a imensidão de volumes produzidos desde os registros primeiros da literatura - sob essa perspectiva, quase inevitável não refletir sobre a insignificância. 

Mais um, para finalizarmos: 

ESTOU TENDO TEMPO
 
Estou tendo tempo
para desiludir-me.
Não tenho câncer
tenho memória
acompanho com nojo os jornais.
 
Olho as crianças que vão à escola
- elas vão sorrindo para o século XXI.
 
Não há nenhuma razão para crer
que somos melhores que as plantas.
 
Dizia Bartolomeu:
- a vida é um escândalo.

Envelhecer é desiludir-se (noutro poema deste mesmo livro, encontramos o verso "Conhecer é desamparar-se" ) e, se olharmos a fundo e desapaixonadamente para nós mesmos, reconheceremos que "não há nenhuma razão para crer/que somos melhores que as plantas"

Pelo que sei, a pessoa referida na última estrofe é Bartolomeu Campos de Queirós, escritor mineiro com criações geralmente classificadas como literatura infantojuvenil, falecido em 2012, conhecido pela prosa poética e narrativas memorialistas. Escândalo pode ser agitação, mas significa principalmente indignidade, acabrunhamento. Não posso afirmar que seja assim para todos, mas a certa altura do processo de envelhecimento, creio, não deve ser difícil constatar que a vida, a partir de determinado ponto, torna-se nada menos que um ultraje, embora, no caso de Sant'Anna, o poeta ainda consiguiu dizer: "O espanto me reedita"

_______________

¹ SANT'ANNA, Affonso Romano de. O leitor e a poesia. In: ___________. Os melhores poemas de Affonso Romano de Sant'Anna. 3 ed. São Paulo: Global, 1997. [Seleção de Donaldo Schüller]. p. 150.

² SANCHES NETO, Miguel. Dentro e fora do tempo. Rascunho. Curitiba, set. 2018. Disponível em <https://rascunho.com.br/colunistas/perto-dos-livros/dentro-e-fora-do-tempo/>. Acesso: 02/10/2025 

³ SANT'ANNA, Affonso Romano de. De repente, a morte. In: __________. O lado esquerdo do meu peito: (livro de aprendizagens). Rio de Janeiro: Rocco, 1992. p. 179 

 ARGOLO, André. Caça de uma vida inteira. Rascunho. Curitiba, abr. 2024. Disponível em <https://rascunho.com.br/ensaios-e-resenhas/caca-de-uma-vida-inteira/>. Acesso em 02/10/2025

⁵ SANT'ANNA, Affonso Romano de. Noturno de Ipanema 1. In. __________. A vida é um escândalo. Rio de Janeiro: Rocco, 2017. p. 43-46. 

BG de Hoje

É preciso ser sincero: não sou loucamente apaixonado por obras musicais que prescindem da voz - afinal, tendo um horizonte cultural bem limitado na infância e adolescência,  fui "educado" musicalmente através do rádio e da TV, veículos nos quais as composições exclusivamente instrumentais quase não encontram espaço de divulgação. Mas creio ter capacidade para valorizar aquilo que não figura entre meus hábitos, se valioso for, caso do som da NOMADE ORQUESTRA, cujo trabalho chegou a mim através do ótimo canal Som no sebo.

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