sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Sobre o jornalismo denominado progressista


 
Não sendo nada criativo, vou citar aqui uma frase famosa de Malcom X, muito lembrada quando o tema é a crítica ao jornalismo mainstream : “If you're not careful, the newspapers will have you hating the people who are being oppressed, and loving the people who are doing the oppressing.” [ "Se você não for cuidadoso, os jornais vão fazer você odiar as pessoas que estão sendo oprimidas e amar as que estão oprimindo" ]
 
Cada vez menos pessoas no mundo de hoje, claro, adquirem e leem jornais de papel, mas a declaração do ativista norte-americano ainda é válida se entendermos que sua reprovação é direcionada às grandes organizações de imprensa, aquelas com maior alcance entre a população.
 
É necessário, para assentarmos bem a discussão de hoje, ter sempre em mente que a ComCast (dona da NBC, Telemundo e vários canais por assinatura), a Disney (proprietária, por exemplo, da ESPN e da rede de televisão ABC), a Warner Bros (que detém a CNN norte-americana), os canais e órgãos de imprensa controlados pelo Rupert Murdoch (por exemplo, The Wall Street Journal, The New York Post e Fox News), todas essas e outras empresas do tipo continuam nesse ramo de atividade não porque tenham como missão prestar um serviço de veiculação de notícias e fornecimento de informação ao público: sua real disposição é influenciar a esfera pública e moldar percepções, domesticando a audiência, "limitando o espectro da opinião considerada aceitável", como diz Noam Chomsky, além de promover tópicos e discussões favoráveis aos seus interesses comerciais e, sobretudo, aos de seus parceiros de negócios. Ainda que já saibamos disso, é preciso enfatizar sempre.
 
Mencionei acima corporações dos EUA (de alcance planetário, contudo), mas o mesmo vale para suas congêneres brasileiras, guardadas as devidas proporções. Grupo Globo e Grupo Folha à frente, seguidos por Bandeirantes, Record, Estadão, etc. ainda conseguem intervir fortemente no debate público para garantir que parte dos consumidores de notícias e informação adote posicionamentos favoráveis àquilo que é preconizado pelos proprietários dessas organizações e pelos figurões à frente dos mercados para onde a grana grossa sempre flui ¹
 
Noutras palavras: quem detém o maior poder econômico dita o conteúdo e o direcionamento da mídia mainstream.  Não poderia ser diferente dentro do capitalismo. A mídia a serviço do capital - ou seja, um aparelho ideológico, se quisermos fazer um exibicionismo intelectual e sapecar um termo althusseriano - ainda tem a audácia de proclamar que o seu modo de fazer jornalismo reflete fielmente a realidade do mundo, pois é aquele feito com mais profissionalismo, sobriedade e isenção (segundo a palavra dessas mesmas empresas, claro), sendo o único confiável. NOTA: Não seria sensato afirmar que a mídia dominante propaga, sistematicamente, na cara de pau, mentiras deslavadas (bem, deixemos de fora a Fox News...), mesmo que apresente falhas de apuração e de checagem eventualmente e possa, sim, agir de má-fé vez ou outra. Dá pra dizer, com a devida reserva, que essa mídia procura certificar-se da autenticidade dos fatos antes de produzir as notícias e, no geral, com maior ou menor adesão, o público aceita-a como um dos  explicadores  válidos dos acontecimentos. A questão problemática, no entanto, é a seguinte: grandes empresas de mídia não são instituições assépticas onde reinam a neutralidade e a imparcialidade (até porque tais "virtudes" jornalísticas são cada vez mais entendidas, inclusive academicamente, como mitos). Quando se presta a devida atenção, vê-se que a própria seleção das situações convenientes para o seu noticiário e a maneira como estas são apresentadas à audiência (ou seja, segundo a interpretação que essas empresas fazem da conjuntura) revelam ao lado de quem a mídia  mainstream  está. E ela não costuma inclinar-se na direção de quem é explorado e oprimido no capitalismo. 
 
Mais uma vez, não estou dizendo nada novo: boa parte de nós sabe que é assim que as coisas sempre foram. E, para piorar, durante muito tempo, não havia opções de iniciativas jornalísticas que apresentassem algo diverso para um público mais amplo.
 

Atualmente, entretanto, pode-se acessar, sem muita dificuldade, sites ou canais na web comumente chamados de  progressistas  - algumas vezes de  alternativos,  noutras de  independentes  - que servem de contraponto à mídia dominante, embora exerçam muitíssimo menos influência do que estaApesar de muitos deles não se apresentarem formalmente como  de esquerda, sabemos que sua linha editorial vai ao encontro de vários princípios ideológicos desse campo político. Pessoalmente, prefiro chamar esses projetos de  não hegemônicos  ou  não corporativos.  Para facilitar nossa exposição, contudo, no restante desta postagem, vou usar na maior parte das vezes o termo  progressista  (apesar de não ser o ideal) quando me referir a quem pratica esse tipo de jornalismo.

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De todas as áreas de atuação diretamente impactadas pela chegada da internet (e são inúmeras), o jornalismo está entre aquelas que mais sentiram o baque, com enorme dificuldade para se manter de pé enquanto tarefa passível de remuneração.

Indo direto ao ponto: são poucas as pessoas hoje em dia dispostas a pagar pelo trabalho do jornalista (seja o texto escrito, a gravação de áudio ou vídeo, fotografia ou filmagem exibidos ao público, seja a preparação desse material: pesquisa, apuração, produção, revisão, edição, etc.). A facilitação do acesso como uma das forças motrizes da web massacrou as redações: por que pagar para obter o conteúdo de jornais e outros veículos se, com uns poucos cliques, as notícias estão ali, de graça? Além disso, qualquer pessoa com o equipamento certo (e nem precisa ser muito sofisticado) consegue se  passar por  jornalista e divulgar o que faz nas diversas plataformas disponíveis: ser um profissional da área é dispensável, o que nos remete ao volume incomensurável de desinformação, mentiras e balelas (convencionalmente chamadas de  fake news ) circulando pra baixo e pra cima com aparência de comunicação jornalística legítima. Numa era em que a informação (indispensável ou acessória) encontra-se dispersa por todo lugar, estabelecimentos profissionais voltados para o jornalismo não têm mais qualquer primazia. Só para exemplificar: no momento, além do Rascunho (especializado em Literatura), sou assinante apenas do Nexo, que decidiu tentar se manter sem anúncios publicitários, contando somente com os valores pagos por leitores como eu. Entretanto, temo muito pelo futuro do jornal porque apenas 2,5% de seu público contribui financeiramente.

Essa atividade, outrora prestigiada, vem perdendo relevância social. As consequências disso são bem, bem ruins. 

O(a) eventual leitor(a) talvez esteja se perguntando: mas esse blogueiro miserável não disse acima que as grandes organizações de mídia têm forte influência na sociedade? Como é que o jornalismo está em dificuldades financeiras e perdendo valor?

Respondo observando que a GRANDE mídia - sustentada por gente muito rica, cujos ganhos astronômicos provém de outras áreas -, de fato, não sofre com essa situação. Repito o que escrevi anteriormente: a real disposição dessas empresas de mídia é influenciar a esfera pública e moldar percepções, domesticando a audiência, além de promover tópicos e discussões favoráveis aos seus interesses comerciais e, sobretudo, aos de seus parceiros de negócios. Se já não há mais tantas pessoas comuns dispostas a financiar o trabalho jornalístico, pouco importa para essas corporações: elas conseguem se sustentar graças a recursos oriundos de outras fontes. Veja o caso da  Folha de S. Paulo.  Seu número de assinantes não deve ser grande coisa hoje em dia, se comparado com o de algumas décadas atrás. A receita com anúncios pagos também não deve mais ser essa maravilha toda. Sem problema, porque o PagSeguro (ou PagBank), empresa do UOL que, por sua vez, está dentro do Grupo Folha, é bastante lucrativo, permitindo a manutenção do jornal. E mesmo que o número de leitores efetivos da  Folha  não seja significativo, o que se publica lá ainda consegue gerar burburinho, dados o tamanho e a relevância que o jornal já teve (e ainda tem, de certa forma). Veja o caso da Globo. O  Jornal Nacional  já não bate a audiência desfrutada nos anos 1980; o  Fantástico  é muito pouco visto; a  GloboNews  não tem tantos espectadores diretos assim. Pouco importa: pode-se manter tudo isso no ar porque o Grupo Globo continua lucrando muito com o entretenimento que produz, aliado à publicidade (e, não raro, mistura entretenimento e publicidade com jornalismo - infotainment -, uma tendência mundialmente disseminada, aliás). Ano passado, para completar, fechou parceria com uma gigantesca casa de apostas. Quem pode dizer que a Globo, inclusive seus programas de notícias, deixou de ser influente na sociedade?

Assim, não estou falando da mídia dominante quando me refiro a perda de relevância social do jornalismo. Para ela, o jornalismo nada mais é do que uma parte da estratégia comercial/empresarial; embora não assuma abertamente na maior parte dos casos, o compromisso dessa mídia é com aqueles que detêm o grande capital, como afirmei acima. Os projetos não hegemônicos (ditos  progressistas ), estes sim vivem na periclitância e tal situação é danosa sobretudo para todos nós que estamos à mercê do poder econômico.

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Mas o que o jornalismo progressista tem oferecido, particularmente em nosso país?

Encontro exemplos de muito boa qualidade em alguns projetos que acompanho, bem como falhas e defeitos difíceis de contornar noutros deles. 

Começo destacando o De olho nos ruralistas. Produzido pela Associação Terra e Liberdade e coordenado pelo jornalista Alceu Luis Castilho, define-se como "um observatório do agronegócio no Brasil", tratando de temas que abrangem os impactos sociais e ambientais das empresas e entidades ligadas a esse setor gigantesco e poderoso da economia, incluindo desmatamento, expulsão de camponeses, comida com agrotóxicos e violação dos direitos dos povos indígenas. Ativo desde 2016, o  De olho nos ruralistas  mereceria aplauso simplesmente pela coragem de cobrir, de maneira crítica e incisiva, um segmento que sempre contou historicamente com a salvaguarda de membros do Legislativo, Executivo e Judiciário, além do beneplácito da mídia dominante - afinal, segundo a Globo,  o agro é pop  -, a despeito de todos os desmandos associados a ele. Além disso, o site é bem cuidado, de ótima navegabilidade e qualidade na escrita. Há também o canal no Youtube, mais dinâmico e compacto que o site, igualmente bem produzido (os pequenos relatos sobre a ação de lobistas da mineração, do agronegócio e do petróleo na recente COP30 ficaram muito bons).

Fundada em 2011, outro projeto bem feito é a Agência Pública. Apesar do nome, não tem vinculação com nenhuma esfera do Estado ou do poder público. Recursos provenientes de fundações privadas (entre elas, necessário informar, a Ford Foundation e, eventualmente, a Fundação Itaú) são o principal sustentáculo da  Pública  (que também precisa do apoio de aliados e doações de pessoas físicas). O foco do trabalho de sua equipe (formada em sua maioria por mulheres) é o jornalismo investigativo. Além dos ataques da direita, a agência costuma receber críticas da esquerda por causa das entidades que a financiam, mas, até onde posso julgar, as matérias publicadas demonstram muita independência (cito como exemplo, as várias reportagens e outras publicações tratando com apuro o temerário influxo dos evangélicos que pisoteiam a ideia de laicidade na política profissional/institucional).

Vejo também com bons olhos iniciativas como o ICL  (sigla para  Instituto Conhecimento Liberta,  uma expressão meio brega, que me desculpem os criadores). Fico com um pé atrás, porém. Seu fundador e principal divulgador é Eduardo Moreira. A suspeição nem é tanto por Moreira ter sido um operador de monta do mercado financeiro até anteontem, mas pela egolatria emanada por ele.  Esse sentimento de autoimportância pode ser indicativo de uma ambição pessoal imensa, ligada ao poder, em que toda essa  jogada  do ICL funcionaria como encenação. Paranoia? De todo modo, tanto o site de notícias quanto o canal do Youtube fazem, no geral, um bom trabalho. Apesar do tom pró-governo Lula na maior parte do tempo, jornalistas da casa ou colaboradores eventuais (como Cristina Serra) não têm problema em discordar e criticar determinadas ações da atual administração federal. Por exemplo: não se deixou de apontar a contradição e a impostura no discurso ambiental do governo ao insistir na exploração de petróleo na bacia sedimentar da Foz do Amazonas.

"Jornalismo de profundidade"  é o que o pessoal do Outras Palavras afirma estar fazendo. Na maior parte do tempo, essa promessa é cumprida. Composto praticamente de textos analíticos, o site faz uma aposta arriscada: artigos um pouco mais longos e mais complexos numa época em que a atenção das pessoas é cada vez menor.

Menções honrosas ainda para o  Brasil de Fato  , a velha  Carta Capital  e a revista  Fórum  (que vem oscilando ultimamente, porém, em termos de qualidade). Fora do Brasil, não posso deixar de citar o excelente Democray Now!, tanto o site quanto o canal

Quando voltar a este tema futuramente, vou me concentrar nos bons jornalistas que atualmente fazem um trabalho solo no Youtube, casos de Bob Fernandes, Álvaro Borba (que se autointitula um "Uber do conteúdo" ) e Nelson Garrone. Também quero escrever depois, mais detidamente, sobre a Mídia NINJA e a Ponte Jornalismo, cuja proposta de jornalismo vale ser discutida, embora eu não aprecie muito esse modelo.

Passemos agora aos empreendimentos cujo trabalho julgo inferior (e não chega a ser surpreendente que eles estejam entre os de maior alcance entre os progressistas).

Leio habitualmente o conhecido Diário do Centro do Mundo  ( DCM ) que consegue, por vezes, dar um bom enfoque para determinada questão ou assunto em evidência (e por isso ainda tem o seu lugar). A quantidade de desacertos, porém, é grande. Do ponto de vista gráfico, o portal é bem ruim e nada agradável em termos de navegabilidade. Boa parte do que aparece no site é meio  copia-e-cola : reproduções quase diretas de trechos de matérias publicadas noutros lugares, principalmente G1, UOL BBC e no famigerado Metrópolis. Textos, digamos, da própria lavra não costumam se caracterizar pela boa escrita.  Desconfio também que o ChatGPT exerce papel crucial na elaboração de "matérias" sobre comida, automóveis, dicas de decoração e arrumação domésticas ou curiosidades como "Entenda por que o gato preto é associado ao azar e à bruxaria no Halloween"  (geralmente saem na seção intitulada  "Essencial" ) . NOTA 2: Para ser justo, o uso da IA nas redações mundo afora deve estar se tornando uma prática generalizada, pelo que representa em economia de tempo - e de pessoal. A esse respeito, sugiro a leitura da matéria  Parem as máquinas! A IA tem uma reportagem urgente,  publicada na  piauí  em agosto deste ano. Compreendo que é preciso dinheiro para funcionar, mas chega a ser constrangedor ver tantas publicações no  DCM  sobre crimes e violência urbana numa pegada bastante sensacionalista, além de fofocas sobre famosos ou subcelebridades, - como formas de atrair o clique dos leitores - num veículo que tantas vezes se coloca como a palmatória da mídia. Nos últimos meses, dois textos foram particularmente velhacos, com títulos propositalmente capciosos ou imprecisos: um deles era "Vacina, 5G ou agrotóxico: o que explica o aumento de câncer em jovens" e o outro, "A pequena mudança no app que deixou o Itaú centenas de milhões de reais mais rico".

Outro grande portal identificado como jornalismo progressista é o Brasil 247. Assim com o DCM, tem uma navegabilidade péssima. Pelo menos não produz tantos caça-cliques. Atua praticamente como porta-voz e assessoria de imprensa do governo Lula e de seu partido, com textos de opinião às vezes pejados de wishful thinking  (o comediante Tiago Santineli, assumidamente de esquerda, chegou a apelidar o Brasil 247 como "Jovem Pan do PT"). Entende-se que o governo da chamada  frente ampla , capitaneado pelo PT, é o que impediu a extrema direita neofascista de voltar à presidência da República e devo admitir que todos os projetos jornalísticos não hegemônicos já citados nesta postagem apoiam, com maior ou menor afinco, a atual administração federal. Mas o Brasil 247 vai além: simplesmente ignora as falhas de Lula e sua equipe e é incapaz de expor e assimilar as críticas (lembro-me, por exemplo, de que os pedidos feitos por aliados, solicitando a Lula a indicação de uma mulher negra para uma vaga no STF - que acabou, à época, sendo preenchida por Cristiano Zanin -, foram vistos por alguns colunistas do portal como tentativas de sabotar o governo!). Para completar, fico abismado com a quantidade de publicações por lá tratando de geopolítica, com autores(as) sem qualquer renome ou credenciais relevantes na área, muitos desses afirmando quase o tempo todo que a China é o paraíso na Terra.

NOTA 3: Cada um desses dois portais têm, adicionalmente, canais no Youtube, mas como não os assisto, limito-me a comentar apenas o que se publica nos respectivos sites. Mais uma coisa: talvez um dia escreva uma postagem exclusivamente sobre a deplorável incivilidade e grosseria de vários perfis na seção de comentários desses portais. E olha que são pessoas que costumam se achar moralmente superiores àquelas posicionadas no outro lado do espectro político...

Passar pelo DCM e o Brasil 247 também acaba sendo útil para percebermos como o  jornalismo declaratório  é uma das maiores pragas da comunicação hoje em dia (tanto na mídia mainstream quanto em alguns empreendimentos independentes). A simples reprodução de falas de figuras públicas (ou não tão públicas) apenas para preencher espaço no site ou gerar reações imediatas na audiência é praticada  a torto e a direito. Tal praga decorre de dois outros sintomas do enfraquecimento do jornalismo: o esvaziamento do papel do repórter e a raridade do trabalho investigativo.

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Penso que a função de repórter, entre aquelas exercidas pelos(os) jornalistas, é a que consegue representar melhor a intrepidez que caracteriza (ou pelo menos deveria caracterizar) o(a) profissional do jornalismo. Sair a campo, às vezes em condições adversas, mas emocionantes; entrevistar pessoas que, dependendo das circunstâncias, correm risco ao falar com a imprensa; colher e reunir material e, após minuciosa averiguação, divulgar um furo ; publicar uma notícia, temendo represálias por esta apresentar denúncias contra gente poderosa ou colocar essas pessoas sob suspeição. Tudo isso faz parte da mística do(a) repórter.

Viabilizar um trabalho desses, contudo, não é barato. Mesmo reportagens banais e inocentes têm custos, a começar por coisas simples, como o deslocamento do(a) repórter ou da equipe até os lugares onde se deram os acontecimentos, por exemplo. Custos que os projetos progressistas não conseguem dar conta na maior parte das vezes. A mídia hegemônica conseguiria financiar grandes operações jornalísticas, mas quando esta decide investir em reportagens abrangentes, na imensa maioria dos casos, produz sondagens que, mesmo aparentando ser bombásticas, não incomodam os grandes controladores do capital, cujos atos de dominação e exploração seguem inabalados. Resultado: matérias relevantes para a maioria da sociedade não são realizadas e, ocupando seu lugar, o que temos é a hipertrofia do (preguiçoso) jornalismo declaratório (feito sob medida para o ambiente reativo das mídias sociais) e a supervalorização do jornalismo opinativo (que entrega mastigado para o leitor/espectador/ouvinte/internauta aquilo que ele "deve pensar").

Semanas atrás, no  Fantástico,  a experiente e capacitada repórter Sonia Bridi apresentou matérias sobre os efeitos das mudanças climáticas em lugares diferentes do planeta  (sim, eu sou uma das 118 pessoas que ainda assiste o  Fantástico ). Intitulada  Terra: ainda temos tempo,  a série de reportagens é uma espécie de continuação/atualização de outra, chamada  Terra: que tempo é esse?,  que foi ao ar 15 anos atrás, também no programa dominical da Rede Globo. Tudo muito bem filmado e produzido, uma maravilha em termos de apresentação, com a repórter  in loco  em todas as matérias (ou seja, houve custos também com passagens aéreas, hospedagem, deslocamentos por terra ou água, etc.). Pois bem. Sabemos que a criação de grandes rebanhos bovinos para abate leva ao desmatamento de áreas enormes no Brasil e o quanto isso repercute no aquecimento global e na alteração do ciclo hidrológico, isso sem contar os problemas causados por gases produzidos diretamente pelo metabolismo dos próprios animais. Pergunto: Bridi ou outro jornalista da Globo fará em algum momento uma reportagem ampla, incisiva, indo pra cima dos barões da pecuária e todo o seu lobby e forte influência política? Claro que não! A JBS é um tremendo parceiro comercial (a Seara, pertencente ao grupo, patrocina o BBB, a propósito) : não se fará nenhuma matéria que possa indispor tão poderosa corporação.

Dou outro exemplo. Bancos, operadoras de cartão de crédito e financeiras cobram juros escorchantes no Brasil há anos. Qualquer cobertura da mídia hegemônica nunca questiona o fundamento dessa usura. Solta matérias do tipo  Dicas para não deixar o nome sujo na praça   e ficamos por isso mesmo, como se a inadimplência fosse apenas um problema de descontrole individual e não tivesse nada a ver com a extorsão representada pela aplicação de taxas de juros imorais (mais de 40% dos brasileiros adultos estão inadimplentes). Frequentemente essa mídia, repetindo a cantilena do Banco Central (que não faz outra coisa a não ser assegurar as excelentes margens de lucro das instituições financeiras e mantê-las de bom humor, não importa quem esteja à frente do Executivo), tasca um jargão empolado de economista na cabeça do leitor/espectador/internauta, cita o "risco inflacionário"  e os gastos públicos como impedimentos para a diminuição da taxa básica de juros e estamos conversados. Você NUNCA verá um exame aprofundado na  Folha, no  Estadão  ou em qualquer canal de TV  que coloque em questão o esbulho dos bancos, operadoras de cartão e financeiras, enquanto a maioria da população é massacrada por essas empresas. Ah, não podemos esquecer de dizer que o Itaú, o Bradesco e a Visa são anunciantes disputados no meio publicitário... Mesmo que uma equipe progressista consiga produzir uma relevante matéria sobre o tema da exploração pelos juros a reportagem não teria alcance, dada a pouca penetração desse tipo de jornalismo dentro da sociedade. 

Complicando tudo ainda mais, muito em razão do uso intensivo das novas tecnologias comunicacionais, ao que parece, a atenção das pessoas está diminuindo. Em 1967, Caetano Veloso lançava a interrogação:  "quem lê tanta notícia?". E eu me pergunto hoje: quem é que está lendo (ou seja, interpretando), com profundidade, qualquer coisa?

Finalizo afirmando que a alegação da mídia dominante de que ela é neutra, imparcial - ao contrário da mídia progressista, que estaria presa a um voluntarismo sectário, unilateral - também precisa ser sempre alvo de questionamento. Naturalmente, espera-se que a comunicação jornalística seja o mais direta possível e procure ser equilibrada. Entretanto,  TODOS temos vieses ideológicos. Todos temos uma concepção de quais rumos a sociedade deveria seguir e procuraremos demonstrar isso aos outros, até mesmo persuadi-los de que nossa visão é a mais congruente. É no mínimo ingenuidade achar que uma corporação de mídia se lança na esfera pública de forma desinteressada, portando-se com incontroversa isenção. Reitero: a mídia corporativa hegemônica tem lado - e não é do nosso lado, o dos garroteados pelos controladores do capital dentro do sistema econômico vigente. A mídia progressista, com seus erros, mas também com seus acertos, pelo menos não tenta escamotear seu posicionamento.

Atualmente, penso que os valores a serem buscados pelo jornalismo devem ser a  transparência  (em relação à perspectiva ideológica ou à convicção política que norteia a linha editorial, em relação à proveniência dos recursos financeiros que mantêm os profissionais e o próprio veículo, em relação à forma  como a informação foi obtida, desde que não prejudique o anonimato das fontes, quando for o caso)  e o  rigor na apuração,  mesmo que o resultado das investigações e levantamentos venha a contrariar as convicções do jornalista. Imparcialidade e neutralidade, nesse campo de atuação, não são possíveis e, a depender do fato jornalístico a ser publicizado,  chegam a ser inaceitáveis. 

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¹ Não tratei nesta postagem das empresas de mídia regionais. Não nos enganemos, porém. Várias delas, atuando há décadas, não diferem em nada das suas irmãs com alcance nacional, quando se trata de ajudar na sustentação da perspectiva conservadora pró-capital. No estado onde vivo, Minas Gerais, a rádio Itatiaia (mais antiga) e o jornal O Tempo (mais recente, fundado em 1996, por um milionário) são exemplos cristalinos disso.

BG de Hoje 

Cara, eu adorei - canção e vídeo: JACK WHITE,  Archbishop Harold Holmes

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