Não é sempre, mas a publicidade comercial e o marketing me fazem sentir uma mistura de asco e fúria.
Sinto asco porque, nesse campo, a transigência com a trapaça é parte da essência do negócio. O uso de truques cênicos para fazer com que a comida ou a bebida pareçam mais saborosas ou mais saudáveis do que realmente são; o apregoar de qualidades ou vantagens inexistentes em determinados produtos e serviços; as letrinhas quase microscópicas na parte baixa do vídeo ou a locução acelerada no final do anúncio - essas e outras "espertezas" são estranhamente toleradas por pessoas que, normalmente, detestariam ser ludibriadas em outras áreas.
Todavia, sinto principalmente fúria porque, entre os sustentáculos do sistema excludente e desumanizador em que vivemos, a publicidade comercial e o marketing têm papel crucial, ajudando a vender não só mercadorias, mas conceitos e crenças proveitosos para esse sistema. Noutras palavras, cumprem uma função ideológica, embora poucos publicitários e marqueteiros admitiriam isso de bom grado.
"Compre X ou use Y e seja feliz!". Durante anos e anos, as peças publicitárias empenharam-se em associar a aquisição/desfrute de coisas com a obtenção de felicidade. "Ser feliz", contudo, é sempre algo transitório. Não que eu ache o conforto e os bens materiais secundários (não sou desses birutas que dizem: "o dinheiro não traz felicidade"), mas adquirir objetos (às vezes por compulsão ou tendo que se endividar perigosamente) não deve estar proporcionando tanta satisfação assim. É o que parece indicar o grande número de pessoas ansiosas, estressadas, tensas e aflitas a nosso redor (isso quando não somos nós que estamos ansiosos, estressados, tensos ou aflitos). Nada disso, entretanto, causa preocupação nos anunciantes e nas agências de propaganda: o que importa é levar você a consumir ou, como se tem dito ultimamente, viver a experiência através de determinada coisa (isto é, pagar por um serviço) para, desse modo, "ser feliz".
A publicidade e o marketing também conseguiram tornar mercantil a esperança. Nesses tempos de pandemia então... Já repararam em comercial de banco? Pessoas com uma xícara de café na mão, olhando pela janela; pais brincando com crianças na sala; o rosto de uma enfermeira usando máscara; um som de piano, de leve, como trilha sonora; locutor dizendo frases do tipo: "Vai passar!", "Aproveite os pequenos momentos!". A manipulação barata de emoções transmite a mensagem: o banco quer que você tenha esperança.
Francamente! Durante esse período angustiante, os bancos - instituições que (entra ano, sai ano) batem recordes de lucro no Brasil - fizeram o quê? Perdoaram ou facilitaram o pagamento de pequenas dívidas de clientes de baixa renda? Aumentaram a oferta de crédito com taxas de juros reduzidas para pessoas físicas ou ofertaram linhas de crédito mais generosas para pequenos empresários/comerciantes? Ajudaram a subsidiar setores diretamente afetados pela necessidade do distanciamento social, como a cultura e as artes? Até onde sei, nada disso aconteceu. Bancos, para a maioria de nós, pobres, nada têm a ver com crença positiva no futuro. Pelo contrário, até: esses empreendimentos altamente lucrativos demitiram trabalhadores em plena pandemia.
O que é a esperança? Se o(a) eventual leitor(a) já assistiu a Matrix Reloaded provavelmente se lembrará da fala do Arquiteto no diálogo com Neo: "It's the quintessential human delusion, simultaneously the source of your greatest strength and your greatest weakness [É a ilusão humana em quintessência, simultaneamente a fonte de sua maior força e de sua maior fraqueza]". A despeito de seu ar esnobe e de ser um dos vilões do filme, o personagem deu uma definição bastante acurada. Bem antes de servir como edulcorante para o capitalismo predatório, a esperança integrou (e integra) a prédica religiosa. É uma das virtudes teologais, junto com a fé e a caridade. Esse trio de virtudes é aquele que - assim prega o catecismo católico - tem "como origem, motivo e objeto imediato o próprio Deus". Ainda de acordo com o catolicismo, elas seriam infundidas nos indivíduos com uma ajudinha do Espírito Santo (ou seja, sua procedência é sobre-humana). A função principal da esperança no esquema religioso é fazer acreditar na vida eterna após a morte no plano terreno ou fiar-se na volta do Cristo antes do Juízo Final. Como se vê, a definição do Arquiteto ("ilusão humana em quintessência") não é mesmo ruim, quando verificamos o tamanho do papel da esperança no delírio máximo vivenciado por grande parte de nossa espécie (crer na existência de divindades ou em fenômenos sobrenaturais).
O Arquiteto, porém, diz mais: fonte de maior força e de maior fraqueza. Suponho (apenas suponho) que qualquer pessoa, mesmo a mais abandonada, desvalida e deprimida, experimentou (ainda que ligeiramente) a sensação de que "as coisas podem melhorar" ou que "a ajuda vai chegar", mesmo sem ter, objetivamente, razão alguma para acreditar nisso. Muitas ações e decisões humanas - desde as mais comezinhas às mais magnânimas - vêm dessa sensação. Entretanto, em inúmeras outras ocasiões, a esperança também nos induz a comportamentos e atos nada racionais, fazendo-nos deixar de enxergar aquilo que a realidade duramente impõe, levando a resultados desastrosos.
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A jornalista e escritora Eliane Brum publicou, com intervalo de quatro anos entre um e outro, dois textos em sua coluna no jornal El País que gostaria de trazer para esta discussão.
Em defesa da desesperança saiu em dezembro de 2015, alguns meses antes da consumação do processo de impeachment de (ou, como acho mais apropriado chamar, golpe contra) Dilma Rousseff, sendo este um dos temas do artigo. A alta qualidade da escrita (como de praxe, em se tratando de Eliane Brum) não me impediu de discordar de grande parte da análise feita pela autora, tanto na época de publicação quanto hoje. Isso, porém, não é relevante agora, mas sim o que está na parte final da coluna. A jornalista anota:
"Este é um país em que se declarar sem esperança é visto como uma falha de caráter, uma traição ao coletivo e a si mesmo. Como assim, você não tem esperança? A esperança é como a felicidade na lógica capitalista: objeto de consumo que mede o sucesso de uma vida. Esperança é palavra invocada por todos os lados na atual conjuntura do Brasil. Seja de forma espontânea, seja como construção marqueteira".
E conclui:
"Talvez tenha chegado a hora de superar a esperança. Autorizar-se à desesperança ou pelo menos não linchar quem a ela se autoriza. Quero afirmar aqui que, para enfrentar o desafio de construir um projeto político para o país, a esperança não é tão importante. Acho mesmo que é supervalorizada. Talvez tenha chegado o momento de compreender que, diante de tal conjuntura, é preciso fazer o muito mais difícil: criar/lutar mesmo sem esperança. O que vai costurar os rasgos do Brasil não é a esperança, mas a nossa capacidade de enfrentar os conflitos mesmo quando sabemos que vamos perder. Ou lutar mesmo quando já está perdido.
Fazer sem acreditar. Fazer como imperativo ético".
Que o(a) eventual leitor(a) me perdoe pela perspectiva simplista, mas, olhando para seu passado e imaginando o seu futuro, penso que o Brasil é uma nação que não tem como dar certo. Estou de acordo com Brum neste ponto: quando se pensa em projetos políticos para o país, não vale a pena dar bola para a esperança. O Brasil é uma desgraça (esse juízo é meu, não da articulista, e sim, este blogueiro tem complexo de vira-lata) ¹. O que não significa que se deva cruzar os braços por completo.
Noutra coluna, A potência da primeira geração sem esperança (junho de 2019), o contexto se amplia, porque um dos principais tópicos abordados é o da emergência climática global. A primeira geração sem esperança à qual Eliane Brum se refere é a dos jovens (representados na coluna pela ativista sueca Greta Thunberg) que será obrigada a viver "no planeta esgotado por seus pais [sobretudo pelo consumo desenfreado]". Brum observa que, "ao recusar a ideia fácil da esperança, os adolescentes [como Greta Thunberg] intuem - ou concluem - que se quiserem enfrentar a vida no planeta que virá, terão que recusar essa matriz de pensamento [a chamada 'tradição ocidental', que preteriu a ecologia e o ambientalismo por tempo demais, sempre acreditando no "progresso" e no "crescimento" econômico perpétuos] - ou não terão chance".
Ainda sobre essa geração (e principalmente sobre as pessoas dentro dela mais envolvidas com a questão ambiental), a autora escreve:
"O que testemunhamos é uma nova forma de pensamento adaptada à nova realidade do planeta. Minha hipótese é que testemunhamos uma adaptação à emergência climática. Produzida em nível subjetivo, essa adaptação está produzindo acontecimento no planeta. Depois de cientistas e ativistas do clima berrarem sozinhos por décadas, o mundo finalmente começa a escutar que a casa está queimando porque a nova geração, esta que prescinde da esperança, é quem está dizendo".
Muitos dessa geração já não se iludem. Sabem que a Terra que receberão terá maior escassez de água potável, maior desertificação, aumento de temperatura, desequilíbrio ecológico, entre outros problemas, com todas as consequências advindas para as comunidades humanas (danos na saúde, na alimentação, na moradia, ou seja, na capacidade de sobrevivência em geral). Outros seres vivos lidam com a calamidade há mais tempo... Muitos dessa geração não esperam nada da minha, nem daquela que a precedeu; afinal, quem piorou tudo fomos nós. Não serão discursos de políticos ultrapassados e propagandas vendendo esperança que vão fazê-los ignorar tantos fatos evidenciando que estamos cada vez mais na merda. Falo apenas dos jovens conscientes. Os consumidores de desinformação travestida de jornalismo e os adeptos de teorias da conspiração são um outro assunto.
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Nessa parte final, intenciono falar de uma outra desesperança - mais particular, mais pessoal
Convido o(a) eventual leitor(a) a ler junto comigo um dos meus poemas prediletos: Girassol, de Carlos Drummond de Andrade ².
Faremos isso após uma digressão. Um pouquinho mais de paciência, por gentileza.
Numa homenagem à colega Rosa Weber, o atual presidente do STF, Luiz Fux, em sessão no último mês de dezembro, leu um texto intitulado Recomeçar, cujo autor é Paulo Roberto Gaefke, mas o magistrado atribuiu-o a Drummond. Isso ficou comuníssimo com a chegada da internet: milhares de escritos circulam pela web com a autoria errada. Clarice Lispector e Luis Fernando Verissimo costumam também ser "vítimas". O sujeito encontra o texto numa busca ou vê impresso num convite de formatura, por exemplo, e pensa: "taí, achei bonito esse poema do Beltrano" (mesmo que Beltrano nada tenha a ver com aquilo, simplesmente colocaram - não se sabe por que cargas d'água - o nome dele lá) e resolve: "vou compartilhar". Não acho que é pecado. Ainda mais se tratando de poesia, algo que tem tão poucos leitores habituais. Já vi esse mesmo Recomeçar, sendo de novo atribuído a Carlos Drummond de Andrade, como página inicial num caderno que foi entregue aos trabalhadores em educação numa escola em que estive lotado. Era de se esperar que, num ambiente onde se encontram professores de Língua Portuguesa com alguma formação em Literatura, alguém desconfiasse que o texto está a anos-luz de distância da poética drummondiana e, portanto, a autoria atribuída estava errada. Ninguém, porém, notou (ou talvez nem ligasse).
Os juízes no Brasil - e outros profissionais ligados ao Direito - costumam posar como indivíduos detentores de uma erudição assombrosa. Não é disparatado supor que um brasileiro culto (não precisa ser um especialista em poesia do século XX) tenha alguma familiaridade com a obra do poeta mineiro. Como então explicar que uma pessoa presumivelmente douta tome a composição de autoajuda rasteira de Gaefke por uma criação do autor de A rosa do povo?
Bem... Vamos ao poema de Drummond.
GIRASSOL
Girassol foi publicado originalmente no livro Brejo das Almas, em 1934, numa edição de apenas 200 exemplares, paga de forma cooperativa (só por curiosidade, Brejo das Almas era o nome de um município mineiro, hoje chamado Rodrigues Alves). Acho um livro importante dentro da produção de Carlos Drummond de Andrade. Sucessor de Alguma Poesia - a estreia do poeta -, é uma reunião de textos que já não precisava afirmar a todo tempo sua filiação ao Modernismo deflagrado pela Semana de 22. Os poemas reunidos ali são preparatórios para a melhor fase da carreira de Drummond.
Girassol apresenta-nos, logo de cara na primeira estrofe, uma cena, um quadro. Ou uma fotografia, se quiserem (outra curiosidade, Palmira também é um município que mudou de nome; hoje é chamado Santos Dumont, e fica na região da Zona da Mata de Minas Gerais, cuja principal cidade é Juiz de Fora). Mas é o último verso dessa primeira parte - "Entre os seios e o girassol tua vontade ficou interdita" - que dá o tom de todo o poema.
Vale um esclarecimento: apesar da voz poética do enunciado não estar na primeira pessoa, usarei o termo eu lírico em minha interpretação do texto, pois claramente se trata de uma espécie de solilóquio.
Pois bem. O eu lírico olhava ao redor; mas reparou especialmente num girassol que se destacava em meio a outros (por ser maior? mais amarelo?). Até que uma mulher passa. Há uma interdição da vontade - isto é: o eu lírico já não tem mais controle sobre ela. A mente então vagueia: "vontade garota de voar, de amar, de ser feliz, de viajar, de casar, de ter muitos filhos;/vontade de tirar retrato com aquela moça, de praticar libidinagens, de ser infeliz e rezar;/muitas vontades;".
Se os seios (e toda pulsão sexual que eles representam no poema) foram catalisadores desse vaguear do pensamento, o girassol também foi, ainda que em menor escala. O girassol é o mundo objetivo, sem muito espaço para o devaneio, é verdade ("continuou a funcionar" do jeito de sempre, mesmo após todo o périplo imaginativo anterior), mas, sem esse lastro, aquilo que se fantasia não teria qualquer chance de um dia, quem sabe, tornar-se real.
Concluo a análise notando que um grande poeta não está livre da pieguice e do mau gosto: o verso "Entrou pela porta da igreja, saiu pela porta dos sonhos" é de doer.
Esse poema não tematiza, de modo algum, a desesperança. Por que então citá-lo nesta postagem?
Vamos lá...
Estou com quase 50 anos. Vivi (e vivo) uma existência medíocre, parasitária, apática e cagona.
Minha vontade nunca foi particularmente forte e enfraqueceu-se mais ainda com o envelhecimento. É tão fraca que até hoje não reuni a coragem suficiente (que um dia tive) para finalmente dar fim a todo o meu mal-estar e angústia, cometendo suicídio.
Todas as vezes em que releio Girassol, sobretudo nos últimos anos, gosto de sentir, por empréstimo, a juvenil força imaginativa de seu eu lírico, tão cheio de desejos. Porque praticamente não tenho nenhum. Nem vontades (vontade de se empanturrar ou de encher a cara não contam).
Resumindo: não sinto esperança. Não sinto esperança pelo país, um lugar que parece condenado a ser um espaço de exploração e exclusão incessantes - é assim desde o século XVI. Não sinto esperança pelo mundo, não só pela iminente catástrofe climática, mas também pelo flagelo social a se ampliar com a concentração de renda cada vez maior na mão de alguns milhares de bilionários. Não tenho esperança em relação a mim próprio (acho que nunca tive). Mas a leitura desse poema de Drummond sempre me dá alguma alegriazinha.
Isso deve valer alguma coisa, eu acho.
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¹ Como já dissera, Eliane Brum, em nenhum momento de seu artigo, tenta resumir toda a complexidade dos problemas brasileiros numa frase rudimentar como a que usei. Feito o esclarecimento, reitero a frase: o Brasil é uma desgraça!
² ANDRADE, Carlos Drummond. Girassol. In: ____________. Sentimento do mundo. 13 ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 111 [Como escrevi acima, o poema faz parte do livro Brejo das Almas, que está contido nesta edição de Sentimento do mundo aqui referenciada, junto com o Alguma poesia)
BG de Hoje
Gosto de canções tristes. Uma das minhas preferidas é River Of Deceit, do MAD SEASON, um desses projetos paralelos chamados de "supergrupo", por reunir músicos provenientes de outras bandas ou com uma renomada carreira solo. No caso do Mad Season, estavam lá Mike McCready (Pearl Jam), Barret Martin (Screaming Trees), Layne Staley (Alice In Chains), além do baixista John Baker Saunders. Embora muitos digam que a letra de River Of Deceit retrate os problemas que Layne Staley tinha com o vício em drogas pesadas (como acontece com várias composições dele no Alice In Chains), acho que ela vai muito além disso: é uma canção endereçada àqueles que sentem grande dificuldade em corresponder ao que o mundo espera de nós. Além disso, são muito bonitos os arranjos vocais e de guitarra.