sexta-feira, 31 de março de 2017

"A terna indiferença do mundo"


O penúltimo capítulo de O estrangeiro tem por base as perorações do promotor e do advogado envolvidos no caso de Meursault. Em determinado momento, o réu nos diz ¹:

"No fim, lembro-me apenas de que, na rua e através de todo o espaço das salas e das tribunas, enquanto meu advogado continuava a falar, eu ouvi o ecoar da buzina do vendedor de sorvetes. Assaltaram-me as lembranças de uma vida que já não me pertencia, mas onde encontrara as mais pobres e as mais tenazes das minhas alegrias: cheiros de verão, o bairro que eu amava, um certo céu de entardecer, o riso e os vestidos de Marie. Tudo quanto eu fazia de inútil neste lugar subiu-me então à garganta e só tive uma pressa: acabar com isto e voltar à minha cela para dormir".

Certos leitores talvez fiquem perplexos com a passividade de Meursault e o caráter - aparentemente - frívolo de seus pensamentos, sobretudo numa hora em que está correndo o risco de ser condenado à morte (o que, aliás, acaba acontecendo).  O excerto acima, contudo, é bastante ilustrativo de algumas das teses subjacentes a esse romance fora do comum ². Naturalmente, há vários outros ao longo do livro.

NOTA: Alguém que esteja lendo este texto - vai saber! - talvez reclame de "spoiler". Ora, uma obra literária ultrapassa - ou pelo menos deveria ultrapassar - as idas e vindas da trama. Como disse Leyla Perrone-Moisés, em entrevista recente, "[...] literatura é uma arte da linguagem. Ela tem significados complexos em vários níveis". A professora e crítica literária também observou que "literatura não é 'que' mas 'como'", ou seja, o plano do enredo tem menos importância do que a narração em si, a discursividade da obra. Até porque livros como O estrangeiro integram o repertório cultural da humanidade e qualquer pessoa razoavelmente familiarizada com o universo da ficção literária conhece episódios e até pormenores das histórias que tais livros contam, mesmo sem os ter lido. Penso que esse pueril "temor do spoiler" deveria ser reservado aos produtos do entretenimento comum.

A principal característica do personagem-narrador Meursault é sua indiferença. Quando seu patrão oferece-lhe uma boa oportunidade de trabalho em Paris, ele diz que tanto faz. O patrão quer saber então se uma mudança de vida não o interessaria.

"Respondi que nunca se muda de vida; que, em todo o caso, todas se equivaliam, e que a minha aqui não me desagradava em absoluto. [O patrão] Mostrou-se descontente, ponderando que eu respondia sempre à margem das questões, que não tinha ambição e que isto era desastroso nos negócios. Voltei então para o meu trabalho. Teria preferido não o aborrecer, mas não via razão alguma para mudar minha vida. Pensando bem, não era infeliz. Quando era estudante, tinha muitas ambições desse gênero. Mas, quando tive de abandonar os estudos, compreendi muito depressa que essas coisas não tinham real importância".

A mesma indiferença revela-se no seu relacionamento com Marie Cordona. Tanto fazia casar-se ou não com ela e perguntado se a amava, "respondi, como aliás já respondera uma vez, que isso nada queria dizer, mas que não a amava".

Todas as passagens aqui citadas ajudam-nos a perceber as teses inscritas em O estrangeiro. E quais seriam estas? Primeiramente, o acaso desempenha um papel crucial na existência (contrariamente ao que gostamos de pensar); e, em segundo, a eleição de determinados atos, pensamentos ou sentimentos como sendo "mais importantes" do que outros, no fundo, não passa de arbitrariedade calcada em convenções sociais. Para Camus, conduzimo-nos num mundo circundado pela contingência e inerentemente absurdo.

Sob essa perspectiva, por que a ritualização de um tribunal (artificial e convencional, como toda ritualização) valeria mais do que a alegria de um dia na praia ou "um certo céu de entardecer"? A mercê da absurdez do mundo, que importa viver em Paris ou ganhar mais dinheiro ou mesmo casar-se  - ainda mais quando, no caso de Meursault, não se é infeliz?

Numa análise crítica publicada na revista Cahiers du Sud alguns meses após o lançamento de O estrangeiro (ocorrido em 1942), Jean-Paul Sartre notou, como nos conta Horácio González ³, que o romance "não explica mas descreve, consagra uma literatura onde só o desolado presente é o que conta, e onde calar tem a mesma importância, senão maior, do que falar". De fato, a narrativa ocorre numa espécie de "vácuo" histórico e o narrador não parece particularmente disposto a compartilhar densas reflexões sobre si ou sobre o que acontece ao seu redor. Ao mesmo tempo, ele exibe uma sinceridade absoluta (desconcertante em vários momentos), como só uma criação ficcional poderia fazer.

Para Horácio González, Meursault designa "o ventre mais úmido da problemática camusiana", a saber: sendo o mundo absurdo, o que significa viver nele? De acordo com o sociólogo e ensaísta argentino, "o absurdo é um paradoxo irresolúvel - e por isso primariamente literário - que nos fala de uma 'nostalgia de unidade' entre o espírito que deseja e o mundo que desilude". O personagem-narrador de O estrangeiro não perderá seu tempo fingindo desvendar esse paradoxo. Comparando a criação de Camus com Antoine Roquentin, protagonista de A náusea, de Sartre (já escrevi sobre esse livro aqui), González observa que

"Enquanto Meursault gosta da praia, bronzeia seu corpo e brinca com a espuma das ondas em sua boca, Roquentin, o herói de A náusea, é um intelectual que sente a 'revelação da existência'. É a náusea entendida como desvendamento da consciência no mundo, como inevitável descoberta da carga falsificante que pode existir em qualquer relacionamento, mas que sabe não haver relacionamento sem essas falsificações. Sobre isto, Meursault nada sabe. Ele simplesmente vive o presente com a indiferença de quem acredita já não estar mantendo a distância entre o ser e o aparecer".

Mesmo não sendo um pensador, optando pela sensualidade tranquila da rotina, Meursault é inteligente o bastante para perceber que descobrir-se um homem livre - no sentido existencialista do termo , ou seja, dotado de autonomia, mas, ao mesmo tempo, impossibilitado de recorrer a instâncias exteriores a ele como forma de justificar os seus atos - conduz, não poucas vezes, na direção da tragédia, como ele próprio nos diz, após matar um indivíduo "por causa do sol":

"Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Então atirei quatro vezes ainda num corpo inerte em que as balas se enterravam sem que se desse por isso. E era como se desse quatro batidas secas na porta da desgraça".

. . . . . . .

Em 1979, a banda britânica The Cure lançou seu primeiro single e no lado A foi gravada uma faixa intitulada Killing an Arab, assumidamente inspirada em O estrangeiro (curiosamente, essa canção não entrou no primeiro disco da banda, embora tivesse sido gravada na mesma época; ela consta nas edições internacionais do álbum Boys Don't Cry, lançado no ano posterior, inclusive na edição brasileira - eu já tive esse vinil). No refrão, simples e direto, Robert Smith canta:

"I'm alive
I'm dead
I'm the stranger
Killing an Arab"

Nos últimos anos, ouvi dizer, a canção passou a ser interpretada nos shows com uma alteração na letra (o verso killing an Arab costuma ser mal interpretado, confundido como uma sugestão de violência contra árabes, quando, na verdade, ele apenas se refere a um dos dois incidentes principais do romance de Camus) .

Nosso interesse agora, contudo, é a segunda estrofe da canção:

"I can turn
And walk away
Or I can fire the gun
Staring at the sun
Whichever I chose
It amounts to the same
Absolutely nothing"

Meursault não escolheu virar-se e ir embora. Uma cadeia de acasos o levou até aquela praia com uma arma no bolso. Ele atira; exerce sua liberdade. Poderia não tê-lo feito. Sua vida ganharia outro rumo? É possível, mas qualquer que fosse a escolha, não escaparia do absurdo inerente ao existir.

Falamos anteriormente sobre a sinceridade desconcertante do personagem. Ele não aceita mentir. Por quê? Porque mentir é o que fazemos todos nós diariamente, fingindo que esse mundo faz algum sentido. Nossas mentiras tornam a existência menos complicada, mais fácil de digerir; sem elas, a vida em sociedade revelar-se-ia ainda mais problemática. O personagem de Camus, porém, não quer jogar o jogo da sociedade.

No último capítulo de O estrangeiro, farto das visitas e da pregação de um capelão, Meursault reage agarrando-o pela gola da batina e gritando com ele. Mais tarde, mais tranquilo em sua cela no corredor da morte, ele constata:

"Como se esta grande cólera me tivesse purificado do mal, esvaziado de esperança, diante desta noite carregada de sinais e de estrelas, eu me abria pela primeira vez à terna indiferença do mundo. Por senti-lo tão parecido comigo, tão fraternal, enfim, senti que tinha sido feliz e que ainda o era. Para que tudo se consumasse, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muitos espectadores no dia da minha execução e que me recebessem com gritos de ódio".

Abrir-se à terna indiferença do mundo é o principal conselho - se é que existe algo desse tipo na obra de Camus - deixado para os leitores desse livro extraordinário. Resta saber quem suportaria as consequências dessa corajosa decisão existencial.

Na próxima semana, escreverei sobre cinco contos do escritor nigeriano Uwen Akpan.

__________
¹ CAMUS, Albert. O estrangeiro. 28 ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. [Tradução de Valerie Rumjanek]

² Embora esteja inclinado a concordar com Horácio González (Albert Camus: a libertinagem do sol) de que o escritor "pertence à ordem da literatura" antes de ser "um ilustrador literário de teses filosóficas", não consigo deixar de encontrar vínculos entre os princípios filosóficos de Camus e sua ficção.

³ GONZÁLEZ, Horácio. Albert Camus: a libertinagem do sol. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1983  (Coleção Encanto Radical)

Embora Camus não se considerasse existencialista

 O que demonstra, a meu ver, como as pessoas estão cada vez mais ignorantes e com baixos níveis de letramento literário.

BG de Hoje

Não gosto do termo pós-punk (não se tem, por exemplo, um pós-blues ou um pós-heavy metal). É um termo que não explica muita coisa. Costuma-se dizer que KILLING JOKE é pós-punk. Mas também o são Talking Heads, The Cure e Joy Division, bandas com pouquíssima coisa em comum. Pelo menos em seus primórdios, acho que os caras do Killing Joke faziam um som claramente punk, apenas temperado com uns toques, digamos, dançantes nalgumas faixas. É o caso de Change.