quinta-feira, 9 de março de 2017

Lygia Bojunga, há 45 anos "fabricando tijolos" e maravilhando leitores (I)


"E tem gente como eu: em qualquer fase da vida não abre mão, mas não abre mão mesmo, de ter sempre por perto o tal amigo pra valer: LIVRO. Mesmo porque ele é o único amigo que nunca cria caso pra ficar com a gente seja onde for: sala, quarto, banheiro, cozinha, sombra de árvore, areia de praia, fundo de sofá, fundo de mágoa; e fica junto da gente mesmo no pior lugar do ônibus, do trem, do avião; enfrenta até numa boa cadeira de dentista e leito de hospital. E, se quem escreveu o livro consegue mexer com o nosso pensamento e balançar a nossa imaginação - pronto! aí se forma uma relação, um laço, que amarra pra valer quem escreve com quem lê".

Lygia Bojunga - Pra você que me lê (incluído como prefácio na 17ª edição do livro Tchau).

Lygia Bojunga raramente concede entrevistas - mais pelo jeito reservado do que por outra razão, penso eu. Por isso, quando a artista se manifesta fora de seus livros, todos que a admiramos paramos para escutar. Em 2012, ela trocou algumas palavras com Daniel Antônio, do extinto programa Entrelinhas (TV Cultura). A escritora, demonstrando sinceridade, afirma que seus "dois ou três primeiros [livros] começaram com uma intenção de escrever para criança", acrescentando em seguida: "Achei que escrevendo para criança seria até uma coisa menos difícil, para começar [uma possível carreira literária]". Antes dessa experiência, Lygia - também atriz - estava acostumada a escrever dramaturgia, em especial para o rádio e a televisão.

"A partir do meu terceiro ou quarto livro" - prossegue ela - "minha escrita foi se modificando no sentido de que começou a ser o que a gente chama de literatura, que é um processo assim muito mágico e que tem muito a ver com o subconsciente. É claro que às vezes - às vezes não, quase sempre - sai muito disfarçado. E às vezes sai até em forma de bicho porque a figura de um tatu ou de um pavão ou de um vira-lata encaixa melhor nas minhas preocupações, nas minhas ansiedades, nos meus sonhos. E, sobretudo, acho que [em] todos os meus livros, sem exceção, [há] uma preocupação [com a realidade] social desse nosso Brasil".
(A participação da autora no Entrelinhas está no Youtube: https://youtu.be/9KKob3AWnGk)

NOTA: Uma pulguinha vem se alojar atrás da minha orelha, lendo/ouvindo o que nos diz a escritora a respeito de seus primeiros livros (por certo ela está se referindo, especificamente, a Os colegas e Angélica). Será que eles não mereceriam ser também chamados de Literatura? Por que não? Por terem sido, intencionalmente, pensados para uma criança? Questões assim remetem-nos às velhas desconfianças (e alguma inapetência) que sempre cercaram a avaliação crítica da produção literária infantil e juvenil (vale a pena falar um pouco sobre isso, mas deixarei para o final deste par de postagens).

Vera Maria Tietzmann Silva ¹, professora da Universidade Federal de Goiás, considera que "os temas nevrálgicos têm sido a marca distintiva da ficção de Lygia Bojunga, que vem desde 1972 [...] revolvendo as chagas sociais e individuais de nosso tempo". A desigualdade social brasileira, suas moradias precárias, suas infâncias desassistidas, o desemprego e a instabilidade do trabalho informal sempre a assombrar o país e, mais universalmente, "o consumismo desenfreado, a ineficácia do sistema escolar, o autoritarismo no relacionamento humano, o imobilismo na distribuição de funções entre homens e mulheres, a acomodação ao estabelecido, o machismo, os preconceitos de todos os tipos, a alienação televisiva - são aspectos da sociedade contemporânea registrados por Lygia em traço caricatural". A escritora aborda temas ainda mais densos e terríveis em alguns de seus trabalhos, como o suicídio, o estupro e a pedofilia.

Segundo a professora, pode-se dividir a obra de Bojunga em duas: uma fase luminosa (a mais curta, a meu ver) que vai de 1972 (a estreia, com o livro Os colegas) até 1980 (quando sai O sofá estampado); e uma fase mais cinzenta, iniciada em 1984, com o extraordinário livro de contos Tchau, perdurando até hoje (embora em seu estudo, Tietzmann Silva estenda sua análise somente até 1987 e o livro O Meu Amigo Pintor).

Com exceção de Corda bamba, os livros luminosos contam com animais como personagens e dois deles, como já vimos, foram assumidamente pensados para crianças. Entre os títulos dessa fase encontram-se dois dos meus livros preferidos dessa autora (e, provavelmente, muitos de seus leitores pensam o mesmo): A bolsa amarela, publicado pela primeira vez em 1976 e a A casa da madrinha (1978). Ambos são ideais para perceber dois traços adoráveis de Lygia Bojunga: o ritmo que ela imprime ao texto e a maneira como ela opera a transição da realidade para a fantasia (e vice-versa). Observemos um trecho de A bolsa amarela ². Raquel, a protagonista, conversa com Afonso, um galo que foi personagem de uma história inventada pela menina:


" - Ei, Afonso! - Ele meio que acordou - Como é que você veio parar aqui dentro da bolsa amarela, hein?
- Entrei na tua casa, comecei a procurar um lugar bom pra me esconder, vi a bolsa debaixo da cama e pronto.
- Mas como é que você entrou aqui? Você voou?
- Vim de elevador.
- Sozinho?
- Não, tinha mais gente.
- E ninguém viu que você era um galo fugido?
- Eu tava de máscara.
- Ah, é! Então boa noite.
- Dorme bem".

Não é só a coloquialidade, presente também na escrita de muitos outros bons autores (penso, por exemplo, em Ruth Rocha, Sylvia Orthof e Leo Cunha), mas a capacidade de saber o tamanho certo que cada frase deve ter (como se fosse música). Quanto à transição realidade-fantasia, vamos dar uma olhada em uma passagem de A casa da madrinha ³. O personagem central, Alexandre, junto com sua amiga Vera e o Pavão, companheiro de viagem, inventam um cavalo - cujo nome é Ah - para conseguir chegar à casa da madrinha (que simboliza um lugar de esperança para Alexandre, menino pobre, saído da favela pra ganhar o mundo):


"E lá se foi [o cavalo]. Galopando, galopando, galopando. Varou o pomar num instante, passando rentinho dos galhos. Vera, Alexandre e o Pavão abaixavam a cabeça, entortavam o corpo pra ver se escapavam de espinho, de galho, de tudo: gritavam de susto, de medo, o galope era doido demais. O Ah escutava os gritos, mas no barulho do galope e do vento achava que eles estavam gritando pra ele correr ainda mais, e então corria, corria, corria, corria cada vez mais. O pomar ficou pra trás, chegou o capinzal. Alexandre apontou a cerca pertinho, Vera se apavarou:

- Para! Volta! Para!

Mas o Ah nem ligou. Alexandre puxava a crina dele, pra ver se ele pensava, se ele parava, mas quem diz que ele ligava? e a cerca chegando, chegando, chegando.

- Para! Para!

Vera fechou os olhos: não queria ver mais nada. Mas quem sabe era sonho e abrindo os olhos passava. Abriu. E viu a cerca bem na frente. Alta. Cheia de espinhos. Feia. Pra todo mundo ficar com medo e não passar.

O Ah nem pestanejou: armou o pulo e passou. Foi só ele passar que o sol sumiu. E ficou tudo bem de noite".

É por passagens como essa, sem dúvida, que alguns situam Lygia Bojunga dentro da corrente do realismo mágico, como faz Nelly Novaes Coelho . Para essa estudiosa, obras nessa linha diluem a fronteira entre a realidade e o imaginário, fundindo-os "para dar lugar a uma terceira realidade, em que as possibilidades de vivências são infinitas e imprevisíveis. Situações centradas no cotidiano comum, em que irrompe algo 'estranho', que é visto ou vivido com a maior naturalidade pelas personagens".

Antes de terminar, mais uma coisinha.

Deve-se notar que, em Os colegas, o "hino" cantado pelos amigos chama-se "Vida, acho você a maior" e em Angélica, a segunda frase escrita é "Coisa boa que é a vida!". Mais: A bolsa amarela e seu lindíssimo último capítulo, quando as vontades de Raquel transformam-se em pipas; Alexandre portando a chave que pode abrir A casa da madrinha; Maria, em Corda Bamba, imaginando como será seu futuro, feito a partir de suas próprias escolhas; e mesmo O sofá estampado, apesar de incluir a morte entre seus temas; todos esses livros, cada um a seu modo, falam de esperança. O que me leva a pensar que, talvez, só a literatura infantil e juvenil ainda seja capaz de conservar a esperança e o otimismo sem que isso pareça impostura, superficialidade ou traição.

A medida que o tempo passa, porém, as narrativas da artista começam a ficar mais desconsoladoras - nem por isso perdem em beleza e qualidade.

Escreverei sobre isso na próxima semana, além de retomar as questões deixadas em aberto na nota colocada lá no alto desta postagem. Também será preciso explicar o fabricando tijolos incluído no título desse conjunto de textos sobre Lygia Bojunga.


__________ 
¹ SILVA, Vera Maria Tietzmann. Lygia Bojunga. In: _______. Literatura infantil brasileira: um guia para professores e promotores de leitura. 2 ed. Goiânia: Cânone Editorial, 2009. (p. 135-163)

² BOJUNGA, Lygia. A bolsa amarela. 33 ed. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2005.

³ _______. A casa da madrinha. 19 ed. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2009.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. 7 ed. São Paulo: Moderna, 2000

BG de Hoje

Não lembro qual foi a última vez em que olhei pro mundo de forma positiva. Houve uma época, entretanto, em que eu achava possível "fazer a diferença", como se diz nesses filmes hollywoodianos água-com-açúcar (estava errado, claro). Em 1996 ainda era aluno na Faculdade de Letras e professor contratado da rede estadual de ensino. Acreditava que "tinha um futuro" e que a educação pública iria melhorar (pra se ver como já fui bem mais imbecil do que sou hoje). Naquele ano, duas canções tocavam muito no rádio (bem, pelo menos na 107 FM, antes de ser fagocitada pelas igrejas evangélicas) e eu adorava ambas: Bulls On Parade, do Rage Against the Machine e Follow You Down, do GIN BLOSSOMS. A primeira, como não podia deixar de ser, é um sensacional petardo politizado, como é de praxe com o RATM. A segunda é pura sensibilidade, nem por isso gosto menos: sempre que eu a ouvia, ia mais animado pra universidade ou pro trabalho. Outros tempos...