sexta-feira, 7 de abril de 2017

Relatos da violência: Diga que você é um deles, de Uwem Akpan


No último capítulo do indispensável livro Para quando a África? ¹, o historiador burquinense Joseph Ki-Zerbo diz ter "a impressão de que a Europa [e este blogueiro acrescentaria também os EUA] não consegue conceber que a África possa desempenhar um papel benéfico para a humanidade". O dito mundo desenvolvido

"Reduz o itinerário da África às últimas décadas em que foi colonizada e mal descolonizada. Enquanto não resolver esse mistério da dificuldade de sair de si, de escapar de si mesma, de ir ao encontro dos outros, de os conhecer e reconhecer, de os compreender e de adotar um mínimo de alteridade, a Europa [e acrescento, mais uma vez, também os EUA] não se compreenderá e todo o mundo sofrerá com isso. Ninguém acha que há alguma coisa de positivo a tirar da África, excetuando o folclore. Nisto, concede-se aos africanos um pouco de imaginação".

Vários são os elementos negativos comumente associados ao continente africano - fome, pobreza, endemias, guerras interétnicas e religiosas, corrupção generalizada. Mesmo nós, desgraçados latino-americanos, costumamos lançar à África um olhar em que se mesclam comiseração, estranheza e um ar de superioridade (afinal, somos caudatários do pensamento produzido nos centros do capitalismo mundial), como se não houvesse problemas idênticos ou mesmo mais acabrunhantes ao nosso redor. Esse olhar negativo, reducionista e carregado de estereótipos, perpetua-se por ignorância e desconhecimento deliberados: a quantas anda, por exemplo, a cobertura de nossos noticiários em se tratando de Angola, Zimbábue, Congo, Tanzânia...? Que lugar é dado à África nos programas de ensino escolar? Sendo uma região famosa pela musicalidade, por que quase não ouvimos falar de popstars africanos de fama internacional? ²

Ao que parece, quando se pensa sobre a África, escolhe-se ressaltar apenas o infortúnio.

Modificar nossa concepção, ampliar nosso entendimento a respeito da África (justamente para evitar o olhar preconceituoso e a atitude de menoscabo), não significa, por outro lado, negar a existência das muitas mazelas que afligem as populações dos países africanos diariamente. E disso - as mazelas - é que falam os cinco contos do aterrador livro Diga que você é um deles ³, de Uwem Akpan.

Logo nas primeiras páginas, o leitor não tem dúvida: o que o escritor nigeriano busca é a denúncia, que se torna ainda mais aguda (e aflitiva)  porque as histórias são contadas através de quatro crianças e um adolescente.

Há assimetrias, contudo, entre os textos, não apenas referente à extensão destes (alguns são bem curtos, outros, bem longos). O autor consegue realizar-se melhor nalgumas narrativas (literariamente falando, pois Akpan, com sabedoria, não adota a postura do documentarista), como no caso de Que língua é essa, Carros fúnebres de luxo e, principalmente, O quarto dos meus pais, do que nas outras - Uma ceia de Natal e Engordando para o Gabão. Embora não haja indicativos de tempo precisos nos contos, pode-se dizer que as histórias ocorrem na década de 1990. Falemos primeiramente dessas duas citadas por último, mas que, justamente, são as que iniciam o livro.

Uma ceia de natal  tem como protagonista - e narrador - o garoto Jigana, de 8 anos, que vive com sua família sem-teto num tabique miserável, erguido numa rua de Nairóbi (o texto integral pode ser encontrado aqui, na versão original, em inglês, caso o(a) eventual leitor(a) tenha interesse). Para ajudar no sustento da família, a filha mais velha, Maisha, de 12 anos, trabalha como prostituta na capital queniana. São 27 páginas brutais, um soco no estômago - e mal sabia o blogueiro o que o aguardaria nas histórias seguintes...

Ao optar pelo foco narrativo de primeira pessoa nesse conto, Uwem Akpan, a meu ver, comprometeu-o um pouco. Fica difícil aceitar que um menino de tão pouca idade consiga ter a capacidade de observação expressa no texto. Jigana conta a história como se tivesse acabado de vivenciá-la e não como uma lembrança de adulto; portanto, é pouco verossímil que uma criança manifestasse uma voz narrativa tão articulada (o escritor dá uma solução melhor para isso no conto seguinte, como veremos). Não posso deixar de mencionar uma ótima passagem. Não querendo que a noite de 24 de dezembro passasse despercebida,  a mãe de Jigana "pegou nossa Bíblia de família, que herdara do pai de Baba [que, em swahili, significa pai; portanto a Bíblia pertencera ao avô paterno de Jigana], para começar nosso culto de Natal". Ao longo das outras histórias, percebe-se que o autor enfatiza a existência de credos e práticas religiosas que se verificam em diversos países africanos. Voltemos à passagem de que falava:

"A capa da frente havia caído, deixando uma página suja coberta de nomes de parentes, mortos e vivos. Ela começou a lê-los. O falecido pai de Baba fizera questão de que todos os nomes de nossos familiares fossem incluídos, em reconhecimento da instabilidade da vida de rua. Mamãe começou pelo pai dela, que tinha sido morto por ladrões de gado antes que ela fugisse para Nairóbi e começasse a viver com Baba. Ela leu o nome da mãe de Baba, que viera para Nairóbi quando sua aldeia foi arrasada porque alguns políticos quiseram redesenhar as fronteiras das tribos. Um dia ela desapareceu na cidade com sua bengala, para sempre. Mamãe invocou os nomes de nossos primos Jackie e Solo, que foram viver em outra aldeia e nos escreveram por intermédio de nossa igreja, pedindo a nossos pais que lhes mandassem dinheiro para pagar a escola. Eu estava ansioso para contar a eles sobre os parques iluminados e os carros bonitos de Nairóbi; faria isso assim que meus professores me ensinassem a escrever cartas. Mamãe chamou pelo irmão, o tio Peter, que me mostrara o jeito de tomar banho nos chafarizes da cidade sem levar chicotadas dos funcionários. Ele foi morto a tiros pela polícia, num caso de confusão de identidade; o necrotério entregou seu corpo à escola de medicina, porque não podíamos pagar a conta. Ela chamou o nome de Mercy, a prima em segundo grau de Baba, a única parenta nossa que terminou o ensino médio. Mercy nunca mais escreveu para nós, desde que se apaixonou por um turista de Honolulu e fugiu com ele. Mamãe leu o nome da irmã de Baba, tia Mama, que, até morrer do coração, dois anos antes, havia todas as noites nos contado histórias e ensinado canções sobre nossas terras ancestrais, em voz doce e nostálgica".

Certamente, a esta pungente lista, juntar-se-iam mais tarde o nome do pequeno narrador e de sua irmã, Maisha.

O conto seguinte - o mais longo, com 114 páginas - foi o que me tocou mais fundo. Também narrado em primeira pessoa (por Kotchikpa, de 10 anos), Engordando para o Gabão dá melhor solução para a incongruência do foco narrativo mencionada acima; desde a abertura do texto, o leitor tem a sensação de que a história foi contada muito tempo depois de acontecida, quando o narrador já não era mais uma criança. Ponto para o autor.  A história me deixou particularmente perturbado por me fazer imaginar o destino terrível de tantos meninos e meninas como Kotchikpa e sua irmã de 5 anos, Yewa - uma das melhores personagens do livro - vítimas do tráfico de seres humanos. Confesso que chorei durante a leitura e não sei se terei coragem de lê-la novamente tão cedo.

Os três contos que completam o livro são os mais bem elaborados e acabados, do ponto de vista artístico, literário.

Que língua é essa? adota o discurso indireto, centrado, porém, nos pensamentos de uma menininha etíope de classe-média. Seu pequeno mundo entra em colapso quando uma conflagração violenta entre muçulmanos e cristãos acontece na cidade onde vivem. Pessoas até pouco tempo próximas tornam-se impedidas de se verem, inclusive a menininha e sua Melhor Amiga, Selam, a colega de escola muçulmana e vizinha do prédio da frente. É o conto menos desesperançado do livro.

Não há humor nestes textos de Uwem Akpan, mas arrisco dizer que em Carros fúnebres de luxo o autor praticou um pouco de ironia, ao elencar uma galeria de tipos caricaturais entre os passageiros de um ônibus que tenta sair do norte da Nigéria, região de imensa maioria islâmica, rumo ao sul, onde o cristianismo e os cultos tradicionais do país são predominantes. Um desses passageiros é o jovem Jubril, de 16 anos. O recurso do flashback é muito bem explorado aqui e o clima de tensão, permanente desde o início:

"O dia inteiro Jubril ansiava pela partida do ônibus, como um prisioneiro que antevisse a própria libertação da cadeia. Esperava junto com a multidão, consciente de não ser um deles, sabendo-se um alvo fácil para a violência esporádica que se apoderara do país, sujeito a ser denunciado por algo tão simples quanto seu sotaque".

Acho oportuno ratificar que o autor, provavelmente por também ser um padre jesuíta, dá muita ênfase à questão religiosa, com acertos e erros de abordagem. Entre os últimos, está o modo como foi caracterizada a personagem da senhora Aniema em Carros fúnebres de luxo, uma descarada puxada de brasa pra sardinha do catolicismo.

Por fim, O quarto dos meus pais é o conto mais elogiado nas resenhas críticas internacionais. Trata do sangrento conflito entre tutsis e hutus em Ruanda sob a ótica de uma garota de 9 anos de idade, Monique. É um texto maravilhosamente escrito mas duro de se ler pelo choque e o torvelinho de emoções que provoca. É nele que se encontra a frase que dá título ao livro de Akpan.

Nas cinco histórias, a fuga torna-se a única opção para personagens lançados em situações extremas.

Antes de encerrar a postagem, retorno a Joseph Ki-Zerbo. O historiador burquinense finaliza suas palavras dizendo:

"Conservo a esperança de que, um dia, os países do [hemisfério] Sul atinjam um mínimo vital, do ponto de vista do crescimento, sem abandonarem a sua própria cultura. Espero também que os países do [hemisfério] Norte ataquem obstinadamente alguns muros do crescimento desenfreado de hoje, feito segundo um modelo liberal que não tem nada a ver com a liberdade. Nesse momento, uns e outros ficarão libertos, como dizia Marx, dos aspectos puramente materialistas da produção. A humanidade poderá finalmente dar o poder à imaginação e à criatividade, isto é, à cultura. Na minha opinião, vale a pena, a partir da África, lançar um olhar sobre esse horizonte da humanidade, hoje reduzido à sua dimensão mais mesquinha, de modo que ela possa um dia exprimir-se abertamente na liberdade, na justiça, no respeito e na solidariedade".

Os problemas da África são muitos - vários deles decorrentes desse "modelo liberal que não tem nada a ver com a liberdade" colocado em prática pelo capitalismo global - e Ki-Zerbo, claro, sabe o desafio que é enfrentá-los. Ainda assim, conserva a esperança. Mesmo que este blogueiro não seja um sujeito otimista, após ler um livro tão impactante quanto Diga que você é um deles, acho que não faz mal sonhar com um futuro menos desumano.

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¹ KI-ZERBO, Joseph. Para quando a África?: entrevista com René Holenstein. Rio de Janeiro: Pallas, 2009 [Tradução de Carlos Aboim de Brito]

² Lembro, a esse respeito, um observação de Frei Betto (não me recordo agora em qual de seus textos). Ele diz mais ou menos o seguinte: é fácil encontrar um poster de um astro da música norte-americana em lojas de disco em Pequim, todavia não se encontra o poster de um artista chinês num estabelecimento congênere em Nova Iorque. A tão incensada globalização é via de mão única em muitos aspectos...

³ AKPAN, Uwen. Diga que você é um deles. São Paulo: Ediouro, 2009 [Tradução de Alice Xavier]

BG de Hoje

Vale a pena expandir nossos horizontes musicais. Nesse aspecto, a internet é uma ferramenta fantástica. Pode-se conhecer artistas de todo o mundo com apenas alguns cliques. Foi assim que eu cheguei à cantora e compositora malinesa FATOUMATA DIAWARA, aqui com a canção Clandestin.