segunda-feira, 7 de maio de 2012

Existem as tais "próprias palavras"?


"E se cito os outros é para melhor dizer de mim"

Michel de Montaigne - Da educação das crianças

 
 
Desde garoto, espantava-me quando, na escola, um professor me pedia que explicasse ou escrevesse alguma coisa usando "minhas próprias palavras". Mas há palavras próprias? Palavras inéditas? Únicas? Totalmente originais? Como costumam brincar os linguistas que estudam a Análise do Discurso: falamos ou somos falados?

Voltei a pensar nisso ao ler um ensaio escrito por Michel de Montaigne. Em Pedantismo*, o pensador francês começa sua reflexão tentando descobrir por que os professores em geral têm péssima reputação. E se pergunta: "Mas como pode ocorrer que uma alma enriquecida de tantos conhecimentos não se torne mais viva e esperta, e que um cérebro vulgar e grosseiro armazene, sem se apurar, as obras e juízos dos maiores espíritos que o mundo produziu?"

Mais à frente o ensaísta julga achar uma resposta: "[...] creio ser preferível dizer que o mal provém da maneira por que tratam a ciência [...]. Em verdade, os cuidados e despesas de nossos pais visam apenas encher-nos a cabeça de ciência: de bom-senso e virtude não se fala [...]. Indagamos sempre se o indivíduo sabe grego e latim, se escreve em verso ou prosa, mas perguntar se se tornou melhor e se seu espírito se desenvolveu - o que de fato importa - não nos passa pela mente".

Ou seja, para o filósofo, de nada adianta o acúmulo de erudição, decorrente de uma cultura livresca, se este não favorecer a formação do caráter ("Só nos esforçamos por guarnecer a memória, deixando de lado, e vazios, juízo e consciência", escreve ele mais à frente). Trata-se de confiar menos no saber alheio e mais em nossa própria capacidade de discernimento.

É de se notar, entretanto, que o próprio Montaigne não se cansa de citar "palavras de outros", sobretudo Cícero, Sêneca e Plutarco, para corroborar ou ilustrar seus argumentos. Afirma ele, num outro ensaio (Da educação das crianças**): "[...] acontece-me, não raro, encontrar por acaso nos bons autores os mesmos assuntos que procuro comentar, como vem me suceder com Plutarco acerca da força da imaginação: e ao reconhecer-me diante deles tão fraco e insignificante, tão pesado e sem vida, tenho piedade de mim mesmo, e desdém. Todavia sinto prazer em verificar que minhas opiniões têm a honra de ir ao encontro das deles, às vezes, e, embora de longe, sigo-lhes as pegadas".

Assim sendo, deixando de lado a questão meio boba da "formação de caráter", pergunto: que mal há em se investir numa cultura mais livresca?

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Num belíssimo texto, lido há alguns anos*** (e que já discuti aqui, ao falar do papel das citações), Alberto Manguel afirma que "citar é continuar uma conversa do passado e dar contexto ao presente; citar é fazer uso da Biblioteca de Babel; citar é refletir sobre o que foi dito antes, pois, se não o fizermos, falamos no vácuo, onde a voz humana não faz som". E lembra que, para Walter Benjamin, "escrever história é citá-la".

Manguel, em diversos de seus trabalhos, não cessa de defender - escrevendo de diferentes modos - o seguinte ponto de vista: a leitura desempenha papel considerável na definição de nossa própria identidade. Desse modo, não há incompatibilidade entre viver e ler.

Em Um história da leitura****, por exemplo, ele registra:  "Por mais que os leitores se apropriem de um livro, no final, livro e leitor tornam-se uma só coisa. O mundo, que é um livro, é devorado por um leitor, que é uma letra no texto do mundo; assim, cria-se uma metáfora circular para a infinitude da leitura. Somos o que lemos".

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Um professor, obviamente, quando solicita ao aluno que escreva usando "suas próprias palavras", deseja  tão somente que este não repita ipsis litteris o que outros tenham escrito sobre o assunto avaliado. Seu objetivo é verificar o quanto o estudante "absorveu" dos textos que lhe foram indicados ou medir qual o nível de conhecimento prévio que este possui a respeito do tema em questão. Assim, a pergunta colocada no título da postagem carrega uma intençãozinha maldosa...

Num sentido mais estrito, contudo, não faz sentido falar em "palavras próprias". As línguas humanas são um constante intercâmbio de formas de expressão linguística, consensuais e convencionais, sem as quais a comunicação seria bastante difícil, até mesmo impossível. Felizmente, alguns indivíduos conseguem compor novos arranjos dessas expressões, ampliando ou aumentando a significação delas. Por vezes, até criam outras, novas e inusitadas, que passam a ser incorporadas ao falar que se partilha. E um dos modos mais sublimes de ter acesso a essas re-criações é através da cultura livresca, aparentemente, tão menosprezada por Montaigne.
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* MONTAIGNE, Michel de. Pedantismo. In: ________. Ensaios, vol. 1. 2 ed. Brasília, Editora Universidade de Brasília: Hucitec, 1987. p. 201-210

** MONTAIGNE, Michel de. Da educação das crianças. In: ________. Ensaios, vol. 1. 2 ed. Brasília, Editora Universidade de Brasília: Hucitec, 1987. 211-238

*** MANGUEL, Alberto. O destino da leitura na era da web. Veja, São Paulo, n. 1681, 27 dez. 2000. Disponível em http://veja.abril.com.br/especiais/perspectivas/p_100a.html Acesso em 06 mai. 2012

**** MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010


BG de Hoje

Péssimo dia cá na escola. Acho que o trabalho em unidades de educação básica torna-se ainda mais desagradável nem tanto pelos baixos salários ou pelas pífias condições de trabalho. É mais pela sensação de frustração que se sente ao ver que os esforços feitos não resultarão em nada significativo. Foi aí que me lembrei dos versos de uma canção do LULU SANTOS (Já é):

"Sei lá...
Tem dias que a gente olha pra si
E se pergunta se é mesmo isso aí
Que a gente achou que ia ser
Quando a gente crescer"

Definitivamente, não era isso que eu achava...